Morte digna em sociedades desiguais é romantismo

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As legislações mudam para garantir uma utopia, a de que o doente está recebendo, pelo Estado e pela sociedade, o direito de morrer dignamente.

Morte, doença; doença, morte. Ambas fazem parte da humanidade, desde de o surgimento do ser humano e sua compreensão sobre doença e morte, graças ao neocórtex.

Os avanços científicos, a partir do século XIX, — apesar de que, no Egito (a.C.), por exemplo, métodos operatórios, como craniana, já existiam — tornaram possíveis os desejos da humanidade retardar a despedida do mundo material. Várias crenças surgiram, também graças ao neocórtex — penso, logo existo; existo, porque penso —, para minimizar as angustias dos familiares, os que ficam na Terra, e do paciente terminal, o que vai para algum lugar.

Uma das maiores descobertas para a humanidade foi a vacina. Em 6 de julho de 1885, um homem louco, Louis Pasteur, — quem desafia ditames catedráticos, louco e sonhador é; a História humana — curou um garoto de 12 anos, chamado Joseph Maister. E tantos outros visionários, lunáticos — como Alexander Graham Bell, Nikolas Teslas, Ignaz Philipp Semmelwei, Steve Jobs, Georges Lemaître (padre e físico), Fritz Zwicky etc. —, desafiando convenções da zona de conforto, trouxeram desenvolvimentos, confortos, esperanças, profilaxias.

Se a morte é um fato, a dor é outro fato natural. Os avanços científicos na medicina, combinados aos avanços tecnológicos — aliás, a tecnologia garantiu o desenvolvimento científico nas pesquisas médicas, por exemplo, o surgimento do microscópico — elevaram as chances de prevenção e cura. No século XX, os antibióticos pareciam que, definitivamente, o ser humano vencerá a Guerra Biológica. Seres microscópicos não teriam mais poder sobre o poder do neocórtex humano. O mito do antibiótico caiu por terra. Uso indiscriminado de antibiótico, a lição esquecida sobre Evolução das Espécies, os cientistas ficaram atônitos com os retornos de doenças do Velho Mundo. As superbactérias. E nunca na História da Medicina Ignaz Philipp Semmelwei fora tão exigido. Nos hospitais e clínicas, plaquinhas, para profissionais da área de saúde, paciente e seus pacientes, informando sobre a importância da higienização das mãos. Em 2015, a UNESCO fez uma homenagem a Ignaz Philipp Semmelweis na data de 150 anos (cento e cinquenta anos) do falecimento, como um dos Grandes Nomes da Ciência.

SE A MORTE É UM FATO, A DOR É FATO NATURAL, A VONTADE DE PROFILAXIA É FATO. A AGONIA, EM PAÍSES COM EXTREMAS DESIGUALDADES SOCIAIS, É OUTRO FATO.

O leitor poderá pensar, as desigualdades sociais acontecem por Produto Interno Bruto (PIB) baixo; pelo contrário. Países mais ricos (PIB) possuem desigualdades sociais abissais. É de se pensar que o PIB garante igualdade para todos ou, pelo menos, certa dignidade humana para os seres humanos de classes sociais mais baixas. Ledo engano. O documentário acima demonstra diferenças nos Sistemas de Saúde dos EUA, da França, da Inglaterra e do Canadá. Se PIB é a condição de garantir dignidade humana — um mínimo existencial, um Sistema de Saúde ao alcance, principalmente, dos seres humanos abaixo ou no limitar fronteiriço, entre miséria e mínimo existencial — tal premissa é sofisma.

Richard Wilkinson e Kate Pickett, autores do livro The Spirit Level, disponibilizado em português pela Editora Presença, demonstram vastas pesquisas enviadas por renomadas Universidades no mundo; as desigualdades sociais, em países ricos, devem-se a ideologias de estereótipos. O Estado e os grupos sociais com mais influências na condução das políticas públicas causam desigualdades sociais. As consequências são: seletividade penal; seletividade na ascensão profissional; gravidez na adolescência; toxicodependência; uso de ansiolíticos; obesidade.

