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Herodotus e os sofistas.

Uma fantasia sobre o saber, o ensino e a reprodução do conhecimento

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O Elitismo Sofista e o Processo Sensível

A próxima pergunta cabia a Herodotus, e para tanto, Momo escolheu os campos da harmonia e aritmética. Segue a pergunta:

- A música deve respeitar a aritmética?

- Certamente, porque a corda e o som que não é proporcional não fará música.

- Se a música agrada os ouvidos, não seria certo pensar que o que agrada os ouvidos é música? Se existem diferentes gostos, podemos até dizer que os cálculos de Pitágoras agradam a quase todos, mas é correto dizer também que existem ouvidos que não seguem esta mesma matemática, e que nem por isso um som diverso deixaria de agradar a muitos. Músicas podem variar, mas não o serão melhor que outras apenas porque o querem alguns.

- Existem homens bons e maus assim como existe a afinação e a desafinação. Não poderíamos dizer que o dilacerar da carne é uma arte, mas não faltam homens que façam deste ato pasto aos olhos! Para fazermos música, devemos respeitar um processo que é capaz de fazê-lo, caso contrário, não haverá música, e o inventor deve dá-la outro nome, que pode até não lhe ser inferior. Não é música o que é agradável, mas aquilo que é capaz de se formar através de certas coisas e compartilhar de outras, na medida certa. Para pensar as coisas e fazê-las, existem várias formas, mas apenas uma a levará a verdade que você procura!

- É certo é que as coisas devem obedecer a um processo para se tornarem elas mesmas? A questão é se certas coisas podem se tornar uma outra sem que haja uma dialética específica. Se o processo é um modo pelo qual se constroem coisas, não necessariamente o seu respeito fará com que a coisa seja de tal tipo, isso porque existem várias coisas, e como todas as coisas não são iguais senão a elas mesmas, não é correto resumir as coisas ao processo, que sequer uma coisa é! Do processo pode-se dizer algo, mas não tudo, pois a coisa apenas corresponde à medida que se iguala ao modelo ou a ela mesma, caso contrário, teríamos que impor ao modelo o processo, e por isso, o modelo seria quase que o próprio processo, não se distinguindo corretamente as duas coisas, quando sabemos que as coisas podem ser distinguidas conforme a substância, qualidade, quantidade, relação, lugar, tempo, posição, estado, ação e paixão, ou também, em relação as suas causas, final, material, formal e eficiente. Um processo pode até formar coisas privilegiadas, mas não necessariamente melhores, pois é o dever do homem se aproximar das coisas usando os sentidos. Neste caminho, como as palavras não são as coisas, e as palavras podem levar às coisas, podemos dizer que existem vários caminhos para se conhecer uma mesma coisa, e nem por isso, um deles será o correto, tão pouco o errado. É possível que cada um revele uma característica, que não pode ser vista pelo outro, que seguiu um caminho diferente, que pelo fato de tê-la encontrada sobre um determinado ângulo, dirá a si mesmo o quanto está certo e quanto o outro estará errado.

Algo pode ser, conforme um determinado caminho, de determinada cor, e sobre outro, de outra, mas se lhes digo que uma coisa não pode ser mais de uma coisa ao mesmo tempo, quando são antagônicas, na verdade é que não são nas próprias coisas essas coisas tão diferentes e é a nossa própria palavra que às colocam como diferentes quando podem conviver juntas. E como as palavras também dizem algo de nós mesmos, é possível que certas verdades não possam ser compreendidas, mas, para nos aproximarmos delas, teremos que nos esforçar para não as vê-las como diferentes, apesar de assim sermos induzidos.

