O ISSQN E A LEI COMPLEMENTAR Nº 157/2016
O artigo 156, III, da Constituição Federal dispõe os municípios podem instituir Imposto sobre os Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN), não compreendidos na competência tributária dos estados, nos termos “definidos em lei complementar”. Ao formular as disposições do referido artigo, o legislador constituinte acresceu o §3º[5], dispondo o que segue:
Art. 156. [...]
§ 3º Em relação ao imposto previsto no inciso III do caput deste artigo, cabe à lei complementar:
I - fixar as suas alíquotas máximas e mínimas
II - excluir da sua incidência exportações de serviços para o exterior
III - regular a forma e as condições como isenções, incentivos e benefícios fiscais serão concedidos e revogados.
Destaca-se que a lei complementar do ISSQN não se limita a disposições sobre as normas gerais previstas no artigo 146, III, da Constituição Federal, em especial no que se refere à delimitação da base de cálculo, ao fato gerador e ao contribuinte. Cumpre a ela a função de delimitar os serviços que poderão ser tributados pelos municípios, assim como fixar as alíquotas máximas e mínimas, excluir das hipóteses de incidência do tributo a exportação de serviços e, por fim, fixar a forma e condições nas quais desonerações tributárias pode ser concedidas ou revogadas.
Para alguns municipalistas, tal lei fere o princípio da autonomia, espeque máxima do pacto federativo, uma vez que cerceia a liberdade dos municípios para dispor deste imposto. No tocante a isto, vale a advertência, em sentido oposto, de Roque Antônio Carrazza[6]:
Evidentemente, tal lei complementar não poderá conceder ou revogar tais isenções, incentivos e benefícios fiscais, mas apenas estabelecer a forma e a oportunidade destas medidas. Elas só poderá ter, pois, caráter adjetivo, determinando o mudus faciendi da concessão ou da revogação das benesses tributárias em tela. Positivamente, não lhe será dado atropelar o princípio da autonomia municipal.
Frise-se que o exercício da competência tributária pelos entes federativos pressupõe máxima obediência à Constituição Federal. Em relação ao ISSQN, o magno texto traça e delimita os conteúdos que devem ser disciplinados na lei complementar, de cunho geral, orientando a edição das respectivas leis ordinárias municipais, cuja inobservância compromete a regularidade arrecadatória.
Historicamente, a lei complementar do ISSQN tratou parcialmente das matérias enumeradas no artigo 156 da Constituição Federal. Na cronologia, temos o Decreto-lei nº 406/1968, o qual, ao revogar as disposições dos artigos 71 a 73, regulou, nos artigos 8º a 12, as disposições básicas atinentes à base de cálculo, ao fato gerador e ao contribuinte. Alvo de sucessivas alterações, foi recepcionado pelo legislador constituinte de 1998 e sua vigência perdurou, com status de lei complementar, até o ano 2003, quando foi quase integralmente revogado pela lei complementar nº 116, remanescendo vigente apenas seu artigo 9º, conforme assentou a jurisprudência dos Tribunais Superiores.
Inicialmente de simples arrecadação, desde a década de 1990 o ISSQN vem ganhando contornos dramáticos, no que concerne às constantes guerras fiscais travadas por via de reduções de alíquotas e outros incentivos fiscais, além de outros mecanismos que impuseram a retenção do imposto no local da prestação do serviço ou o cadastro de prestadores de outras localidades.
Foi neste cenário que sobreveio, inicialmente, a Emenda Constitucional 03/1993. A referida emenda incluiu, no texto constitucional, o supracitado §3º do artigo 156. Ademais, isto não foi suficiente para pacificar os conflitos que se iniciavam e que se agigantariam nas décadas seguintes, advindos da não edição da lei complementar.
Tal fato culminou numa nova intervenção constitucional no ano de 2002, quando sobreveio a Emenda Constitucional nº 37, que promoveu alterações no aludido §3º, assim como incluiu o artigo 88 aos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), leia-se:
Art. 88. Enquanto lei complementar não disciplinar o disposto nos incisos I e III do § 3º do art. 156 da Constituição Federal, o imposto a que se refere o inciso III do caput do mesmo artigo:
I - terá alíquota mínima de dois por cento, exceto para os serviços a que se referem os itens 32, 33 e 34 da Lista de Serviços anexa ao Decreto-Lei nº 406, de 31 de dezembro de 1968;
II - não será objeto de concessão de isenções, incentivos e benefícios fiscais, que resulte, direta ou indiretamente, na redução da alíquota mínima estabelecida no inciso I.
No ano de 2003, sobreveio a Lei Complementar nº 116, que trouxe grandes inovações à sistemática do ISSQN. Dentre as principais alterações, destacam-se: a ampliação das hipóteses de serviços tributáveis, a ampliação do rol de serviços cujo imposto deve ser recolhido no local da prestação, a exclusão da incidência dos serviços exportados, a tributação da importação de serviços, a fixação da alíquota máxima em 5%, o estabelecimento de regras para fins da retenção do imposto na fonte, dentre outros.
Embora tenha representado significativo avanço, a LC nº 116/2003 silenciou sobre importantes temas, como a alíquota mínima, a inclusão ou não dos insumos na base de cálculo do imposto, especialmente no caso da construção civil; a tributação das sociedades de profissionais, principalmente, pela não inclusão do artigo 9º do DL nº 406/1968 entre aqueles expressamente revogados; sobre a sistemática de concessão ou revogação de desonerações tributárias, e outras questões relevantes.