A MORTE DIGNA ROMÂNTICA

Doenças, nunca na História humana, tantas doenças surgiram com os desenvolvimentos científico e tecnológico. Metais pesados, lançamento de substâncias químicas nos rios e no ar. Se a Revolução Industrial representou pleno desenvolvimento humano, por outro lado, causou inúmeros problemas. É justificável que, antes do conhecimento da poluição industrial sobre o organismo humano, os industriais não poderiam ser culpados pelas atividades de suas fábricas. Contudo, a ciência evoluiu e demonstrou os efeitos nocivos da industrialização.

Corporações e escândalos. A lista é imensa, atualizada e aumentada. Corporações de inescrupulosos empresários ferem os direitos humanos — a começar por corromper as democracias. Medicamentos com efeito placebo, microchips alterados para dissimular as taxas de emissões de poluentes lançadas pelos automotores, parcerias com legistas, biólogos e médicos, também inescrupulosos, para mostrarem ao público que tais produtos e substâncias não fazem mal ao meio ambiente e ao organismo humano — quem quiser pesquisar, digite corporations and scandals; pesquisar em inglês é melhor. Quem não souber ler em inglês, use o Google Chrome, desktop ou aplicativo para Smartphone, ou aplicativo como UCBrowser, no Android.

Morte digna, qual dignidade teve uma pessoa exposta às diversas substâncias prejudiciais ao seu organismo, por desumanização — e falta de ética empresarial é desumanização, já que as empresas usam Ética Kantiana — produzida pelos fornecedores? Não restritamente aos industriais, mas aos distribuidores, enfim, toda uma cadeia até os consumidores. Se a vida de uma pessoa foi exposta às diversas substâncias prejudiciais ao seu organismo, com a ciência dos fornecedores, o desenvolvimento de alguma doença é fruto de uma política Capitalista desumana. É a aplicação da Filosofia da Alcova na relação fornecedor ao cliente.

Tenho alertado, sempre que posso, sobre o uso, indiscriminado, de agrotóxicos no Brasil. Muitos desses agrotóxicos foram banidos por vários países. Agronegócio no Brasil se desenvolve à custa da violação da dignidade humana, o Lado Moral do Mercado. A Indústria Tabagista argumenta que, caso o cigarro de tabaco não seja mais comercializado, desempregos acontecerão e haverá um colapso na economia. O custo-benefício: geração e manutenção de empregos versus mortes por tabagismo. Transcrevo:

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Os benefícios do câncer de pulmão
A Philip Morris, uma companhia de tabaco, tem ampla atuação na República Tcheca, onde o tabagismo continua popular e socialmente aceitável. Preocupado com os crescentes custos dos cuidados médicos em consequência do fumo, o governo tcheco pensou, recentemente, em aumentar a taxação sobre o cigarro. Na esperança de conter o aumento dos impostos, a Philip Morris encomendou uma análise do custo-benefício dos efeitos do tabagismo no orçamento do país. O estudo descobriu que o governo efetivamente lucra mais do que perde com o consumo de cigarros pela população. O motivo: embora os fumantes, em vida, imponham altos custos médicos ao orçamento, eles morrem cedo e, assim, poupam o governo de consideráveis somas em tratamentos de saúde, pensões e abrigo para os idosos. De acordo com o estudo, uma vez levados em conta os “efeitos positivos” do tabagismo — incluindo a receita com os impostos e a economia com a morte prematura dos fumantes —, o lucro líquido para o tesouro é de 147 milhões de dólares por ano. (SANDEL, Michael J. Justiça: o que é fazer a coisa certa . Rio de Janeiro: Civilização Brasileira)

A corrupção em nome do enriquecimento desumano (Capitalismo de Alcova) é outro problema que coloca a dignidade humana ou direitos humanos, na lata do lixo. No site Tranparency International, a corrupção é um imenso destruidor de qualquer democracia; é só olhar o Brasil.