- Não é o processo que afasta o homem dos sentidos, mas que o aproxima. Ao contrário, se confiasse apenas em si, poderia se distanciar a ponto de não ser escutado, da outra extremidade! O homem construiu processos para que, através destes, pudesse chegar ao mais puro. Apenas aqueles que conhecem os processos podem chegar a este nível, quando se deseja uma coisa, deve-se exigir um processo para exatamente para isso. Não existe complexidade que não possa ser entendida, porque as palavras podem ser modificadas conforme a nossa vontade, e se problema não pode ser resolvido com determinadas palavras, o poderá sê-lo com outras, que ora inventamos. E se estas, por sua vez, não resolverem outros problemas, criaremos outras. Mas, porém, se cada linguagem possui seus próprios problemas, nada nos impede de usarmos duas linguagens diferentes para os diferentes problemas, tentando assim resolvê-los.


O Discurso Sofista

Para a próxima, Momo escolheu retórica e dialética. A pergunta se seguiu:

- Pode o discurso subverter a sua lógica?

- Sim, o discurso presta para determinados fins e a lógica outros.

- Mas se realizamos o discurso para provar algo, e subvertermos a sua ordem, não estaríamos provando contra aquilo que queríamos afirmar? Se partirmos de determinados pontos, e quisermos realizar o convencimento, não seria certo que deveríamos manter a coerência? Parece-me que um homem que se perde na dialética só é capaz de convencer aproveitando-se da ignorância alheia, ignorância daqueles que não observam, mas sempre participam dos debates, advinham sempre, porque acreditam que as palavras são suficientes para construir um pedestal que unirá a terra à abóbada celeste. As coisas são singulares, e podemos observá-las de diversos ângulos, participando ou não da sua natureza, no entanto, sobre um mesmo ponto, não se pode dizer duas coisas diferentes ao mesmo tempo, a não ser que se consiga provar que nas coisas o objeto tem esta mesma essência.

- No entanto, a platéia não é constituída de homens inteiros de virtudes. Por isso, é certo que os homens podem ser convencidos por razões mesquinhas. E se possuem várias razões mesquinhas, podem ser feitas por todas elas, ao mesmo tempo, e quanto melhor se o forem, porque a ti serão submetidos. Também, é quanto pior tentar provar com o discurso coisas complicadas, de difícil entendimento, já que as pessoas se fiam a solução que conseguem facilmente entender, porque a verdade é sempre tida como evidente.

- Engana-se, pois nem todos os homens podem ser convencidos por razões mesquinhas, apenas os idiotas, pois os verdadeiros cidadãos terão outras razões. Se um homem profere uma fala com várias palavras diferentes, é mais certo que falará por vários discursos, e não apenas um só, e por este confundirá ou aproveitará as diferentes pessoas que ouvem, que, se não estiverem atentas, não saberão que fala sobre diferentes coisas e não guarda coerência. E se acredita em várias coisas, não poderá falar todas ao mesmo tempo, porque são diferentes, a não ser que dispusesse de duas bocas e duas faces! Devemos discutir a verdade, apenas homens que debatem e que não pretendem revelar as suas razões se fazem entender desta forma.

- Sophronius, o discurso não visa a verdade, o discurso é em si mesmo. A verdade satisfaz a vontade de alguns, é certo, mas a verdade que lhes satisfaz é uma que por eles próprios é construída, ou, pelo menos, que já lhes era aceita antes de começarem o diálogo. Porque acreditar que esta verdade é maior que a verdade construída pelo vosso discurso? Pois é o processo do vosso discurso que constrói a verdade que é por todos aceita. Quando calcula as dimensões de um terreno para construir uma casa, não aconselhamos que faça pouco da verdade. Mas quando é preciso que outro homem construa a sua casa, você não terá por objetivo ensiná-lo, já que não foi pago para isso, devendo compartilhar da verdade apenas na medida que o outro possa construir o que lhe é pedido. Não é a sua vontade, que pode ser má, que iniciará outro mal, porque uma casa abriga o homem, e se o homem fosse bom e não quisesse enganar, é possível que morresse de frio. Nenhum homem pode querer as vontades acima das verdades que julga carregar. E quando o homem pode conseguir favores, o corpo parece precipitar sobre eles, porque o homem vive de favores e não de verdades.


