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A restrição de direitos fundamentais e o 11 de Setembro.

Breve análise de dispositivos polêmicos do Patriot Act

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10/12/2004 às 00:00
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2. O Patriot Act

2.1 Características do Patriot Act

O Patriot Act (53) foi a reação mais visível e imediata tomada pelo governo americano para combater os atos de terrorismo perpetrados no fatídico dia 11 de setembro de 2001. Assinada pelo presidente George Bush em 26 de outubro de 2001, após rápida e quase unânime aprovação do Senado (54), a citada lei expande o nível de atuação de agências nacionais de segurança (FBI) (55), bem como das internacionais de inteligência (CIA) (56), conferindo-lhes poderes até então inéditos. Seu objetivo principal era o de prender os responsáveis pelo ataque; atualmente, visa evitar ocorrências de igual natureza no território norte-americano.

O texto integral, composto por 342 páginas, aborda mais de quinze estatutos (57), e, além de autorizar agentes federais a rastrear e interceptar comunicações de eventuais terroristas, traz as seguintes inovações, referidas por Charles Doyle: a) torna mais rigorosas leis federais contra lavagem de dinheiro; b) faz com que leis de imigração sejam mais exigentes; c) cria novos crimes federais; d) aumenta a pena de outros crimes anteriormente tipificados, e e) institui algumas mudanças de procedimento, principalmente para autores de crimes de terrorismo (58).

Pode-se visualizar, até mesmo pelo contexto desta lei e da atual política norte-americana, a existência de choque entre direitos fundamentais: de um lado, o direito fundamental à segurança nacional, inerente à comunidade americana, e, do outro, as liberdades civis dos cidadãos americanos. A discussão sobre o tema vem ocasionando um grande número de palestras, colóquios e conferências (59).

Para que possamos visualizar um choque de direitos, importante é a observação de Canotilho, o qual esclarece que "haverá colisão ou conflito sempre que se deva entender que a Constituição protege simultaneamente dois valores ou bens em contradição concreta (60)". Ainda segundo o doutrinador português, "uma colisão autêntica de direito fundamentais ocorre quando o exercício de um direito fundamental por parte do seu titular colide com o exercício do direito fundamental por parte de outro titular" (61).

Evidente que a análise profunda das inúmeras seções do Patriot Act ensejaria trabalho mais minucioso e detalhado. Todavia, o que se busca é, partindo-se daquelas disposições que tem causado mais controvérsia, proceder a um teste de proporcionalidade, a fim de constatar, por fim, se algumas restrições de direitos fundamentais levadas a cabo pela citada lei ferem o núcleo essencial de direitos fundamentais da população norte-americana.

Logo, "a questão do conflito de direitos ou de valores depende, pois, de um juízo de ponderação, no qual se procura, em face de situações, formas ou modos de exercício específicos (especiais) dos direitos, encontrar e justificar a solução mais conforme ao conjunto de valores constitucionais" (62). Tenta-se, assim, efetuar tal ponderação, nos três casos que seguem.

A questão é de suma importância, até mesmo por que um segundo ato legislativo, complementador do Patriot Act, já denominado de Patriot Act II, está sendo elaborado pelo Poder Legislativo (63) americano.

Existem, também, projetos de leis (64), tanto de deputados como de senadores americanos, buscando revogar e/ou modificar certos dispositivos do Patriot Act. Um destes projetos, de autoria do congressista Dennis Kucinich, denonimado de Benjamin Franklin True Patriot Act, foi proposto em 24 de setembro de 2003, e busca a revogação de mais de dez seções da lei. (65) Há inclusive, uma petição on-line pleiteando a total revogação do Patriot Act (66).

2.2 Análise de três Disposições do Patriot Act

Passemos, agora, à análise de três pontos que se configuram como problemáticos na lei, quais sejam, a) a definição do crime de terrorismo doméstico; b) a detenção compulsória de terroristas suspeitos e os tribunais militares, e c) a pós-notificação dos mandados de busca e apreensão.

2.2.1 Definição de Terrorismo Doméstico:

Uma das mais polêmicas disposições do Patriot Act é aquela contida no parágrafo 802 do citado documento legal, o qual proclama a definição de novo crime, denominado de terrorismo doméstico, conceituado da seguinte forma:

Seção 802. Definição de Terrorismo Doméstico (...)

omissis

(...)

