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O direito de uso do jazigo e o crime de violação de sepultura

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16/08/2017 às 13:00
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2. O CRIME DE VIOLAÇÃO DA SEPULTURA

Prevê o artigo 211 do Código Penal:

Art. 211. - Destruir, subtrair ou ocultar cadáver ou parte dele:

Pena - reclusão, de um a três anos, e multa.

Violar significa devassar ou invadir e profanar, tratar com irreverência ou macular. O objeto é a sepultura ou urna funerária. Reserva-se a primeira figura do tipo para quem abre a sepultura ou invade o sepulcro, enquanto a segunda serve para quem infama o mesmo objeto. Esta última é o recipiente próprio que guarda cinzas (urna cinerária) ou ossos (urna ossaria), estando equiparada por lei à sepultura. Mas não se confunde com o esquife ou ataúde, destinados a receber o cadáver e não suas cinzas ou ossos. Assim sem cinzas ou restos mortais, ela não é objeto de proteção penal.

Tanto é protegido pela norma o cadáver inteiro como o descomposto em partes, ou reduzido a piedosos resíduos. São alcançadas, igualmente, as sepulturas ainda que não contenham o cadáver todo (nas catástrofes, como nos desastres de avião, pode ocorrer que sejam encontrados e enterrados apenas pedaços do corpo): lá há restos mortais humanos.

Todas as sepulturas merecem igual proteção, sejam em cemitérios públicos ou particulares. Configura qualquer ato de vandalismo sobre a sepultura ou de alteração chocante, de aviltamento ou de grosseira irreverência, a profanação (RT 479/340).

2.1. A OBJETIVIDADE JURÍDICA

No crime em discussão, Carrara (Programma del corso di diritto criminale, parágrafo 3.185) entendia que o bem tutelado era a saúde pública. Eugenio Cuello Calón (Derecho penal, 1936, página 286) entendia que se fala na defesa da religião. Para Magalhães Noronha (Direito penal, terceiro volume, 1977, pág. 89), o objeto jurídico ainda é mesmo do artigo 210 do Código Penal. É um direito dos vivos que a lei protege, uma vez que o morto não é titular de direitos.

Não se tutela a saúde pública, que é bem protegido por outo titulo do Código Penal. Para Hugo Nigro Mazzilli ( O crime de violação da sepultura), o respeito aos mortos provém do culto aos antepassados; é mais um valor social de cunho ético, politico e religioso do que jurídico. Mas o direito se preocupa não só com a sucessão do morto, numa espécie de perpetuação da família, como, ainda, com o próprio morto ou, pelo menos, com as pessoas que reverenciam a sua memória. Mas a lei brasileira não exige, porém, o respeito aos mortos, porque se o fizesse estaria criando inadmissível forma de culto obrigatório (artigo 5º, VI e VII, da Constituição de 1988), mas pode obrigar, e obriga, ao respeito de sentimentos daqueles que respeitam os mortos e os locais onde eles são sepultados.

2.2. SUJEITOS DO DELITO

O agente pode ser qualquer pessoa, mesmo o proprietário do túmulo ou da urna, que, praticando as ações mencionados na lei, ofende o sentimento de piedade para com os mortos. O sujeito . O sujeito passivo é a coletividade e, em segundo plano, a família do morto.

2.3. AÇÃO FÍSICA: VIOLAÇÃO E PROFANAÇÃO

A primeira forma é violar, abrir, devassar, descobrir, escavar. Sendo sepultura comum (vala ou cova). Se for túmulo, será violado quando houver abertura que exponha igualmente o cadáver. Não se exige, em qualquer das hipóteses, a remoção de cadáver, de seus restos ou cinzas. Nem mesmo a exumação. Basta que se altere a sepultura, como ensinou Magalhães Noronha (obra citada, pág. 90).

Profanar é tratar com desprezo e irreverência; é macular e aviltar. Profana sepultura quem remove suas pedras, danifica, ornamentos, apaga inscrições, escreve palavras injuriosas ou pornográficas, coloca objetos grotescos ou obscenos, provocando irrisão, zombaria etc. Pode a urna ser objeto de detritos, excrementos, o que acontece com a sepultura. Quem viola profana, mas nem sempre quem profana viola.

Há crime impossível se envolve sepulcro ou urna vazia, à luz do artigo 17 do Código Penal.

2.4. OBJETO MATERIAL

Na lei, no artigo 211, há a expressão sepultura, que abrange o sepulcro, a tumba e o túmulo. Essa sepultura deve conter restos mortais de alguém. Uma sepultura vazia está fora do objeto do artigo. Está fora do artigo ainda o cenotáfio, monumento erigido à memória de alguém, mas que não contém seu corpo, ao contrário do que sustentou Bento de Faria (Código penal brasileiro comentado, volume IV, pag. 453).

