A formação do direito trabalhista no Brasil: CLT, LICC e movimentos sociais

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07/08/2017 às 18:15
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PARTE 2- O desenvolvimento da legislação trabalhista em paralelo à construção da cidadania operária

Uma construção histórica do Estado e suas relações sociais: a questão social

Antes de abordar a legislação trabalhista em si, faz-se necessário entender todo o processo que levou à necessidade de se ter uma legislação que regulasse direitos para os trabalhadores, as relações que o Estado mantinha com a sociedade e como essas relações foram o principal motivo para que se houvesse uma reivindicação de direitos trabalhistas.

O Estado Liberal, formado ao longo do período que engloba os séculos XVII a XX, tem como fatores compositores de sua estrutura o processo de surgimento do Estado Nação, de ascensão a burguesia, de surgimento e predominância do mercado como principal instituição política e econômica e de internacionalização da economia e do comércio (MORAES, 2014, p. 271). Duas correntes que podem ser ressaltadas dentro do liberalismo seriam o liberalismo econômico – autorregulação do mercado sem a intervenção estatal – e o liberalismo jurídico – Estado assume como figura que garante os direitos dos indivíduos contra o uso arbitrário do poder pelos governantes. O liberalismo, em um primeiro momento, assume lugar no plano econômico e político de forma a privilegiar somente os empoderados, que restringem os benefício da segurança e da legalidade somente a sua classe, o que configura uma pauperização das massas. É neste momento que ao Direito é atribuído o papel de agente provedor da manutenção dos aparatos jurídico que suportariam a prevalência das elites no poder, como a criação do negócio jurídico e o contrato, com um futuro aumento da liberdade contratual, apoiando-se nas bases de uma igualdade formal que não se refletia no campo material. Aqui se joga luz a um dos problemas da lógica liberal, uma vez que ela considera que todos têm a mesma capacidade, oportunidade e liberdade de escolha, ao passo que, na realidade, não é isso o que se constata. Com essa estratégia, a economia é marginalizada em relação ao direito, o que vai fazer com que, para o direito, essas relações econômicas sejam integrantes do Direito Privado, em que as relações deviam ser mediada entre as partes, sem que haja uma intervenção por parte do Estado.

É com base nessas evidências que Carl Schmitt denomina o Estado Liberal como sendo um “Estado Burguês de Direito cuja Constituição corresponde aos ideais do individualismo da burguesia” (MORAES, 2014, p. 273). O Estado Burguês de Direito é caracterizado por uma resistência a mudanças, com a finalidade primordial de autocontenção.

O individualismo, a abstenção do Estado na esfera econômica frente ao surgimento de um novo modelo socialista e a redução dos direitos fundamentais às liberdades e ao bom governo do Estado – de poderes limitados – são fatores que enunciam uma mudança, uma reviravolta no cenário político, social e econômico do mundo. É nesse momento que, com o questionamento da ideologia liberal, a crítica ao individualismo exacerbado e à exploração do capital sobre o trabalho, se observa o início da crise do liberalismo. As Revoluções Mexicana e Russa – de caráter socialista – e, principalmente, a Crise de 1929 marcaram o declínio da ideia liberal, de forma que assume uma nova política econômica, o keynesianismo, que prezava por uma intervenção estatal na economia com o objetivo de garantir o pleno emprego. É com essa mudança de concepção do Estado, de modo que ele passa a ser um incentivador, que surge o Estado Social, que “combina direitos sociais e democracia, conciliando direitos e liberdades, individuais e políticas, com os direitos sociais, econômicos e culturais que antes eram descartados pelos liberais ortodoxos” (FERREIRA, 2012, p. 10).

Logo, não se pode separar o debate acerca da questão social da lógica social capitalista, pois a “produção da questão social é vinculada às configurações assumidas pelo trabalho e pelo Estado no modo de produção capitalista” (BARISON, 2013, p. 44). À questão social são atribuídos duas situações: a primeira em que ela deve ser tratada como uma questão política, se dá quando uma crise da hegemonia da classe dominante não é visível dentro de um panorama próximo, dessa forma, o modo de pensar e de agir da classe dominante se sobrepõem, de modo a definir a questão social como uma matéria estritamente política, considerando-a assim, uma questão política. A segunda visão acerca da questão social é quando se insere a classe dominante dentro de um cenário de crise de sua hegemonia, pois é nesse momento que ela vai definir a questão social como sendo uma adversidade que deve ser combatida por meio de instrumentos repressivos do Estado, de forma a definir a questão social aqui, como um caso de polícia, um ponto que deve ser resolvido com repressão efetiva e prática (CERQUEIRA FILHO, 1982, p.28).

