Uma análise da decisão da ADI 4983/CE sob a perspectiva do Bem Viver

03/08/2017 às 12:27
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O presente artigo objetiva analisar a decisão do STF na ADI indicada não pela simples questão de discussão de natureza de colisão de normas, regras e princípios constitucionais, mas por via da discussão travada no novo constitucionalismo latino-americano.

O Supremo Tribunal Federal procedeu o julgamento de uma Ação Declaratória de Inconstitucionalidade de uma lei do Estado do Ceará, Lei nº 15.299/2013, ADI 4983/CE, com o objetivo de proceder a regulamentação da prática da vaquejada como atividade desportiva e cultural. Ante a norma realizada no Ceará, este tribunal constitucional foi chamado a atuar para descrever a inconstitucionalidade desta norma, onde se alegou que norma feria aos princípios constitucionais que versam sobre a proteção ao meio ambiente, já que importava na ofensa ao direito dos animais e da fauna como um todo e o seu equilíbrio, posto que tal prática cultural importa na utilização de bovinos para a sua ocorrência.

Em contraposição a tal argumentação, o Supremo analisou a questão sob o ponto de que esta norma visava preservar o patrimônio cultural deste tipo de prática, sendo o que se alegou na defesa da norma pela necessidade de preservação da plenitude do exercício dos direitos culturais, importando na presença de uma colisão de temas constitucionalmente resguardados.

A decisão final do presente julgamento importou na utilização do argumento de que na ponderação entre estes direitos em colisão, necessária a aplicação na espécie da norma protetora do meio ambiente, para salvaguarda dos animais envolvidos neste tipo de prática lesiva, já que o direito cultural não deve se sobrepor à defesa do meio ambiente e dos animais envolvidos, que não podem sofrer maus tratos físicos para que o ser humano promova a sua expressão cultural.

Claro que a decisão gerou bastante polêmica, já que promove a resolução de um conflito de normas constitucionais pela aplicação ao caso da supremacia da preservação do meio ambiente em detrimento do direito à cultura, utilizando-se da ponderação de direitos, mas também se apoiando nos precedentes já existentes naquela Casa para o julgamento de outros conflitos em que estes mesmos direitos se encontravam em colisão, de forma que não havia como deixar todos felizes.

Porém, a própria decisão descreve a necessidade de que a vida em sociedade seja uma vida pautada na afirmação de que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida,” como é afirmado pelo próprio Relator ao utilizar ideia já expressa por ele no julgamento do Mandado de Segurança nº 25.284.

A partir desta situação fática é possível promovermos a discussão do presente tema, a vaquejada e a sua inconstitucionalidade, por outro viés que não somente do prisma da colisão de normas constitucionais ora discutidas naquela decisão. Este é um bom exemplo para análise da discussão constitucional sob a perspectiva dos paradigmas descritos do novo constitucionalismo latino-americano, a partir da ideia do Bem Viver e da necessidade do pensamento comunitário da sociedade envolvida, mas que não pode deixar de lado os elementos naturais como meros bens sujeitos à apropriação, sendo necessária a existência de um convívio simbiótico entre a sociedade e a natureza que se encontra ao seu redor.

As ideias de Bem Viver aparecem nas Constituições do Equador, de 2008, e da Bolívia, de 2009, onde estas normas tratam da questão da relação estabelecida entre as suas sociedades e a natureza, prezando pela atenção do bem-estar natural com meio equilibrado de desenvolvimento.

Parte-se de um pensamento que tem a natureza como sujeito de direitos, onde tais ideais buscam a implementação de um certo bem de vida, onde a população possa, nos termos do art. 14 da Constituição equatoriana de 2008, “viver em um ambiente são e ecologicamente equilibrado, que garanta sustentabilidade e bem viver.”

Esta ideia se baseia na necessidade de que todos os seres possam viver harmonicamente no meio ambiente, de forma a agir com sustentabilidade na exploração das riquezas que a natureza nos oferece, bem como na atuação de um ideal de vida com qualidade, equilíbrio e respeito à natureza, onde esta última passa a ser vista como um ser vivente, sendo, então, considerada como detentora de direitos e deveres para com o restante dos seres.

Seguindo com a leitura do teor do mesmo artigo anteriormente descrito da Constituição equatoriana, há a declaração de ser “de interesse público a preservação do ambiente, a conservação dos ecossistemas, a biodiversidade e a integridade do patrimônio genético do país, a preservação do ano ambiental e a recuperação dos espaços naturais prejudicados.” (EQUADOR, 2008)

A natureza passa a ser vista não somente como coisa sujeita à apropriação, mas como ente personalizado, devendo o desenvolvimento social pautar-se pela sua adequação aos interesses gerais desta nova personalidade, que sempre buscará a sustentabilidade com meio de progresso, garantindo a vida, o equilíbrio do meio ambiente e a biodiversidade.