(5) o termo terrorismo doméstico significa atividades que (A) configurem atos perigosos à vida humana que são uma violação de leis criminais dos Estados Unidos ou de qualquer Estado; (B) que pareçam pretender (i) intimidar ou coagir uma população civil; (ii) influenciar a política de um governo por intimidação ou coação; ou (iii) visem modificar a conduta de um governo utilizando-se de destruição em massa, assassinatos ou seqüestro; (...)

omissis" (67)

Após leitura rápida constata-se que a definição do que seja terrorismo doméstico é ampla em demasia; as expressões utilizadas, tais como "atos perigosos", "pareçam pretender", "influenciar a política de um governo por intimidação ou coação", podem ser utilizadas ao bel-prazer das autoridades americanas. Se mal utilizadas, podem, inclusive, incriminar pessoas que simplesmente estão colocando em exercício seus direitos de expressão, de reunião, de dissenso e de protesto.

Tal atitude atingiria, certamente, condutas que estariam protegidas pela 1ª emenda (68) da Constituição dos Estados Unidos, que concede, dentre outros direitos, a liberdade de expressão, o de reunião pacífica e o de peticionar o governo para reparação de injustiças.

Destarte, na mesma linha de pensamento referente a evolução jurisprudencial americana ocorrida com as "loitering laws" (69), os verbos nucleares dos tipos penais deveriam ser mais detalhados, a fim de que o choque de direitos existentes no caso em tela não fulminasse o núcleo duro de um ou mais direitos fundamentais.

Outras disposições que, em princípio, ferem a 1ª emenda: seção 215 do Patriot Act; decreto do procurador-geral dos Estados Unidos que aumenta a vigilância de organizações políticas e religiosas; decreto do procurador-geral dos Estados Unidos minando requerimentos e petições protegidos pela Lei de Liberdade de Informação (70).

2.2.2 Detenção Compulsória de Terroristas Suspeitos e os Tribunais Militares

A justiça militar está para a justiça assim como a música militar está para a música (71)

O Patriot Act concedeu uma gama de poderes inédita ao Procurador-geral dos Estados Unidos, atualmente, John Aschcroft. Uma delas refere-se a prerrogativa de deter, de modo compulsório, pessoas suspeitas de serem terroristas. Para colocar tais suspeitos sob custódia, o procurador-geral tem a capacidade de certificar/atestar que um estrangeiro esteja descrito em uma das seções abaixo citadas, ou esteja empenhado em qualquer outra atividade que ponha em perigo a segurança nacional dos Estados Unidos.

A seção modificada é a de nº 412, da Lei de Imigração e Nacionalidade, que passa a viger com a seguinte inserção:

"Seção 412. Detenção Compulsória de Suspeitos Terroristas; Habeas Corpus; Revisão Judicial

(...)

‘Seção 236A. (a) Detenção de terroristas estrangeiros. –

‘(1) Custódia. – O Procurador-Geral pode colocar sob custódia qualquer estrangeiro que esteja certificado sob as disposições do parágrafo (3).

(...)

‘(3) Certificação. – O procurador-geral pode certificar/atestar um estrangeiro sob este parágrafo se o mesmo tenha razoáveis fundamentos para acreditar que o estrangeiro -

(a) esteja descrito na seção 212(a)(3)(A)(i), 212(a)(3)(A)(iii), 212(a)(3)(B), 237(a)(4)(A)(i), 237(a)(4)(A)(iii), or 237(a)(4)(B); ou

(b) está empenhado em qualquer outra atividade que ponha em perigo a segurança nacional dos Estados Unidos. (72)

Juntamente com a detenção compulsória de suspeitos terroristas, a questão da implantação de tribunais militares é outro fato que acende discussões sobre a política norte-americana. Tais tribunais aplicam-se apenas para não- americanos. (73)

A relação entre a seção 412 e a ordem militar do presidente Bush, que instituiu tais tribunais, como diz Charles Doyle, é incerta. Essa ordem, de 13 de novembro de 2001, permite o Secretário de Defesa deter estrangeiros suspeitos como terroristas, nos Estados Unidos ou em qualquer lugar, sem condições ou limitações expressas, exceto no que se refere a comida, água, abrigo, roupas, tratamento médico, e exercício religioso (74). Apesar de duvidosa a relação entre os dispositivos, ambos ferem a 5ª emenda.

