3. OS REGIMES JURÍDICOS DOS BENS VINCULADOS À PRESTAÇÃO DOS SERVIÇOS PÚBLICOS
Para elucidar a questão do regime jurídico dos bens vinculados à prestação dos serviços públicos, é salutar compreender que os bens utilizados (na posse direta das concessionárias) possuem diversas origens, conforme explanado acima.
A doutrina, contudo, está dividida entre os que afirmam veementemente que todos os bens vinculados à prestação dos serviços públicos são públicos, logo, obedecem ao regime jurídico de direito público (corrente doutrinária majoritária) e os que distinguem as diversas origens dos bens utilizados na prestação dos serviços públicos, diferenciando os regimes jurídicos conforme a natureza dos respectivos bens.
O professor Marçal Justen Filho (20) traz importante reflexão sobre o tema:
"O Direito produz um tratamento jurídico unitário para o conjunto de bens aplicados à prestação do serviço delegado. Ainda que se trate de uma pluralidade de bens e direitos, alguns públicos e outros privados, a disciplina jurídico considera tais bens em seu conjunto, inclusive para reconhecer a titularidade jurídica do concessionário.
Essa questão é muito peculiar e não tem sido bem resolvida no âmbito do Direito Administrativo. É inquestionável que alguns bens aplicados à prestação do serviço público são inquestionavelmente públicos. Transfere-se ao concessionário apenas a ‘posse’ direta sobre eles – se é que tal se poderia cogitar de posse em sentido próprio."
É evidente que a controvérsia não é discussão inútil. A aplicação do regime jurídico de direito público ou privado será o responsável pela viabilidade econômica de uma concessão de serviço público, envolvendo inúmeros interesses, inclusive o público, pois, caso as concessões não atraiam a iniciativa privada, os serviços públicos não poderão ser prestados de forma adequada.
Para rechaçar a corrente doutrinária que defende que a totalidade dos bens vinculados à prestação dos serviços públicos obedecem ao regime de direito público, é importante observar os seus fundamentos, conforme se fará a seguir.
Inicialmente, é importante demonstrar os dispositivos legais que aparentemente sustentam o raciocínio da corrente doutrinária em comento.
O artigo 65 do Código Civil ("são públicos os bens do domínio nacional pertencentes à União, aos Estados, ou aos Municípios. Todos os outros são particulares, seja qual for a pessoa a que pertencerem") era o dispositivo legal que fornecia o conceito de bens públicos.
O dito dispositivo, interpretado ao pé da letra, deixa claro que até os bens das autarquias seriam privados – o que é um engano. No entanto, evidentemente, tal preceito não serve de base para a definição dos bens das entidades da Administração Indireta, uma vez que, em 1916, quando foi promulgado o Código Civil, não se cogitava das mesmas. Frise-se que o artigo 98 do novo Código Civil já menciona que "são públicos os bens do domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno; todos os outros serão particulares, seja qual for a pessoa a que pertencerem".
Já o artigo 66, II, do antigo Código Civil, que definia os bens de uso especial, trazia importante subsídio, pois deixava claro que eram bens públicos dessa natureza "os edifício ou terrenos aplicados a serviço ou estabelecimento federal, estadual ou municipal". O artigo 99, II, do novo Código Civil, prescreve que são bens públicos "os de uso especial, tais como edifícios ou terrenos destinados a serviço ou estabelecimento da administração federal, estadual, territorial ou municipal, inclusive os de suas autarquias".
Interpretando os artigos supracitados do antigo Código Civil, a professora Maria Sylvia Zanella Di Pietro (21) traz a seguinte lição:
"Ora, dentre as entidades da Administração Indireta, grande parte presta serviços públicos; desse modo, a mesma razão que levou o legislador a imprimir regime jurídico publicístico aos bens de uso especial, pertencentes à União, Estados e Municípios, tornando-os inalienáveis, imprescritíveis, insuscetíveis de usucapião e de direitos reais, justifica a adoção de idêntico regime para os bens de entidades da Administração Indireta afetados à realização de serviços públicos.