A questão social condensa múltiplas desigualdades medidas por disparidades nas relações de gênero, características étnico-raciais, relações com o meio ambiente e formações regionais, colocando em causa amplos segmentos da sociedade civil no acesso aos bens da civilização. Dispondo de uma dimensão estrutural [...] a questão social atinge visceralmente a vida dos sujeitos numa luta aberta e surda pela cidadania (IANNI, 1992)

 

Entende-se dessa citação de Octavio Ianni, que a questão social é fruto de todo o processo de construção da sociedade civil brasileira, assim como resultado de uma mudança no cenário econômico e político, que muitas vezes – se não todas – os agentes compositores da classe dominante tinham o poder de controlar o destino da maioria da população devido a uma política que sustentava essa prática e a um aparato jurídico que legitimava todas esses procedimentos tomando como base os conceitos de contrato e negócio jurídico.

No que se diz respeito à passagem do Estado Liberal para um Estado Social, a  situação brasileira não se deu de forma muito distinta, de modo que a Constituição de 1891, que instaura a República, pregava princípios liberais, permitindo que se tomasse forma uma “política dos governadores” que regia o país com base em acordos feitos entre as elites de Minas Gerais e São Paulo. Contudo, essa conjuntura consegue se manter somente até 1930, quando Getúlio assume um Governo Provisório. Apesar de uma morosidade na promulgação de uma constituição, é decretada a Constituição de 1934, que passa a reconhecer constitucionalmente direitos individuais. “Uma legislação trabalhista garantia a autonomia sindical, a jornada de oito horas, a previdência social e os dissídios coletivos” (ANDRADE, BONAVIDES, 2006, p. 325) e é aqui que se constata um crescimento da influência do Estado em relação à sociedade, quando se tinha um controle quase que restrito das elites sobre a maior parte da sociedade, em vista de uma política – agora decadente – liberal.

Foi nesse contexto do Governo de Vargas, que se é consolidada uma legislação que previa direitos trabalhistas, mas foi

uma legislação introduzida em ambiente de baixa ou nula participação política e de precária vigência dos direitos civis. Este período de origem e a maneira como foram distribuídos os benefícios sociais tornaram duvidosa sua definição como conquista democrática e comprometeram em parte sua contribuição para o desenvolvimento de uma cidadania ativa (CARVALHO, 2002, p. 110).

 

Há um claro protagonismo do Estado, principalmente na forma do Executivo, que permite José Murilo de Carvalho conceber o termo “estadania”, que classifica uma cultura mais voltada para o Estado do que para a representação política. Esse quadro abrange também uma ação estatal que atendesse aos anseios da classe trabalhadora. No Governo Provisório, a criação do Ministério do Trabalho foi um dos primeiros atos que enunciavam uma série de medidas que iriam romper com as particularidades que contribuíram para a constituição de um Estado marcado por “resquícios de uma ordem escravocrata e patriarcal, por um operariado urbano esparso e desorganizado” (BIAVASCHI, 2016, p. 79).

Como forma de regulação das relações trabalhistas que, até então, eram baseadas no princípio liberal que beneficiava a classe dominante e prejudicava cada vez mais os próprios trabalhadores e operários, há a formação da Consolidação das Leis Trabalhistas, que desde sua preparação foi balizada pela instalação da Justiça o Trabalho cuja vigência é marcada por uma discussão polarizada que engloba tanto argumentos que ressaltam sua rigidez incompatível com as relações modernas, quanto afirmativas que defendem que há um erro em definir a regulamentação do trabalho como o motor da competitividade (BIAVASCHI, 2016, p. 81). Com o advento da Constituição de 1937, a Justiça do Trabalho passa a ser um órgão independente e a ter um papel mediador e solucionador dos conflitos entre empregadores e empregados, de modo a ser regulado pela legislação social, mas que só terá sua instalação oficial garantida em 1941, de modo a ser integrada ao Poder Judiciário. O que se pode notar, apesar de todos os avanços no campo da legislação trabalhista, é que há uma forte oposição tanto à Justiça do Trabalho, quanto à Consolidação das Leis de Trabalho, protagonizada por um setor conservador da sociedade brasileira.