A ideia de Bem Viver aglutina-se com a finalidade social do uso da natureza pelo povo que junto a esta se integra, como uma necessidade de uma atuação conectada do ser humano com a natureza com meio de progresso responsável e saudável, como um novo horizonte direcional para a sua promoção.

A partir destas expressões, Zaffaroni (2012) descreve a ideia da Pachamama e o ser humano, como uma interação do homem com esta natureza, a partir destes novos conceitos constitucionais latino-americanos, onde aborda uma série de questões, inclusive a necessidade de que o ser humano respeite os animais dentro desta atuação em Bem Viver. Dussel (2011) também estabelece a descrição deste pensamento, não se pautando somente na conexão natureza e sociedade, mas sobre uma perspectiva do homem latino-americano e a sua conexão com a ancestralidade e os seus elementos culturais pautados no reconhecimento do ser e do outro. Na mesma esteira, Boff (2000) descreve o seu ethos mundial a necessidade de uma atuação conectada do ser humano com a natureza com meio de progresso responsável e saudável.

Tal pensamento parte da busca de uma nova expressão do pensamento jurídico, um pensamento do ‘sul’, latino-americano, o que se relaciona diretamente com as ideias da Epistemologia do Sul, descrita por Boaventura de Souza Santos, onde este descreve a necessidade do desenvolvimento do Direito a partir de um marco latino-americano, livrando-se do pensamento colonialista imposto pelo norte do globo terrestre, de forma a estabelecer um pensamento descolonial.

Por tal pensamento, objetiva-se descolonizar os discursos produzidos nos mais vastos campos do conhecimento, para que possamos trazer outras epistemologias para a conceituação dos institutos jurídicos, principalmente trazendo ao protagonismo ideias de epistemologias do sul, a partir de conhecimentos descritos na realidade localizada no hemisfério sul e de suas vivências próprias, a partir da análise do ser latino-americano, da sua ancestralidade e sua pluriculturalidade.

Dentre tais linhas de descolonialidade, a que mais expressa esta liberdade na produção do conhecimento vem exatamente ser a ideia de Bem Viver, que vê o ser humano como um ser conectado com a natureza, agindo socialmente integrado ao seu ambiente local, não buscando um desenvolvimento econômico que não integre e preserve o seu entorno.

Partindo deste pensamento esposado, é possível se analisar a decisão proferida pelo STF sobre a questão da vaquejada, confrontando-a com o pensamento do Bem Viver descrito pelo constitucionalismo latino-americano, a fim de se perceber se outro seria o resultado havido naquela decisão se aplicado tal pensamento constitucional ecológico.

Uma abordagem pela aplicação do Bem Viver se pauta no respeito da sociedade para com a natureza, que pode se utilizar dela se o fizer de forma equilibrada, sustentável, necessária e para o desenvolvimento desta relação, de forma que todos os sujeitos envoltos nesta devem alcançar ganhos, evoluir.

Abordando a questão do Bem Viver, Gudynas e Acosta (2011) acabam por promover não só a descrição da ideia de bem viver, como também conectá-lo a necessidade de desenvolvimento com sustentabilidade e responsabilidade social e ecológica, quando descreve ser esta “una expresión de un conjunto de derechos, y que para asegurarlos es indispensable encarar cambios sustanciales en las estrategias de desarrollo. (...) que tensiona el concepto de desarrollo con una propuesta a ser construida, el buen vivir.”

O Bem Viver importa em aglutinar a sua finalidade social e sustentável para utilização da natureza, já que há uma atuação conectada do ser humano com a natureza com meio de progresso responsável e saudável, como um novo horizonte direcional para a sua promoção. Os conceitos ora lançados objetivam a formação de uma concepção de justiça que assenhore à dignidade do ser humano a necessidade de respeito a natureza e a sua sustentabilidade, pela imperatividade de que desta interação do homem com esta natureza se estabeleça uma vida em conjunto, sendo que a partir destes novos conceitos constitucionais latino-americanos, inclusive a necessidade de que o ser humano respeite a fauna e a flora nesta atuação em Bem Viver, a natureza necessita de respeito e não pode ser usurpada pelo simples supérfluo e banal, mas somente pode se apropriar desta por algo que importe em necessidade.

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Mas a utilização do Bem Viver importa no ser humano se conectar diretamente com a natureza, com a Pachamama, agindo socialmente integrado ao seu ambiente local, conectando-se, a partir disso na formação da sua concepção do que seja justo.

Se o Bem Viver nos traz a noção da natureza como sujeito de direitos, isso nos leva a compreensão que nada natural deva ser apropriado que não seja para o equilíbrio do próprio desenvolvimento sustentável deste sujeito e para a sua relação direta com as pessoas e a sociedade ao seu entorno, já que a soma destes sujeitos formam um todo simbiótico que não pode desenvolver senão de forma a sustentar equilibradamente a soma formada.