A quinta emenda à constituição americana diz que

ninguém será obrigado a responder por crime capital, ou por outro crime infamante, a não ser perante denúncia ou acusação de um grande júri (...) nem será obrigado a servir de testemunha contra si próprio em qualquer processo criminal, nem ser privado da vida liberdade ou propriedade sem um devido processo legal (...) (75)

Logo, nenhuma pessoa pode ter sua liberdade tolhida sem um devido processo legal, não importa o tipo de crime que tenha praticado. Nesse caso, a igualdade formal perante a lei deve ser mantida a todo custo, uma vez que, apesar de nacionais e estrangeiros pertencerem a categorias diferentes, todos estão abarcados pela garantia fundamental do devido processo legal. (76)

O que se pretende com o exposto é a não-criação, na esfera pública, de uma Lynch Law (77), o que, certamente, fulminaria com o devido processo legal, levando, junto com ele, todos os demais princípios basilares do Estado Democrático de Direito (78).

2.2.3 Pós-notificação dos Mandados de Busca e Apreensão

Outra disposição que tem causado controvérsia é aquela referente aos mandados de busca e apreensão, localizada na seção 213 do Patriot Act, que acrescenta nova disposição ao título 18, seção 3103a do Código dos Estados Unidos, verbis:

"Seção 213. Autoridade para retardar a notificação da execução de um mandado.

omissis (...)

(2) acrescenta-se no fim o seguinte:

(b) Dilação de Prazo – Com respeito a emissão de qualquer mandado ou ordem judicial sob essa seção, ou qualquer outro preceito legal, a procurar e confiscar qualquer propriedade ou material que constitua prova de ofensa criminal que viole as leis dos Estados Unidos, qualquer notificação requerida, ou que possa ser requerida, pode ser retardada se -

‘(1) a corte julgar que há causa razoável de que, procedendo à imediata notificação da execução do mandado, possa ocorrer um resultado adverso (...);

(...)

omissis

(3) o mandado proporciona para o fornecimento de tal notificação um período razoável para sua execução, cujo período pode, após tal ato, ser estendido pela corte se for demonstrado um bom motivo." (79).

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Os mandados de busca e apreensão, na expressão americana sneak and peek warrants são protegidos pela 4ª emenda à carta constitucional daquele país, que também garante o direito à privacidade. Segundo a emenda, o povo americano tem direito "à inviolabilidade de suas pessoas, casas, documentos e haveres, contra buscas e apreensões arbitrárias (...) e nenhum mandado será emitido senão com base em indício de culpabilidade, confirmado por juramento ou declaração solene, e particularmente com a descrição do local de busca e das pessoas ou coisas a serem apreendidas" (80).

Mais uma vez, a disposição restritiva de direito possui expressões dúbias e "abertas" em demasia. O lapso temporal para a pós-notificação não é determinado; assim, podem os mandados de busca e apreensão ser cumpridos e a respectiva notificação ser procrastinada ad eternum. Procedendo deste modo, as pessoas podem ter suas casas invadidas, e ter seus bens confiscados, sem saberem o objeto do mandado.

No caso da pós-notificação, nas palavras de Nancy Talanian, membro do Comitê de Defesa da Bill of Rights "... uma pessoa cuja casa está para ser inspecionada não pode ver o mandado para certificar-se que o endereço é correto ou que o agente adere estritamente à descrição do que deve ser procurado" (81).

É tão polêmica a disposição acima exposta que, em 23 de julho de 2003, a Câmara dos Deputados aprovou uma emenda tanto republicana como democrata, oferecida pelos deputados C. L. "Butch" Otter, Dennis J. Kucinich e Ron Paul, dos Estados americanos de Idaho, Ohio e Texas, impedindo a implementação das buscas e apreensões efetuadas sob a égide do Patriot Act. A passagem desta emenda marca a primeira vez em que tanto deputados republicanos como democratas agiram para revogar qualquer provisão da lei (82). Importante notar, todavia, que tal emenda começará a viger apenas após a aprovação do Senado e do presidente George Bush (83).

Outras disposições do Patriot Act que eventualmente ferem a 4ª emenda: seção nº 213, que concede autoridade para compartilhar informações de investigações criminais entre agências, inclusive estrangeiras; seções números 206, 215, 218 e 411.