A lei penal não exige que a sepultura esteja em cemitério, público ou particular, em templo etc. Pode o crime ser cometido contra cova de beira de estrada.

2.5. ELEMENTO SUBJETIVO

O crime exige o dolo genérico, constituído pela vontade e a representação do resultado proibido pelo dispositivo. Para Nelson Hungria (Comentários ao código penal, volume VII, pág. 75) “especifica-se o dolo do crime pelo fim de violar ou profanar, sabendo o agente que procede contra ius”.

Disse Guilherme de Souza Nucci (Código penal comentado, oitava edição, pág. 833) que no tocante à profanação – que se liga a ultraje, desonra – é preciso haver o elemento subjetivo do tipo específico, ou seja, a particular vontade de macular a memória do morto ou seu sepulcro.

A jurisprudência tem, algumas vezes, exigido dolo específico, ou um elemento subjetivo do injusto subentendido no tipo penal, mas outras vezes tem-se contentado com o dolo genérico (pelo dolo específico: RT 443/435; RF 243/265; RJTJSP 21/458: Justitia 76/202, dentre outros). Já pelo dolo genérico (RT 305/106; RF 197/328, dentre outros).

Falta tipicidade, por ausência de dolo, na conduta de sócio-gerente de cemitério que diante da inadimplência de parcelas referentes a manutenção e conservação da sepultura, exuma restos mortais conforme permitia o contrato (RT 790/656).

Nâo há tipificação culposa para o crime.

2.6. CONSUMAÇÃO E TENTATIVA

Trata-se de delito material que consuma-se com a efetivação das ações físicas. Na violação, quando a sepultura ou urna se torna imprópria a seu fim, relativamente ao cadáver ou suas cinzas. Na profanação, não se exige tal evento. Admite-se a tentativa.

2.7. CLASSIFICAÇÃO

Trata-se de crime comum, material, instantâneo, unissubjetivo e plurissubsistente.

2.8. CONCURSO DE DELITOS

Pode o crime em tela concorrer com outros crimes. Há a questão da violação com a finalidade de furtar. Não havendo subtração, mas apenas violação da sepultura, responde o agente pelo crime especial (artigo 210 do CP) e não por tentativa de furto. Caso haja subtração de algo colocado no túmulo, sem que exista a violação, responde o agente por furto. Se furto volta-se ao cadáver entende-se configurar o crime do artigo 211 do Código Penal.

Se há dano aplica-se o princípio da subsidiariedade, de forma a incidir apenas o crime do artigo 210 do Código Penal. Hugo Nigro Mazzilli (obra citada) ensinou que o crime de dano pode concorrer com o do artigo 210 do CP, e o mesmo sucede com outros crimes patrimoniais. Disse que contrariando a regra civilística de que as construções no solo pertencem ao dono do imóvel, nos casos de túmulos tem-se entendido que estes, os materiais com que são construídos e seus ornamentos (estátuas, vasos, cruzes etc) são dos concessionários, numa relação de direito administrativo (RT, 374/72).

A retirada de dentes do cadáver configura o crime do artigo 211, ou mesmo do artigo 210 do Código Penal, e não de furto, pois cadáver é coisa fora do comércio, a ninguém pertence (RT 608/305), salvo se for de instituto científico ou peça arqueológica (TJSP, RT 619/291).

Se a finalidade é furtar, a violação de sepultura é absorvida pelocrime de furto (RT 598/313).

No caso da exumação de cadáver com violação das formalidades legais, aplica-se o artigo 67 da Lei de Contravenções Penais.

O STJ enfrentou a matéria envolvendo furto de crucifixo de sepultura assim decidindo:

"O paciente foi denunciado pelo furto de uma cruz de concreto de um túmulo (dez reais), bem como por estelionato, em razão de se ter passado por pedreiro especializado na construção de sepulcros e recebido valores para a construção de sepulturas que não foram sequer iniciadas. Do estelionato, viu-se absolvido ao fundamento de que se tratava de mero descumprimento contratual e, do furto, diz-se que se mostrava atípica a conduta dado o princípio da insignificância. Prosseguindo o julgamento do especial interposto pelo MP referente unicamente ao furto, a Turma, após o voto de desempate da Min. Jane Silva (Desembargadora convocada do TJ-MG), entendeu manter a absolvição determinada pela aplicação do princípio da insignificância feita pelo Tribunal a quo. Anotou que este Superior Tribunal vem aceitando a aplicação de tal princípio até diante do furto consumado e qualificado, situações mais gravosas que a dos autos. Outrossim, firmou que o valor da res furtiva, por si só, não é fator determinante da aplicação do referido princípio, porém deve ser sopesado com especial atenção, quanto mais se ínfimo, como no caso. Precedentes citados: HC 56.519-RJ, DJ 26/6/2006, e REsp 794.021-RS, DJ 3/4/2006.

