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Indivíduo e sociedade na Constituição de 1988.

A propósito do novo Código Civil e sua socialidade

03/12/2004 às 00:00
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A LIBERDADE e o BEM-ESTAR MATERIAL são os bens supremos do INDIVÍDUO. O primeiro é um problema político; o segundo um problema econômico.

MILTON FRIEDMAN, ilidindo, com base na experiência histórica dos países, proposições não liberais, incluindo a social-democracia do "Wellfare State" keynesiano, mostra a existência de uma conexão essencial entre ambos estes aspectos, no sentido de que o MODELO ECONÔMICO é determinante na consecução de uma SOCIEDADE LIVRE: a LIBERDADE ECONÔMICA, além de ser um aspecto da LIBERDADE em sentido lato, é CONDIÇÃO NECESSÁRIA da LIBERDADE POLÍTICA, já que separa o PODER ECONÔMICO do PODER POLÍTICO, permitindo, assim, um CONTROLE RECÍPROCO. Portanto, DEMOCRACIA e CAPITALISMO (competitivo) se exigem mutuamente.

Por outra linha de argumentação, apenas um sistema de LIBERDADE ECONÔMICA é capaz de garantir eficazmente o BEM-ESTAR de cada um e todos. Uma organização econômica socialista (que, como vimos, inelutavelmente, ataca a liberdade individual) apenas cria um inchado Estado burocrático ineficiente e corrupto – este aspecto exponencialmente proporcional ao tamanho do Estado – que, a longo prazo, como tem demonstrado a experiência, não garante, nem mesmo, as condições materiais mínimas necessárias para a maior parte da população.

Ainda, o socialismo não promove a busca do bem-estar material com IGUALDADE entre os indivíduos. Para ser realmente isonômica só pode ser entendida como "A CADA UM CONFORME O SEU MÉRITO", caso contrário, há de se admitir que uns trabalhem em proveito de outros. A contribuição de cada um para os demais, exigência e realização da SOLIDARIEDADE, deve ser na medida a proporcionar a todos CONDIÇÕES INICIAIS IGUAIS. DISTRIBUIÇÃO DE RENDA se faz com EDUCAÇÃO e EMPREGO, e NÃO com assistencialismo.

É neste sentido que a vigente CONSTITUIÇÃO FEDERAL organiza nossa sociedade. Exsurge, com clareza solar, o fundamento LIBERAL-SOCIAL que ela, com imperatividade, pela sua supremacia, irradia a todo o Ordenamento Jurídico.

Uma Ordem LIBERAL-SOCIAL repudia o Individualismo exacerbado da Ordem anterior do Liberalismo puro, mas representa, apenas, uma correção dela, e não sua abolição. Nela o SOCIAL é imperante, porém, ao lado e com igual força, impera o INDIVÍDUO. Poder-se-ia mesmo dizer que fortalece-se o social em atenção ao indivíduo: o que se quer é o bem-estar do indivíduo, porém de todos – e a técnica para se alcançar tal desiderato é ter em conta, junto com os interesses individuais, os interesses coletivos. Há de reconhecer, com ESPINOZA, que Deus não cria povos ou nações, mas indivíduos; porém, ao mesmo tempo, com ARISTÓTELES, que o homem é um ser social.

De toda a gama de preceitos que demonstram o acolhimento e a proteção essenciais do INDIVÍDUO, pela Ordem Constitucional, são cardeais, para tanto, os seguintes:

- Os Direitos e Garantias enunciados no Art. 5º que, conforme denominação do Título e Capítulo que o contém, são Individuais e Fundamentais. Não só o indivíduo tem direitos e garantias, como são eles fundamentais. Magnificando esta fundamentalidade, reforçando a tese da ingência da dimensão individual da pessoa humana na ordem posta, o Art. 60, §4º, ao não permitir, nem mesmo deliberação a respeito, emenda tendente a abolir qualquer destes direitos e garantias.

- Ser a Livre Iniciativa fundamento não só da Ordem Econômica (Art. 170, caput), mas da própria República (Art. 1º, caput c/c inc. IV), bem como, ser ela um Valor Social desta (Art. 1º, IV).

- Ser objetivo fundamental da República construir uma Sociedade LIVRE (Art. 3º, caput c/c inc. I).

Já a determinação de uma DIMENSÃO SOCIAL fundamental do INDIVÍDUO emerge dos seguintes preceitos:

- Ser objetivo fundamental da República (Art. 3º, caput) construir uma Sociedade JUSTA e SOLIDÁRIA (inc. I); erradicar a pobreza e a marginalidade e reduzir as desigualdades sociais e regionais (inc. III); promover o bem de todos (inc. IV).

- Os Direitos Sociais (Título II, Capítulo II), bem como, os Coletivos (Art. 5º), tidos como fundamentais. Ainda, todo o Título VIII da Ordem Social.

- Função Social da Propriedade (Art. 5º, XXIII; Art. 170, III). De onde emerge a Função Social da Atividade Econômica e do Contrato, instrumento central desta atividade.

- Os princípios impostos a Ordem Econômica (Art. 170): Defesa do Consumidor (inc. V); Defesa do Meio Ambiente (inc. VI); Redução das Desigualdades Regionais e Sociais (inc. VII); Busca do Pleno Emprego (inc. VIII); bem como, a determinação de que o Sistema Financeiro seja estruturado de forma a Promover o Desenvolvimento Equilibrado do País e a Servir aos Interesses da Coletividade (Art. 192, caput).