É precisamente essa afetação que fundamenta a indisponibilidade desses bens, com todos os demais corolários.
Com relação às autarquias e fundações públicas, essa conclusão tem sido aceita pacificamente. Mas ela é também aplicável às entidades de direito privado, com relação aos seus bens afetados à prestação de serviços públicos.
É sabido que a Administração Pública está sujeita a uma série de princípios, dentre os quais o da continuidade dos serviços públicos. Se fosse possível às entidades da Administração Indireta, mesmo empresas públicas, sociedades de economia mista e concessionárias de serviços públicos, alienar livremente esses bens, ou se os mesmos pudessem ser penhorados, hipotecados, adquiridos por usucapião, haveria uma interrupção do serviço público. E o serviço é considerado público precisamente porque atende às necessidades essenciais da coletividade. Daí a impossibilidade da sua paralisação e daí a sua submissão a regime jurídico publicístico.
Por isso mesmo, entende-se que, se a entidade presta serviço público, os bens que estejam vinculados à prestação do serviço não podem ser objeto de penhora, ainda que a entidade tenha personalidade jurídica de direito privado.
Também pela mesma razão, não podem as entidades prestadoras de serviços públicos alienar os seus bens afetados a essa finalidade, sem que haja a prévia desafetação; embora a Lei n.° 8.666, de 21.06.1993, só exija autorização legislativa para a alienação de bens imóveis das autarquias e fundações, encontra-se, às vezes, em leis esparsas concernentes à prestação de serviços públicos concedidos, norma expressa tornando inalienáveis os bens das empresas concessionárias, sem a prévia autorização do poder concedente.
Portanto, são bens públicos de uso especial os bens das autarquias, das fundações públicas e os das entidades de direito privado prestadoras de serviços públicos, desde que afetados diretamente a essa finalidade."
A conclusão da professora Maria Sylvia Zanella Di Pietro é taxativa, isto é, ela entende que os bens utilizados por empresas privadas prestadores de serviços públicos são bens públicos de uso especial, pois estão afetados ao serviço público e, portanto, devem obedecer ao regime jurídico de direito público, com todas as suas restrições.
Seguem o mesmo raciocínio da professora Di Pietro, os professores José Arthur Diniz Borges (22); Hely Lopes Meirelles (23); Celso Antônio Bandeira de Mello (24); Odete Medauar (25), entre outros.
Para os autores mencionados acima, em síntese, os bens vinculados à prestação do serviço público devem obedecer ao regime jurídico de direito público. Destarte, no entender desses autores, os bens vinculados seriam bens que, em razão de sua destinação ou afetação a fins públicos, estariam fora do comércio jurídico de direito privado; vale dizer que, enquanto mantivessem essa afetação, não poderiam ser objeto de qualquer relação jurídica regida pelo direito privado, como, por exemplo, compra e venda, doação, permuta, hipoteca, penhor, comodato, locação, posse ad usucapionem etc. Se isto já não decorresse da própria afetação desses bens, a conclusão seria a mesma pela análise dos artigos 67, 69 e 756 do antigo Código Civil, segundo os mesmos autores, pois o primeiro artigo estabelece a inalienabilidade dos bens públicos, nos casos e forma que a lei prescrever, o segundo determina serem coisas fora do comércio as insuscetíveis de apropriação e as legalmente inalienáveis; e o terceiro dispõe que só as coisas alienáveis podem ser objeto de penhor, anticrese ou hipoteca.
Vale destacar, ainda, que, segundo esse entendimento, deve-se aplicar o artigo 100 da Constituição Federal, que exclui a possibilidade de penhora de bens públicos, ao estabelecer processo especial de execução contra a Fazenda Pública.