Somando os escândalos das corporações, as parcerias funestas entre políticos e empresários, os estabelecimentos que preparam alguns alimentos saborosos com produtos fora dos prazos de validade, a empresa que não limpa de seis em seis meses os dutos de ar condicionado, a Máfia das Próteses, a Máfia dos Remédios, as péssimas prestações de serviços públicos — Corpo de Bombeiros, SAMU, UPA, Hospitais; faltam automóveis, materiais, medicamentos etc. —, dizer que o moribundo no leito deve ter morte digna é Romantismo. No leito de morte, o moribundo tem sentimento melancólico, descrente, desesperado. Resta ao moribundo, já que fora violado em seus direitos humanos — e até enquanto estava se desenvolvendo no ambiente uterino —, a morte. Morte que representa o caminho de sua salvação, de seu alívio diante de um mundo, terreno, de sofrimentos, angústias.

Depressão, um Mal do Século XXI. Diante do Mundo Físico Líquido, aspirando os pensamentos de Zygmund Bauman, Mundo este de culto idealista e utópico — consumir, para ser feliz; ter uma silhueta padronizada para ser feliz; alcançar elevada posição profissional, ser adorado (a) pelos chefes e sócios, enquanto servir com peça nos Tempos Modernos —, a morte é uma passagem para um local melhor, de reconhecimento ao que o ser humano é — valores, contribuições à sociedade —, e não o servir enquanto gera riqueza.

Qualquer doente é uma vítima da Máquina Antropofágica. Se durante a escravidão, anterior a primeira metade do século XX, o ser humano nada valia, pela condição de sua cor, pelos seus hábitos, por ideologias utilitaristas, no século XXI vale, enquanto servir como suculento prato principal. Qual a diferença entre a anterior primeira metade do século XX e o século XXI? A diferença está que na primeira havia distinções claras e objetivas de quem era digno de ser digno. No século XXI, todos os seres humanos são dotados de dignidades pelas Constituições Humanísticas, porém, à realidade do Mercado, só possui dignidade quem pode custear pela sua dignidade — se bem que, pelos acontecimentos recentes, em vários países, a vida humana, mesmo de ricos ou pobres, não está valendo nada. Morreu, por algum alimento contaminado? Menos uma vida, na superpopulação mundial. Ou uma nova vida para ser consumida aos moldes de Matrix O Filme. E quem saboreia a vida alheia? Fura-fila aplicado por inescrupulosos políticos brasileiros, enquanto tiverem, em troca, os votos dos eleitores, desesperados, por eficiente atendimento. É tão louco, este sistema, que gera frieza, imensa, nas relações humanas. Não importa se o concidadão ao lado necessita de atendimento médico pela sua condição periclitante. O que importa é ser atendido, mesmo que não seja caso grave, pelo sistema fura-fila.

Se os fornecedores aplicassem a Agenda 2030 da ONU, as doenças naturais, não a desencadeada artificialmente, não seriam o monstro da atual humanidade. A morte digna, então, seria acontecimento, realmente, natural. Nesse tipo de morte, a dignidade humana subsiste mesmo após a morte material, como a humanidade a conhece desde a sua aurora. O Capitalismo não é o mal em si, mas os discípulos de Marquês de Sade na economia. Ou seja, o ser humano.

Mudar é possível? Sim, quando filosofias invocando a autopossessão, na relação comercial, não estiverem impregnadas pela Filosofia da Alcova. Quando falo que 'morte digna' é romantismo, em países de extremas desigualdades sociais, possuidores de altos PIBs, é o descaso em relação ao próximo. Colocar preço na vida humana, melhor atendimento hospitalar para quem pode pagar, e pagar bem, é, para nós, Homo Sapiens Sapiens, vergonhoso. O homem de Neandertal era solidário — antropólogos já provaram isso. Pergunto, quem tem civilidade?

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Sobre o autor
Sérgio Henrique da Silva Pereira

Articulista/colunista nos sites: Academia Brasileira de Direito (ABDIR), Âmbito Jurídico, Conteúdo Jurídico, Editora JC, Governet Editora [Revista Governet – A Revista do Administrador Público], JusBrasil, JusNavigandi, JurisWay, Portal Educação, Revista do Portal Jurídico Investidura. Participação na Rádio Justiça. Podcast SHSPJORNAL

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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