Vê-se, ineludivelmente, nestas determinações constitucionais, duas vertentes, reflexo das duas DIMENSÕES, reconhecidas pela Carta Magna, da PESSOA HUMANA: INDIVIDUALIDADE e SOCIALIDADE. Tais são os Planos Essenciais da Existência Humana, os quais devem ser equilibrados como exigência da realização do Valor Supremo da DIGNIDADE da PESSOA HUMANA.

Por tudo isto, pode-se dizer que a ORDEM POLÍTICO-JURÍDICA, fundada pela vigente CONSTITUIÇÃO FEDERAL, é LIBERAL-SOCIAL (afastada, assim, qualquer pretensão socialista). Para ela o VALOR SUPREMO é o da PESSOA HUMANA e sua DIGNIDADE, o que importa e exige o reconhecimento e a proteção das duas DIMENSÕES ESSENCIAIS do HUMANO: sua INDIVIDUALIDADE e sua SOCIALIDADE.

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O indivíduo não mais tudo pode, mas isto em atenção ao próprio indivíduo. Promovendo o todo se tem em vista a promoção de cada um (mas todos) dos seus membros, e não todo em si mesmo, como algo superior a suas partes. A Socialidade é uma técnica de Promoção da Pessoa Humana, e esta é impensável sem sua Individualidade.

A Ordem anterior, do Liberalismo puro, pensava ser possível promover a Pessoa Humana tendo em conta primordialmente a sua Dimensão Individual. A premissa precípua do sistema é que o Bem-Estar, de cada um e de todos exsurgiria, com necessidade e suficiência, do embate de Indivíduos Livres, por meio de suas capacidades.

Cada um, agindo egoisticamente, tendo em conta, exclusivamente, os seus próprios interesses, e como todos assim obrariam, cada um e todos obteriam, na medida das suas capacidades, o seu bem-estar.

A

buscaria satisfazer ilimitadamente os seus interesses. Porém, B agiria da mesma forma. Como A e B se equivalem, em certa medida, e se necessitam mutuamente, fariam concessões recíprocas, atingindo ambos, por isto, um bem-estar adequado.

E mais, deste "embate", como A e B dariam, por necessário, o melhor de suas capacidades, outros ganhariam pelo que produziram.

Ainda, esta era a única forma do todo ganhar: a pessoa não instada a tal "embate" se acomodaria, pouco produzindo. Como todos, ou certamente a maioria, assim agiriam, o todo se estagnaria.

Vê-se, claramente, faceado a tal premissa, que o sistema, primeiro, não admite privilégios e, segundo, exige seja o indivíduo munido com meios adequados ao atingimento do fim a ele imposto. Entregue a si próprio, sem privilégios, estes meios devem ser poderes absolutos, limitados, apenas, pelo igual status do outro.

Tais premissas, corolários daquela premissa básica, necessárias e suficiente a atuação desta, foram implantadas juridicamente impondo a IGUALDADE de TODOS PERANTE a LEI (IGUALDADE FORMAL) e atribuindo DIREITOS SUBJETIVOS ABSOLUTOS. Sem igualdade formal – desigualdade na lei – ter-se-ia privilégios; em não sendo absolutos os direitos subjetivos, estar-se-ia penetrando na esfera de ação do indivíduo, enfraquecendo os poderes concedidos como meio para a consecução do fim a ele imposto, entregue a sua própria sorte.

A realidade, revelada historicamente, mostrou ser o sistema LIBERAL puro falto da capacidade de prover o BEM-ESTAR GERAL – de cada um, mas de todos. O problema estava na QUESTÃO DISTRIBUTIVA que, exarcebado ao longo de quase um século e meio de vigência, concentrando a riqueza em poucos, e deixando a maioria miserável, conduziu aos horrores dos dois grandes conflitos mundiais, intermedeados pelos teratológicos regimes nazi-facistas, a grande depressão, iniciada com a quebra da bolsa de New York em 1929 e pelas soluções, não menos teratológicas do socialismo e comunismo.

Após o primeiro conflito mundial, e com a grande depressão, iniciada em 1929, começou-se a repensar o sistema, tendo em consideração que as soluções igualitárias, pelos seus totalitarismos necessários, deviam ser afastadas. Havia que preservar o BEM MAIOR da humanidade: a LIBERDADE do INDIVÍDUO.

A análise mostrou ser o sistema perfectível, o problema todo localizado no individualismo puro, tendo em conta as grandes diferenças de capacidades, e os egoísmos exacerbados.

Passou, então, o ESTADO a INTERVIR na VIDA PRIVADA, buscando realizar a JUSTIÇA SOCIAL. Na prossecução deste mister, foi impondo, via legislação, a IGUALDADE REAL, complementando a IGUALDADE FORMAL, deixando isto de ser considerado estabelecimento de privilégios, mas promoção dos menos favorecidos; ainda, os DIREITOS SUBJETIVOS foram sendo FUNCIONALIZADOS em direção ao SOCIAL.

No entanto, tais medidas significam, apenas e exclusivamente, correções do sistema anterior, e não sua abolição. A SOCIALIDADE imposta pela nova ordem representa, única e exclusivamente, técnica de promoção do INDIVÍDUO. Este permanece imperante, aquela só uma técnica a seu serviço, objetivando promover todos.

Estas são as premissas precípuas, essencialidade reforçada pela dignidade constitucional delas, que se deve ter em conta ao interpretar as FUNÇÕES SOCIAIS dos diversos INSTITUTOS do DIREITO PRIVADO, conforme postas pelo novo Código Civil.

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Sobre o autor
Ricardo Amaral Pesce

advogado em São Paulo (SP)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PESCE, Ricardo Amaral. Indivíduo e sociedade na Constituição de 1988.: A propósito do novo Código Civil e sua socialidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 514, 3 dez. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6015. Acesso em: 4 dez. 2024.

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