Inquéritos e ações penais em curso na interpretação do art. 33, §4º, da lei de drogas.

10/08/2017 às 16:41
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O presente texto aborda a polêmica entre duas Turmas do Superior Tribunal de Justiça, além solução dada pela Terceira Seção, relativamente ao reconhecimento do tráfico privilegiado quando o agente responde a ações ou há inquéritos em curso.

INTRODUÇÃO

O delito por que mais prendemos, hoje, no Brasil, é apontado pelas estatísticas como sendo o tráfico de drogas. Levantamentos do CNJ¹, com dados de Tribunais de Justiça dos Estados, indicam – para prisões provisórias – um percentual de 29% dos encarcerados para o tráfico, seguido do roubo e homicídio - respectivamente, 26% e 13%. Vale ressaltar o atual estado de calamidade no sistema carcerário nacional, com excedente de presos em praticamente todas as unidades da federação; além disso, chegamos a uma proporção de presos provisórios, no país, em torno de 40%. Ainda assim, dentro deste quadro calamitoso, há quem diga que o Brasil prende pouco. Basta que o parâmetro de discussão seja a taxa de homicídios impunes no país: a chamada cifra-negra. É que a esmagadora maioria do crime dos crimes, o atentado contra o bem jurídico mais fundamental do homem - a sua vida -, só é apurada em baixíssimos percentuais. Não é à toa a sensação geral de impunidade, o medo – muitas vezes explorado de forma midiática – e o sentimento de impotência frente ao fenômeno da criminalidade violenta.

Não é difícil encontrar, por outro lado, aqueles que vejam no tráfico de drogas uma relação com outros tipos de crimes até mais grave, como os homicídios causados por facções criminosas na disputa pelo comércio do entorpecente. Resta indagar, no entanto, se é economicamente viável pretender criminalizar um delito de perigo abstrato – o tráfico - de forma tão repressora, na tentativa de reduzir crimes a ele associados – como um eventual homicídio relacionado ao comércio de drogas. A opção do legislador, neste caso, tem nos dado um aumento no número de encarcerados - sem que o Estado possua condições mínimas de abrigá-los – e também a ineficiência no combate ao crime, notadamente nos homicídios, pois estes têm aumentado de forma alarmante. A tutela penal do tráfico de drogas, assim, pensamos, da forma como vem sendo trabalhada, apresenta-se ilegítima e inadequada². 

Adotando uma linha de intransigência contra o tráfico, a legislação brasileira optou por puni-lo com reclusão de 5 a 15 anos. Mas num sopro de racionalidade, ainda que timidamente, também optou-se, por questões político-criminais e em atenção à razoabilidade e à realidade do nosso país, por distinguir o tratamento do traficante periculoso que atenta habitualmente contra a segurança da coletividade, e aqueles que eventualmente e com uma danosidade social diminuída, tenha contra si a imputação do tipo de tráfico de drogas. Registre-se ainda dado importante para observação do contexto histórico-político das prisões no Brasil: a maior parte das mulheres presas estão encarceradas por tráfico de drogas, muito provavelmente apenas por vínculos com seus companheiros. Pois bem, tal ponderação legislativa, na tentativa de racionalização da sangria do encarceramento, é prevista no §4º, do art. 33, da lei de drogas, cujo texto prevê o seguinte:

“Nos delitos definidos no caput e no § 1o deste artigo, as penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços, vedada a conversão em penas restritivas de direitos, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa.” (Lei de drogas)

A redução de pena prevista faz com que a reprimenda possibilite, em tese, regime semiaberto ou até mesmo aberto. Ademais, a vedação à conversão das penas em restritivas de direito, originalmente prevista no texto, foi suspensa por força da Resolução n. 5 do Senado Federal, situação que propicia uma série de vantagens ao acusado que preencha os requisitos do dispositivo, inclusive a substituição de penas. Pela redação do citado parágrafo, faz jus à redução o agente que: a) seja primário, b) portar bons antecedentes, c) não se dedicar à atividade criminosa e c) não integrar organização criminosa. De todos esses conceitos, o maior causador de divergências é o que tatra o problemático conceito de dedicação à atividade criminosa. Veremos, portanto, em análise documental e a partir  de recentes discussões no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, por ser este o intérprete da legislação federal, como este Tribunal entende o fato de o agente responder a inquéritos policiais ou ações em curso para fins de interpretação do elemento de dedicação à atividade criminosa, requisito para a concessão da minorante prevista no §4º, do art. 33, da lei de drogas.


A DIVERGÊNCIA NO ÂMBITO DO STJ

No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, instaurou-se divergência relativa à possibilidade do reconhecimento da minorante prevista na lei de drogas – o chamado tráfico privilegiado. Para a Quinta Turma, inquéritos policiais em andamento e ações penais em curso inviabilizam o reconhecimento do instituto, isto porque haveria no caso a identificação de que o sujeito é dedicado à atividade criminosa. Não há, para os ministros, qualquer violação à presunção de inocência ou qualquer vício interpretativo, pois as ações e investigações demonstrariam ser o agente alguém dedicado à criminalidade. A Sexta Turma, por outro lado, possui entendimento oposto. Nesta, os inquéritos e ações em curso estão acobertados pela presunção de inocência do acusado e, portanto, não podem ser valoradas em seu desfavor na interpretação de institutos jurídicos. Para unificar o entendimento do Tribunal, a Terceira Seção enfrentou a questão no EREsp 1.431.091-SP, com relatoria do ministro. Felix Fischer, julgado em 14/12/2016, e publicado no DJe em 1/2/2017.