Em síntese, os adeptos dessa corrente doutrinária defendem que a origem e a natureza dos bens vinculados continuam sendo públicas; sua destinação continua sendo de interesse público, mas apenas sua administração é transferida a uma entidade de personalidade jurídica de direito privado, que os utilizará na forma da lei; tanto assim que – advertem esses autores -, na extinção da empresa, os bens vinculados devem reverter ao patrimônio estatal. Percebe-se claramente, portanto, que os autores acima citados parecem confundir os institutos, utilizando erroneamente a expressão "bens vinculados", quando na verdade as características que mencionam dizem respeito aos "bens reversíveis".
O professor Marcos Juruena Villela Souto (26), discorda dos autores acima citados, afirmando o seguinte:
"O patrimônio afetado ao serviço, se integralizado no capital social da empresa estatal, se submete, na lição de CAIO TÁCITO, ao regime jurídico de direito privado, ainda que doutas vozes sustentem tratar-se de bem público sob administração especial. (...)"
O professor Marcos Juruena Villela Souto ressalta muito bem que o Decreto-lei n.° 200, de 25.02.1967, em seu artigo 5°, procurou estabelecer distinções entre as autarquias, empresas públicas e sociedades de economia mista, a saber:
"I. autarquia – o serviço autônomo, criado por lei, com personalidade jurídica, patrimônio e receita próprios, para executar atividades típicas da Administração Pública, que requeiram, para seu melhor funcionamento, gestão administrativa e financeira descentralizada;
II. empresa pública – a entidade dotada de personalidade jurídica de direito privado, com patrimônio próprio e capital exclusivo da União, criada por lei para exploração de atividade econômica que o governo seja levado a exercer por força de contingência ou de conveniência administrativa, podendo revestir-se de qualquer das formas admitidas em direito;
III. sociedade de economia mista – a entidade dotada de personalidade jurídica de direito privado, criada por lei para a exploração de atividade econômica, sob forma de sociedade anônima, cujas ações com direito a voto pertençam, em sua maioria, à União ou entidade da administração indireta."
O professor Caio Tácito (27) - citado pelo mestre Marcos Juruena Villela Souto -, analisando a situação dos bens transferidos pelo Município de São Paulo à Empresa Municipal de Urbanização – EMURB, a título de integralização do capital social, sustenta que tal patrimônio perde sua característica original; não existindo distinção de tratamentos em razão de a integralização se operar em dinheiro ou em imóveis. Embora afetados a um interesse público, os bens, na opinião do professor, desligam-se do patrimônio do município e passam a compor o patrimônio da empresa, podendo ser utilizados, onerados ou alienados na forma estatutária.
Concordando com a posição adotada pelos professores Caio Tácito e Marcos Juruena e discordando dos demais autores supracitados, tem-se o magistério do professor José dos Santos Carvalho Filho (28):
"Segundo clássica lição de HELY LOPES MEIRELLES, os bens das entidades paraestatais também se consideram bens públicos. Eis as palavras do renomado publicista: ‘Quanto aos bens das entidades paraestatais (empresas públicas, sociedades de economia mista, serviços autônomos etc), entendemos que são, também, bens públicos com destinação especial e administração particular das instituições a que foram transferidos para consecução dos fins estatutários’.
Baseia-se o autor no fato de que tais bens são públicos em sua origem e em seus fins, e que apenas a sua administração é que é confiada à entidade paraestatal. Ressalva adiante, porém, que os referidos bens são sujeitos à oneração e sujeitam-se à penhora por dívidas da entidade, podendo, ainda, ser alienados na forma como o dispuserem seus estatutos.
O ensinamento do grande autor, entretanto, se nos afigura contraditório. Se incide sobre tais bens a normatividade básica atribuída aos bens privados, fica difícil caracterizá-los como bens públicos pela só circunstância de provirem de pessoas de direito público e de terem a finalidade de atender os fins institucionais da entidade.