3. Considerações Finais

Após a breve análise feita acerca das disposições do Patriot Act, importante sublinhar que a mesma apóia-se no art. 6º, nº 2 da Constituição Americana, baseada na supremacia hierárquica daquela lei perante todas as outras, verbis,

Esta Constituição e as leis dos Estados Unidos feitas em sua conformidade, e todos os tratados celebrados ou por celebrar sob a autoridade dos Estados Unidos, constituirão a lei suprema da nação; e os juízes de todos os Estados a ela estarão sujeitos, ficando sem efeito qualquer disposição contrário na Constituição ou lei de quaisquer dos Estados (84)

Comunga-se, também, do posicionamento de Cançado Trindade a respeito das restrições de direitos fundamentais:

as eventuais limitações ou restrições permissíveis ao exercício de direitos consagrados, ademais de deverem ser interpretadas restritivamente e em favor deste últimos, deverão necessariamente ser previstas em lei (...) Qualquer limitação deve ser justificada, e o ônus de tal justificação recai sobre o estado. (...) As limitações, além disso, hão de ser aplicadas no interesse geral da coletividade (ordre public), coadunando-se com os requisitos de uma "sociedade democrática", e respeitando o princípio da proporcionalidade; as limitações não podem ser aplicadas de modo arbitrário ou discriminatório, devendo sujeitar-se a controle por órgãos independentes (com a previsão de recursos para os casos de abusos), e ser compatíveis com o objeto e o propósito dos tratados sobre proteção dos direitos humanos. (85)

Sobre perigo de leis que atinjam direitos individuais referiu Sérgio Moccia (86)

O risco, portanto, concerne sobretudo às garantias individuais que, como limites postos para a defesa do homem contra os abusos estatais, representam a expressão mais significativa daquele longo e atormentado processo evolutivo que caracterizou o desenvolvimento da civilização jurídica contemporânea. Não é admissível, portanto, que numa estrutura ordenamental de democracia avançada se adotem, ainda que com a finalidade de remediar gravíssimas perturbações do complexo sócio estatal, remédios normativos e práticas jurisprudenciais que acabem por fazer com que a estrutura ordenamental deslize na direção de preocupantes formas de arbítrio que têm sempre caracterizado os momentos mais difíceis para os direitos do indivíduo.

Além disso, a atual "paisagem jurídica" vivenciada pelos norte-americanos, em que se pode vislumbrar restrição em demasia a certos direitos fundamentais, sob a alegação de segurança nacional, possui um precedente em contrário: é o que constatou Marcelo Caetano quando do episódio Watergate, que gerou "a crise constitucional de 1974", a afirmação do predomínio dos valores da liberdade e da democracia sobre o da segurança nacional (87).

E é neste sentido que a sociedade civil deve estar alerta quanto à restrição de direitos fundamentais, a qual poderá ser acirrada e aumentada, se o atual nível de tensões se mantiver. Neste panorama, o princípio da proporcionalidade se materializa como peça chave, instrumento delineador dos limites de leis restritivas de direitos fundamentais.

Como disse o saudoso diplomata brasileiro, Sérgio Vieira de Mello, em discurso proferido por ocasião do Third Committe of the UN General Assembly, em 04 de novembro de 2002:

Nenhuma causa pode justificar o terrorismo (...). tal fenômeno deve ser universalmente e inequivocadamente condenado. O combate exitoso contra o terrorismo, contudo, requer mais do que um rigoroso reforço das disposições legais, mesmo sendo estas vitais. Também requer uma aproximação a longo prazo, e mais holística, assim como a determinação de assegurar de que todos os direitos são realmente usufruíveis por todos: particularmente quando é um dos objetivos dos terroristas forçar-nos a negar tais direitos. (88)

Seguindo as palavras do diplomata brasileiro, parece que os legisladores americanos, ao contrário de seu Poder Executivo, após o choque dos acontecimentos catastróficos de 11 de setembro, estão novamente legiferando de modo a proteger os cidadãos americanos e imigrantes inocentes de lesões mortais a direitos fundamentais assegurados pela carta magna daquela nação e por tratados internacionais.

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Sobre o autor
Vinicius Diniz Vizzotto

advogado (RS) e especialista em Direito Internacional pela UFRGS

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VIZZOTTO, Vinicius Diniz. A restrição de direitos fundamentais e o 11 de Setembro.: Breve análise de dispositivos polêmicos do Patriot Act. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 521, 10 dez. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6037. Acesso em: 28 mar. 2024.

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