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A Turma, por maioria de votos, entendeu pela vedação do reconhecimento da causa de diminuição de pena em face da dedicação à atividade criminosa quando o agente responde a ações penais ou é investigado em inquéritos policiais. Ponderou-se nos seguintes termos:

“A inserção no ordenamento dessa causa de diminuição teve por escopo diferenciar aquele que não é dedicado a ilícitos penais, daquele que efetivamente se dedica ao tráfico de drogas com maior potencialidade lesiva à sociedade. Assim, a regra não deve ser a aplicação da benesse de forma desmedida, mas sua aplicação somente deve ocorrer em casos singulares, quando preenchidos os requisitos, os quais merecem interpretação restritiva, de modo a prestigiar quem efetivamente mereça redução de pena. É consabido que inquéritos e ações penais em curso não podem ser valoradas como maus antecedentes, de modo a agravar a pena do réu quando das circunstâncias judiciais avaliadas em dosimetria de pena na primeira fase, para fins de aumentar a pena-base. Contudo, na espécie, não se trata de avaliação de inquéritos ou ações penais para agravar a situação do réu condenado por tráfico de drogas, mas como forma de afastar um benefício legal, desde que existentes elementos concretos para concluir que ele se dedique a atividades criminosas, sendo inquestionável que em determinadas situações, a existência de investigações e/ou ações penais em andamento possam ser elementos aptos para formação da convicção do magistrado.” (Info 596 STJ)              

Chama atenção o ponto de tensão da decisão, quando o Tribunal reconhece existir uma vedação à consideração de ações penais em curso e investigações em prejuízo do agente frente à presunção de inocência,  mas pondera que nenhum direito seria absoluto e que a 'benesse' legal não poderia ser aplicada indiscriminadamente. A Seção do Tribunal lembra, inclusive, a inviabilidade de se considerarem inquéritos e ações em curso para fins de exasperação da pena, o que, por outro lado, não seria uma regra para a interpretação da causa de diminuição de pena.

Há, aqui, uma clara atitude ativista por parte do Tribunal na construção do conceito. Ademais, optou-se por uma postura que, a nosso sentir, embora possa parecer equilibrada e ponderada, viola a decisão do Poder competente para decidir acerca da política criminal no nosso país, que é o Legislativo. Conforme doutrina Ferrajoli³, o constitucionalismo hodierno exige  algo além da estrita legalidade. Além da garantia de respeito às leis, por parte do Estado, em defesa das liberdades do cidadão, é preciso que as leis respeitem os direitos fundamentais positivados nos textos constitucionais, como requisito de validade substancial. O Tribunal, no entanto, ao construir  o conteúdo do requisito “atividade criminosa”, incluindo ações penais em curso e investigações, entra em conflito com o disposto no art. 5º, LIII, que determina a proibição de que se considere culpado alguém antes do trânsito em julgado de sentença condenatória.


CONCLUSÃO

Atualmente, a Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, encerrando divergência entre a Quinta e Sexta Turmas, aceita o reconhecimento de ações penais em curso e inquéritos policiais em prejuízo do agente. Por consequência, diz ser lícito aos magistrados que optem por não reconhecer a causa de diminuição de pena prevista no §4º, do art. 33, da lei de drogas. Segundo se depreende do julgado, não se trata de vedação absoluta, devendo o magistrado avaliar as circunstâncias do caso concreto.

A decisão entra em conflito com o direito fundamental à presunção de inocência, positivado como fundamental na atual Constituição Federal brasileira. Os argumentos do Tribunal, no sentido de que os direitos não são absolutos, choca-se ainda com o postulado da Separação dos Poderes, uma vez que não compete ao judiciário dizer qual política criminal é mais adequada. O Legislador, em processo legislativo democrático, determinou que se distinguisse entre o traficante habitual e periculoso, e um traficante ocasional, de menor periculosidade. Não comporta ao aplicador da norma decidir se o instituto é ou não adequado – o que pode e deve ser algo de embate político -, senão que conceder o direito a quem tem.
  


Referências:

(1) CNJ. Disponível em <<http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/84371-levantamento-dos-presos-provisorios-do-pais-e-plano-de-acao-dos-tribunais>>

(2) http://emporiododireito.com.br/descriminalizacao-das-drogas-violencia-impunidade-e-administracao-de-recursos/

(3) FERRAJOLI, Luigi. Positivismo crítico, derechos y democracia. Isonomía. no. 16. abril de 2002.

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Sobre o autor
Felinto Martins Filho

Advogado criminalista. Pós-graduado em Direito Penal e Processual Penal pela PUC-SP.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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