Com todo o respeito que merece o grande autor, permitimo-nos discordar de seu entendimento. Parece-nos, ao contrário, que os bens das pessoas administrativas privadas, como é o caso das empresas públicas, sociedades de economia mista e fundações públicas de direito privado, devem ser caracterizados como bens privados, mesmo que em certos casos a extinção dessas entidades possa acarretar o retorno dos bens ao patrimônio da pessoa de direito público de onde se haviam originado. O fator que deve preponderar na referida classificação é o de que as entidades têm personalidade jurídica de direito privado e, embora vinculadas à Administração Direta, atuam normalmente com a maleabilidade própria das pessoas privadas.
Por conseguinte, o regime jurídico dos bens das pessoas privadas da Administração será, em princípio, o aplicável às demais pessoas privadas. Pode ocorrer que, excepcionalmente, a lei instituidora da pessoa administrativa disponha de modo diverso, criando alguma regra especial de direito público. Essa norma, é claro, será derrogatória da de direito privado, mas os bens continuarão a ser considerados como privados.
Como sucede, em regra, com as pessoas privadas, a alienação e a oneração de seus bens devem atender ao que dispõem os respectivos regulamentos.
Aliás, não custa lembrar que a Lei n.° 6.404/76, que dispõe sobre as sociedades anônimas, prevê, no artigo 242, que os bens de sociedades de economia mista, entidades integrantes das pessoas administrativas privadas, são normalmente executáveis e penhoráveis. Ora, se a própria lei os reconhece como sujeitos à penhora é porque, obviamente, não podem ser qualificados como bens públicos."
Analisando as lições dos ilustres professores, é fácil perceber que os bens que passam a integrar, inicialmente, o patrimônio das empresas públicas e sociedades de economia mista provêm geralmente da pessoa federativa instituidora. Tais bens, enquanto pertenciam a esta última, tinham a qualificação de bens públicos. Quando, todavia, são transferidos ao patrimônio daquelas entidades, passam a caracterizar-se como bens privados, sujeitos à sua própria administração. Sendo bens privados, não são atribuídas a eles as prerrogativas próprias (ou restrições) dos bens públicos, como a imprescritibilidade, a impenhorabilidade, a alienabilidade condicionada etc.
Resta evidente, portanto, que a conservação, proteção e os casos de alienação e oneração desses bens (vinculados) é disciplinada pelos estatutos das concessionárias de serviços públicos.
Deve-se concluir, neste diapasão, que, se as empresas públicas e as sociedades de economia mista possuem seu patrimônio sob o regime jurídico de direito privado, maior razão existe para ser este o regime jurídico dispensado ao patrimônio pertencente às concessionárias privadas prestadoras de serviços públicos.
Em síntese, os adeptos desta corrente doutrinária defendem que, o Poder Público ao criar uma empresa pública ou de economia mista, não transfere bens para compor seu capital a título de mera administração, mas sim de alienação, com autorização na lei para criar a despesa gerada pela integralização do capital (29).
Destarte, conforme bem salientado pelo professor Marcos Juruena (30), os bens que integram o patrimônio de empresas públicas ou de economia mista, quer sejam prestadoras de serviços públicos ou não, compreendidos tantos os empregados no serviço público como os patrimoniais disponíveis, são privados, que obedecem, salvo peculiaridades (de controle), ao regime jurídico de direito privado. São assim considerados, no dizer de Marcos Juruena, porque, apesar da sua destinação ser ainda de interesse público, a sua administração é efetuada por uma entidade de direito privado, que irá utiliza-los de acordo com a lei instituidora e do estatuto regedor da instituição.
O professor Diogo de Figueiredo (31), contudo, embora seja possível enquadrá-lo como adepto da corrente doutrinaria acima citada, afirma que:
"Expirado o prazo da concessão, os bens vinculados ao serviço se integram ao patrimônio público. É a solução normal do contrato pelo advento do seu termo (v. art. 35, I, da Lei n.° 8.987, de 13 de fevereiro de 1995).