À luz do vazio normativo em relação à fixação da alíquota mínima e dos critérios para concessão e revogação dos incentivos fiscais, houve a necessidade de harmonizar o conteúdo normativo do artigo 88 do ADCT que, embora seja norma constitucional, transitou na ordem jurídica como verdadeiro zumbi, flagrantemente ignorado pelos Municípios, especialmente no que se refere às disposições do inciso II. Tal fato se justifica pela ausência de sanção à sua inobservância.
É neste contexto que se manifesta a relevância da Lei Complementar nº 157/2016, que, ao alterar Lei Complementar 116/2003, nela incluiu o artigo 8º-A, cujas disposições encontram-se a seguir transcritas:
Art. 8o-A. A alíquota mínima do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza é de 2% (dois por cento).
§ 1o O imposto não será objeto de concessão de isenções, incentivos ou benefícios tributários ou financeiros, inclusive de redução de base de cálculo ou de crédito presumido ou outorgado, ou sob qualquer outra forma que resulte, direta ou indiretamente, em carga tributária menor que a decorrente da aplicação da alíquota mínima estabelecida no caput, exceto para os serviços a que se referem os subitens 7.02, 7.05 e 16.01 da lista anexa a esta Lei Complementar.
§ 2o É nula a lei ou o ato do Município ou do Distrito Federal que não respeite as disposições relativas à alíquota mínima previstas neste artigo no caso de serviço prestado a tomador ou intermediário localizado em Município diverso daquele onde está localizado o prestador do serviço.
§ 3o A nulidade a que se refere o § 2o deste artigo gera, para o prestador do serviço, perante o Município ou o Distrito Federal que não respeitar as disposições deste artigo, o direito à restituição do valor efetivamente pago do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza calculado sob a égide da lei nula.
Percebe-se que, sob a égide da LC nº 157/2016, o legislador federal corrigiu o erro cometido na formulação da LC nº 116/2003, quando apenas fixou a alíquota máxima em 5% (artigo 8º, II), silenciando-se sobre a alíquota mínima e não regulando a forma e as condições de ocorrência das desonerações tributárias, isto é, suas respectivas concessões ou revogações, à luz do que preceitua o §3º, do artigo 156, da Constituição Federal.
A partir da vigência da LC nº 157/2016, taxativamente, restou proibida a concessão de qualquer benefício ou incentivo fiscal que possa implicar em carga tributária inferior ao montante resultante da aplicação da alíquota mínima, excetuando-se apenas os serviços a que se referem os subitens 7.02, 7.05 e 16.01, da lista de serviços. No mesmo sentido, o referido diploma legal declarou nulas as leis que não observassem o mínimo estabelecido naquelas prestações de serviços prestados noutro território, outorgando o direito à repetição de indébito ao prestador do serviço.
Registra-se que o legislador federal, ao forjar o artigo 8º-A, tinha em mente dois objetivos, quais sejam: a) eliminar a guerra fiscal entre os Municípios; e b) preservar a saúde financeira dos Municípios, tolhendo os exageros na concessão de benefícios e incentivos fiscais. Para que as disposições do artigo mencionado não se tornassem letras mortas, a exemplo do que ocorrera, na prática, com a redação do artigo 88 dos ADCT, o legislador federal de 2016 alterou a lei nº 8.429, de 02 de junho de 1992 (Lei de Improbidade Administrativa), e nela, além de outras disposições, incluiu o artigo 10-A e o inciso IV no artigo 12. Seguem as disposições inseridas:
Art. 10-A. Constitui ato de improbidade administrativa qualquer ação ou omissão para conceder, aplicar ou manter benefício financeiro ou tributário contrário ao que dispõem o caput e o § 1º do art. 8º-A da Lei Complementar nº 116, de 31 de julho de 2003.
Art 12 [...]
IV - na hipótese prevista no art. 10-A, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos de 5 (cinco) a 8 (oito) anos e multa civil de até 3 (três) vezes o valor do benefício financeiro ou tributário concedido.
Há de se ressaltar que, a partir da vigência da LC nº 157/2016, a concessão ou a manutenção de desonerações tributárias que implicassem em carga tributária inferior ao montante de 2%, constituiria ato de improbidade administrativa, de força que os infratores ficariam sujeitos à perda da função pública, tal como à suspensão dos direitos políticos e multa de até três vezes o montante da desoneração concedida. Os Municípios e o Distrito Federal deveria, ainda, dentro do prazo de um ano da publicação da lei, promover as devidas adequações:
Art. 6o Os entes federados deverão, no prazo de 1 (um) ano contado da publicação desta Lei Complementar, revogar os dispositivos que contrariem o disposto no caput e no § 1º do art. 8º-A da Lei Complementar nº 116, de 31 de julho de 2003.
Com a vigência da LC nº 157/2016, o imposto sobre serviços adquiriu todos os contornos constitucionais definidos na lei complementar, de caráter geral, cabendo aos Municípios e ao Distrito Federal a adequação de suas respectivas legislações.
Embora os contornos estejam legalmente definidos, remanescem conflitos sobre a tributação das sociedades de profissionais, tema deste arrazoado, assim como sobre a dedução dos insumos na construção civil, cuja matéria se encontra, atualmente, sob o crivo do Supremo Tribunal Federal, em sede de repercussão geral.