REsp 708.324-RS , Rel. originário Min. Hamilton Carvalhido, Rel. para o acórdão Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 11/3/2008."

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Trago à colação, outrossim, caso envolvendo concurso material ainda objeto de exame pelo Superior Tribunal de Justiça:

AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. HOMICÍDIO QUALIFICADO CONEXO COM CRIMES DE VIOLAÇÃO DE SEPULTURA E CORRUPÇÃO DE MENORES. DOSIMETRIA. PENA-BASE. CULPABILIDADE. ACENTUADA REPROVABILIDADE DA CONDUTA DELITUOSA. CIRCUNSTÂNCIAS DO CRIME. FUNDAMENTAÇÃO CONCRETA E IDÔNEA. QUANTUM PROPORCIONAL. AGRAVO REGIMENTAL IMPROVIDO. 1. É válida a majoração da pena-base, tendo em vista a presença de elementos que extrapolam consideravelmente os normais à espécie, consistentes nas circunstâncias dos crimes. 2. A reprovabilidade da conduta delituosa praticada pelo agravante foi bem evidenciada pelo modus operandi empregado no cometimento do delito - o agravante era líder de um grupo gótico que se autointitulava "vampiros". Por razões homofóbicas, ele e dois amigos atraíram a vítima para um cemitério, fizeram-na desmaiar com um soco, a estrangularam, bateram nela com uma cruz, morderam seu pulso, provaram seu sangue e depois a deixaram em uma cova. 3. A fundamentação apresentada pelas instâncias ordinárias, soberanas na análise dos fatos, está concisa, mas suficiente, atendendo ao que foi deliberado pelo Tribunal do Júri. 4. Agravo regimental improvido.

(AgRg no AREsp 613134 / PA, AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL 2014/0303801-5, Relator (a) Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, Órgão Julgador - QUINTA TURMA, Data do Julgamento 02/06/2015, DJe 09/06/2015)

2.9. CONCURSO DE AGENTES

Admite-se a coautoria (domínio do fato) e a participação, à luz do artigo 29 do Código Penal.

A participação terá duas formas fundamentais: a instigação e a cumplicidade, ainda chamada de auxílio. A participação por omissão em delitos comissivos dolosos é solucionada com subordinação aos esquemas de omissão imprópria, mas não é possível construir uma instigação por omissão. Pode haver, entretanto, cumplicidade por omissão, onde a inércia do agente deve significar alguma cooperação, em congruência com o dolo que pode ser eventual. Dela se afasta a conivência, onde a inércia do sujeito não significa objetiva colaboração para o delito, nem ele deseja cooperar ainda que torça pelo sucesso da ação do autor.

A instigação, forma de colaboração, é a dolosa colaboração de ordem espiritual objetivando o cometimento de um crime doloso. Tal instituto poderá abranger a determinação e a instigação propriamente dita. A primeira é a conduta que faz surgir no autor direto a resolução que o conduz à execução. Já a instigação propriamente dita compreende a conduta que faz reforçar e desenvolver no autor direto uma resolução ainda não concretizada, mas preexistente.

A cumplicidade é a dolosa colaboração de natureza material que objetiva o cometimento de um crime doloso. Poderá ser necessária ou não necessária. Tal é muito importante na determinação da significação da ação do participe para o crime (RHC 8.698 – SP, DJ de 18 de setembro de 2000, Relator Ministro Hamilton Carvalhido).

Como então fazer a distinção entre cúmplice necessário e cúmplice não necessário? A partir das ideias de Ordeig sobre a teoria dos bens escassos, Nilo Batista expôs que ela se desenvolve em três princípios, em que se teria afirmada a cumplicidade necessária:

a) deve prescindir-se que teria ocorrido sem a colaboração em exame;

b) toma-se como princípio orientador que a colaboração tenha especial importância;

c) uma prestação de serviços sem a qual não se poderia fazer isso ou aquilo.

2.10. SUSPENSÃO CONDICONAL DO PROCESSO

A teor do artigo 89 da Lei 9.099/95 permite-se, sendo crime cuja pena minima não ultrapassa 1 (um), o benefício de suspensão condicional do processo (sursis processual).

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Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. O direito de uso do jazigo e o crime de violação de sepultura. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5159, 16 ago. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/59763. Acesso em: 26 dez. 2024.

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