Na hipótese de desfazimento do vínculo contratual, pelo advento do termo do contrato, ou, se o caso, pelo implemento de condição resolutiva, os bens afetos ao serviço público, que eram de domínio resolúvel enquanto no patrimônio privado do concessionário, retornam ao domínio do Poder Concedente, com ou sem indenização, conforme tenham ocorrido os pressupostos contratuais da amortização do capital investido pelo concessionário."
As considerações do professor Diogo de Figueiredo parecem não abarcar as hipóteses de transferência de bens vinculados de origem de empresas públicas e sociedades de capital misto, pois estas jamais seriam do domínio público, mas sim do privado. É importante observar, ainda, que o ilustre doutrinador afirma que os bens vinculados "retornam" ao domínio público, deixando claro que durante a concessão ditos bens permanecem sob a propriedade privada. Ocorre, contudo, que o professor Diogo de Figueiredo não declina maiores considerações sobre os bens que retornam para concessionárias sucessoras das anteriores (no caso de extinção da concessão), bem como passa ao largo do problema dos bens adquiridos e utilizados durante o contrato de concessão, sem nunca terem passado pelo domínio público. Aliás, em verdade, é preciso entender que só serão bens de propriedade resolúvel, aqueles adquiridos pela concessionária e que sejam arrolados como bens reversíveis. Neste ponto, é importante lembrar, o professor Diogo de Figueiredo, como já exposto, utiliza os adjetivos "vinculado" e "reversível" como sinônimos – o que parece ser um equívoco.
O professor Marçal Justen Filho (32), reconhecendo a dicotomia entre os bens públicos e privados utilizados pela concessionária, afirma o seguinte:
"(...) Quanto a esses bens públicos, incumbe ao particular promover sua manutenção, conservação e aperfeiçoamento. Uma vez encerrada a concessão, a posse desses bens será retomada pela entidade concedente e, se for o caso, transferida para novo concessionário. Quando se trata de concessão precedida de obra pública, o particular executa-a e, após, passa a utiliza-la para fins de prestação do serviço público. Nota-se que, concluída a obra e cumpridas as formalidades de fiscalização de sua correção, ela se integra no domínio público. O concessionário permanece na posse do bem, sem solução de continuidade, mas a propriedade é pública.
Mas há também bens privados, aplicados à prestação do serviço público. São bens integrantes do patrimônio do próprio concessionário (em princípio). Esses bens se sujeitam a um regime jurídico especial. Não são bens públicos porque não integram o domínio do poder concedente. No entanto, sua afetação à prestação do serviço produz a aplicação do regime jurídico dos bens públicos. Logo, esses bens não são penhoráveis nem podem ser objeto de desapossamento compulsório por dívidas do concessionário.
(...) A instrumentalidade dos bens à satisfação de interesses coletivos impede a incidência do regime jurídico usual e comum, aplicável aos bens isoladamente considerados.
É necessário, então, estabelecer uma diferenciação entre bens úteis e bens necessários à prestação do serviço público. Há alguns que facilitam, mas não são indispensáveis à referida prestação. Outros, por seu turno, são essenciais a tanto.
A essencialidade do bem à prestação do serviço produz sua submissão a esse regime jurídico próprio e inconfundível, dotado de características e peculiaridades próprias. Todos os bens passam a ter um regime próprio de direito público, ainda que se trate de bens de propriedade original do concessionário. A afetação do bem à satisfação da necessidade coletiva impede a aplicação do regime de direito privado comum. Não é possível, por isso, o concessionário invocar seu domínio para dar ao bem o destino que bem lhe aprouver. Nem poderia pretender usar e fruir do bem como bem entendesse. Portanto e ainda que se configurem bens privados, não é possível cogitar da sua penhorabilidade ou alienabilidade, sem prévia desafetação – a qual se fará por ato formal do poder concedente, depois de verificada a viabilidade da continuidade do serviço público sem sua utilização."
Percebe-se que o professor Marçal Justen Filho entende que todos os bens necessários à prestação do serviço público devem obedecer ao regime público, independentemente de sua origem priva ou pública.