Assim, o Bem Viver busca que o ser humano perceba que não é possível “que outros seres humanos possam tratar seu semelhante com desprezo, bem como uma perspectiva externa, na qual permite o Estado produzir uma série de ações que violam a igual dignidade,” (SOUSA, 2013) o que também não permitiria que tal tipo de trato ocorresse em face dos elementos naturais.

Realizando uma comparação entre a decisão tomada e os seus fundamentos com aquilo que o Bem Viver estabelece como seus preceitos, é possível perceber que tal pensamento de sustentabilidade natural ecológica destes constitucionalismos latino-americano acaba por se concatenar com o resultado final alcançado com a decisão do processo ora em comento, ainda que utilizando diferentes fundamentos para se chegar a tais conclusões, já que a decisão descreveu a validade de norma constitucional do meio ambiente em supremacia à norma constitucional cultural, ou seja, analisou somente sobre o ponto de vista das próprias normas-princípio e normas-regra existentes no texto da Constituição, quando a comparação com as Constituições equatoriana e boliviana permitiria uma completude em tal análise.

O importante é que o direito dos animais e da natureza, como bens inestimáveis e que somente podem ser utilizados de forma sustentável e digna, por via desta decisão, foram resguardados e preservados. É sabido que já existe uma Emenda Constitucional sobre o tema e que descreveu tais práticas como permissivas e não cruéis, o que não retira a validade da presente discussão e que será objeto de outra análise acerca desta emenda, quer sob a análise à luz da ideia de Bem Viver, ou quer sob a ótica da sua inconstitucionalidade.

Em epílogo, é perfeitamente lógico que se o STF analisasse a questão da vaquejada, no caso ora descrito, não sob a perspectiva somente da colisão de regras e princípios constitucionais e da necessidade de se prevalecer o meio ambiente equilibrado, mas sob a ótica do Bem Viver e o seu pensamento de comunitarismo ecológico, tal análise acabaria por chegar a mesma conclusão tomada na decisão exarada pelo STF brasileiro, já que pela aplicação da teoria constitucionalista latino-americana seria necessário se aperceber da necessidade de se utilizar de uma forma racional a natureza e a sua fauna, de forma sustentável, benéfica e preservativa, não podendo ocorrer atuação em maus-tratos aos animais, posto que acabaria por desequilibrar a cadeia ecológica dos elementos da natureza que fundam a ideia de Bem Viver, que não é um viver bem somente para o ser humano, mas que se deve também ser bom para a natureza.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BOFF, Leonardo. Ethos Mundial: Um consenso mínimo entre os humanos, Brasília, Letraviva, 2000, p. 90.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Acórdão na Ação Declaratória de Inconstitucionalidade nº 4983/CE. Relator: MELLO, Marco Aurélio. Publicado no DJE nº 220, divulgado em 14/10/2016. Disponível emhttp://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?numero=4983&classe=ADI&origem=AP&recurso=0&tipoJulgamento=M. Acessado em 06/04/2017.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Acórdão no Mandado de Segurança nº 25.284, Relator: MELLO, Marco Aurélio. Publicado no DJE nº 214, divulgado em 26/10/2015. Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?numero=25284&classe=MS&origem=AP&recurso=0&tipoJulgamento=M. Acessado em 06/04/2017.

DUSSEL, E. Filosofia de la liberación. México: Fondo de Cultura Económica, 2011.

EQUADOR. CONSTITUCIÓN DE LA REPÚBLICA DEL ECUADOR. 2008. Disponível em http://www.derechoecuador.com/Files/images/Documentos/Constitucion-2008.pdf. Acesso em: 02 de dezembro de 2014.

GUDYNAS, Eduardo; ACOSTA, Alberto. El buen viver mas allá del desarrollo. Qué Hacer, nº 180, 2011, Ed. Desco: Lima. pág. 70-81

SANTOS, Boaventura de Souza; MENESES, Maria Paula (Org.). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010. 637 p.

SOUSA, Adriano Corrêa de. O novo constitucionalismo latino-americano: Um estudo comparado entre o Bem Viver e a Dignidade da pessoa humana nas culturas jurídico-constitucionais da Bolívia e do Brasil. Dissertação (Mestrado em Direito Constitucional) – Faculdade de Direito, Universidade Federal Fluminense. 2011. pág. 111.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. La pachamama y el humano. Buenos Aires: Colihue, 2012.

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Sobre o autor
Walter Gustavo Lemos

Advogado, formado em Direito pela Universidade Federal de Goiás (1999), mestrado em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2015) e mestrado em Direito Internacional - Universidad Autonoma de Asuncion (2009). Doutor em Direito Público pela UNESA /RJ (2020). Pós-doutorando em Direitos humanos pela Universidad de Salamanca. Atualmente é professor da FARO - Faculdade de Rondônia. Ex-Secretário-Geral Adjunto e Ex-Ouvidor da OAB/RO.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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