O Papel dos Sofistas

Herodotus escolheu a dialética e a mitologia. Julgando apertado o diálogo, Momo resolveu formular uma pergunta que aprendera no livro de Luciano, a qual julgava não haver resposta razoável:

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- Se as Moiras fiam o futuro dos homens, de forma inelutável, qual o proveito de pedirmos favores aos deuses se o destino já está predefinido?

- Segundo Homero, os deuses são como magistrados, que aplicam as leis do destino, não cabendo a eles fixá-las. As Moiras, por sua vez, fiam o destino dos homens: Clotó, a fiandeira, tem o trabalho de tecer o fio da vida, Láquesis, a distribuidora, de determinar o seu comprimento e Átropo, a inflexível, de cortar o fio, extinguindo o fogo da vida. Mas as Moiras cumprem um papel dentro do destino, a qual sequer Zeus e os outros deuses podem escapar, como confirma a previsão de Prometeu sobre o filho de Tétis, que afastou tanto o deus dos deuses como Poseidon da belíssima nereida. As Moiras não fiam todos os fatos, e muito freqüentemente não decidem a data, como o comprova o destino de Meleagro e também de Admeto. É de se concluir que os deuses e as Moiras fazem diferente uns dos outros.

- Mas se são divindades, e Zeus comanda a todas, como é possível que as parcas submetam o deus dos deuses aos seus desígnios? Como é possível dizer que estas divindades antigas tenham feito as novas se submeterem aos seus desígnios?

- Cada qual cumpre com a sua função na ordem. Muita embora os deuses possam entrar em conflito, certo é que cada qual possui os seus atributos e funções. Coincidem na sua qualidade, que lhes é divina, e que não podemos compreender inteiramente, mas não nas suas obrigações. As fiandeiras podem não fazer conforme o bem, pelo menos não da forma que o compreendemos, mas cumprem com a manutenção das coisas, no estado de harmonia. Por outro lado, também não entendemos os deuses, pois certos homens que são bem quistos pelos deuses podem o ser por diversas razões, mais freqüentemente porque prestam com diligência os cultos, sejam estes bons ou maus. No entanto, se praticam algo que uma divindade julga proibida, são punidos, e freqüentemente sem terem cometido algo que aos olhos de outra divindade não seria proibido. Nem sempre os deuses conseguem fazer cumprir com o destino, como ocorreu quando Tânatos foi vencido por Hércules e por Sisífo. Por vezes, os próprios deuses têm dúvidas sobre como as coisas devem se proceder, como foi no caso de Orestes, assim como no de Prometeu, ou na revolta dos Olímpicos contra Zeus, ou na discórdia gerada pelo pomo de Éris, entre outros. Desta maneira são as leis do destino aplicadas pelas divindades.

A lenda não é capaz de revelar o final deste diálogo, mas provavelmente este debate foi encerrado desta forma.


Epílogo

As fontes divergem sobre o fim da jornada, talvez porque este não seja o tipo de estória que se conte até o final. Mas recapitulamos o que dizem os autores, segundo alguns deles, Momo, ao ser forçado a responder de forma que se tornasse impopular, perdeu o embate, mas, no entanto, foi socorrido pelo soberano daquela cidade, que expulsou Herodotus do monte.

Através de presentes, Apolo convenceu Hermes a castigar Momo, precipitando-o sobre o Tártaro. Contam-se memoráveis estórias em baixos relevos na qual Hermes teria travado um fantástico diálogo com Momo, que, vencido, foi punido pela ousadia com um suplício assemelhado ao de Sisífo e das Danaídes. Levado aos infernos, foi forçado pela eternidade a copiar a Odisséia usando uma tinta que desaparecia toda vez que terminava o trabalho, constrangendo-o a recomeçar, para todo sempre.

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Sobre o autor
Alessandro Rafael Bertollo de Alexandre

acadêmico de Direito na Universidade Federal do Paraná

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALEXANDRE, Alessandro Rafael Bertollo. Herodotus e os sofistas.: Uma fantasia sobre o saber, o ensino e a reprodução do conhecimento. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 522, 11 dez. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6013. Acesso em: 26 abr. 2024.

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