Embora não se pretenda fazer aqui uma comparação entre os ordenamentos jurídicos de Portugal e do Brasil, é interessante trazer, mais uma vez, a contribuição doutrinária do professor português Pedro Gonçalves (33) que, ao se referir ao regime jurídico dos bens vinculados à prestação do serviço público leciona o seguinte:
"(...) tais bens têm origem diversa: podem ser incorporados na concessão pela Administração concedente ou adquiridos ou construídos pelo concessionário. Por outro lado, os últimos, embora adquiridos ou construídos pelo concessionário, não são necessariamente dele, já que podem pertencer, ab initio, à Administração; quando não seja esse o caso, podem ainda ter de ser para ela transferidos no termo da concessão. A variedade de situações, que leva a doutrina a distinguir três categorias de bens afectos à gestão do serviço público concedido (bens de regresso, bens a transferir e bens próprios do concessionário), não elimina um elemento comum a todos eles: o tratar-se de bens afectos à concessão."
Analisando a totalidade da obra do professor Pedro Gonçalves percebe-se que ele utiliza a trilogia de origem francesa (biens de retour, biens de reprise e biens propres), para estabelecer os regimes jurídicos aplicáveis aos diversos bens utilizados na prestação do serviço público.
Trazendo o entendimento alienígena para o nosso ordenamento jurídico, parece claro que os bens vinculados à prestação dos serviços públicos podem ser: a) bens que ao final da concessão devem retornar ao poder concedente, pois jamais deixaram de ser públicos (os ditos bens são regidos pelo regime de direito público); b) bens que devem ser transferidos ao poder concedente, embora de propriedade da empresa concessionária de serviços públicos, para que não haja uma solução de continuidade na prestação dos serviços públicos (tais bens são regidos pelo regime de direito privado, embora de propriedade resolúvel da concessionária) e, por último, c) bens próprios da concessionária que embora vinculados ao serviço prestado, não são essenciais ao serviço, podendo a concessionária livremente dispor dos bens durante e após a concessão (tais bens, por maior razão, são regidos pelo regime de direito privado).
A jurisprudência pátria corrobora os aduzimentos acima, demonstrando que o entendimento predominante no judiciário brasileiro é de que os bens de propriedade de concessionárias de serviços públicos devem seguir o regime privado. Senão vejamos duas decisões exemplares:
- "Execução de sentença. Nomeação de bens à penhora recusada, sem que tenha havido recurso. Devolução da indicação ao credor. Penhora de elevadores. Possibilidade. C.B.T.U. Empresa privada cujos bens podem ser disponibilizados e, portanto, afetados pela penhora, sendo absolutamente infundada o argumento de que, prestando serviço público, os seus bens são impenhoráveis. Recurso manifestamente protelatório." (Agravo de Instrumento n.° 2001.002.11891, Des. Fabrício Bandeira Filho, Décima Sétima Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, julgamento em 01.11.2001)
- "Empresa concessionária de serviço público: penhora de seus bens – penhora de dinheiro. 1. As empresas concessionárias de serviço público não têm patrimônio afetado e pode o mesmo sofrer penhora. (...)" (Recurso Especial n.° 241683, Rel. Eliana Calmon, Segunda Turma do STJ, julgado em 06.04.2000)
Vale citar, ainda, uma decisão recente do Supremo Tribunal Federal - STF sobre o regime público dos bens utilizados pelas concessionárias, mas que continuam sob o domínio público.
Inicialmente, é interessante trazer à baila o ocorrido com a demanda em lume, conforme se passa a expor.
A Companhia Docas do Estado de São Paulo, delegatária dos serviços do Porto de Santos, ajuizou ação com o desiderato de ver-se exonerada da exigência do IPTU e da Taxa de Conservação e Limpeza de Logradouros, de Remoção de Lixo Domiciliar e de Iluminação Pública, lançados sobre os imóveis que compõem o acervo patrimonial do referido porto, integrantes do patrimônio da União, de que a recorrente tem a guarda, responsabilidade e gestão.