 

O pós Era Vargas e as relações trabalhistas na Constituição de 1988

    A primeira expressão constitucional que se dá após o fim do Estado Novo de Vargas é a Constituição de 1946, que como forma de preconizar e consolidar a redemocratização. O problema que não se foi levado em conta foi o fato de que a Constituição, por si só, não tinha os mecanismos para garantir o que estava escrito em seu texto. Com essa mudança de ordem jurídica que se pode afirmar a presença de um Estado Social que não consegue instaurar uma sociedade de bem-estar, sendo ele tradicional e repressor em boa parte das questões sociais ao mesmo tempo que impotente perante fortes interesses privados e corporativos dos setores mais privilegiados (BERCOVICI, 2012). Já a Constituição de 1967 perpetua uma política de Estado de cunho keynesiana – até mesmo intervencionista – no que tange aos campos econômico e trabalhista principalmente. Contudo, o “Estado Social”, que se caracteriza nessa porção da década de 60 e que se estende até meados da década de 80, é apenas uma fachada que esconde os valores autoritários que sustentam um governo militar e entre eles está a repressão da democracia.

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    Com o fim do regime militar, em 1985, há uma reunião de uma Assembleia Constituinte que teve como objetivo formular um conjunto de leis, que mais tarde se transforma na Constituição Federal de 1988. Esse texto vem com adventos no âmbito dos direitos sociais e da proteção da ordem social, resguardando, de certa forma, uma parte de seu corpo para delimitar leis de proteção aos trabalhadores. Essa constituição tem um caráter marcante, pois se ergue em “face à fragilidade das instituições e à pouca confiabilidade no sistema legal” (ASSIS, 2013, p. 8), fatores esses que refletem uma necessidade de constitucionalização de direitos e garantias.

    No que diz respeito ao que se prevê pelo texto constitucional, pode ser observado uma ampliação dos direitos individuais, de modo que eles têm caráter de patamar mínimo, o que faz com que eles só possam ser ampliados dali pra frente, nunca suprimidos mediante legislações infraconstitucionais. É com base na estipulação do princípio da igualdade que se funda a garantia de tratamento igual tanto para trabalhadores rurais quanto urbanos, caracterizando um tratamento isonômico, além disso se faz presente uma regulação que delimita as diferenças entre os gêneros em ambientes de trabalho, de tal forma que proíbe “diferenças salariais, exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil” (ASSIS, 2013, p. 9-10). Adicional a essas garantias, há um combate à discriminação de gênero em ambiente de trabalho. Ademais, consta no artigo sétimo

a proteção a relação de emprego no que se refere à despedida arbitrária; a previsão de seguro-desemprego para as situações em que esse resultar de ato involuntário; a institucionalização do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço como regime único para todos os trabalhadores; a estipulação de salário mínimo; a previsão de piso salarial; a proteção contra a diminuição dos salários, salvo negociação coletiva (SILVA, 2012, p. 287)

 

    No artigo oitavo, há uma legitimação das organizações formadas por meio da associação coletiva dos trabalhadores, assim como uma consagração destas como detentoras de liberdade de agrupamento coletivo, de modo a não sofrer nenhuma interferência estatal. Além disso, o sindicato assume dever de proteger os interesses da categoria que o integra perante as instâncias administrativas e judiciais. Enquanto isso, o artigo nono garante o direito de greves, ao passo que o artigo décimo assegura “aos trabalhadores o direitos de representação e órgãos públicos colegiados, em que sejam discutidos assuntos de interesses profissionais ou previdenciários” (SILVA, 2012, p. 289).

    Com essa sucinta exposição, percebe-se que os direitos dos trabalhadores têm como objetivo melhorar a condição social dessa classe, mas sempre com o cuidado de se observar caso a empregabilidade de tais direitos está na condição de ferir preceitos constitucionais. Os direitos sociais se fazem imprescindíveis no que se diz respeito à seguridade de direitos fundamentais, uma vez que, querendo ou não, se caracterizam como tal dentro do ordenamento jurídico brasileiro.

 

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