Nas decisões de primeira e segunda instância o Poder Judiciário entendeu que a imunidade recíproca (art. 150, VI, a, da CF) não poderia ser aplicada aos bens em referência, já que a União deliberou ceder seu patrimônio a terceiro, pessoa jurídica de direito privado, para exploração de atividade que lhe compete. Entendeu-se que a imunidade não é transferida, com o seguinte entendimento:
"(...) Não há dúvida de que, por força da letra a, do inciso VI, do art. 150, da Constituição Federal, o Município não pode instituir imposto sobre o patrimônio da União. Porém a imunidade constitucional no dispositivo referido e ratione personae. Significa dizer que há imunidade enquanto a União tiver a posse direta do imóvel. Se, a qualquer título, aquela posse for transferida a pessoa diversa daquelas discriminadas no dispositivo constitucional retro referido, desaparece a imunidade. A apelante, pessoa jurídica de direito privado, não goza da imunidade ora tratada. A imunidade recíproca, como já dito, e intuito personae e, por isso, se a União delibera ceder seu próprio a terceiro, pessoa jurídica de direito privado, para exploração de atividade que lhe compete, a imunidade não é transferida. (...)"
Em sede de Recurso Extraordinário, o ministro relator, Ilmar Galvão proferiu o seguinte voto:
"No que concerne ao IPTU, é manifesta a ofensa do acórdão ao dispositivo constitucional de letra a do inciso VI do artigo 150, que prevê a imunidade recíproca de impostos entre as pessoas de direito público.
No presente caso, é incontroverso que os imóveis tributados são do domínio público da União, encontrando-se ocupados pela recorrente em caráter precário, na qualidade de delegatária dos serviços de exploração do porto e tão-somente enquanto durar a delegação.
(...) Neste caso, tratando-se de bem público de uso especial, é fora de dúvida que se acha acobertado pela imunidade constitucional, sendo insuscetível de tributação pelo IPTU." (RE n.° 253394 – SP. Rel. Mins. Ilmar Galvão – Primeira Turma do STF. Julgamento realizado em 26.11.2002, publicado no D.O.U. em 11.04.2003)
Quanto ao regime jurídico dos bens vinculados à prestação de serviços públicos, com fulcro em todos os aduzimentos acima transcritos, é forçoso concluir que:
- os bens de propriedade dos entes públicos (pessoas jurídicas de direito público) que apenas são cedidos aos concessionários, continuam sob o regime jurídico de direito público (são inalienáveis, imprescritíveis e impenhoráveis etc) e segundo o entendimento do STF, acima exposto, tais bens continuarão sob o manto da imunidade tributária;
- os bens de propriedade das empresas públicas e sociedades de economia mista (pessoas jurídicas de direito privado), ao serem transferidos às concessionárias prestadoras de serviços públicos, continuam sob o regime jurídico de direito privado, mas continuam sendo de propriedade da empresa pública ou sociedade de economia mista que cedeu (onerosamente ou gratuitamente) os bens administrados pela concessionária. Vale lembrar, que neste caso não há que se falar em alienação dos bens, logo tais bens não integrarão o patrimônio na empresa concessionária do serviço público. É importante ressalvar que, nestes casos, apenas ocorre a transferência da posse direta ao concessionário de serviço público que utiliza os bens que continuam sob a propriedade da empresa pública ou sociedade de economia mista;
- os bens adquiridos pelas concessionárias (incorporados ao seu patrimônio) obedecem ao regime jurídico de direito privado. É importante frisar, os bens vinculados arrolados no contrato de concessão ou na lei, como sendo bens reversíveis continuaram sob o regime jurídico de direito privado, contudo a propriedade da concessionária será resolúvel, pois os bens reversíveis, ao final da concessão, serão transferidos ao poder concedente ou a concessionária sucessora.