Incompetência em razão da disciplina constitucional e dos princípios regentes do Sistema dos Juizados Especiais
Em razão da preferência do legislador pelo critério do valor da causa (sessenta salários mínimos) para determinar as causas cíveis de menor complexidade, haverá um universo de ações que tendem a ingressar nos Juizados Especiais Fazendários.
Nesse sentido, ao analisar a Lei nº 12.153/2009, Joel Dias Figueira Júnior alerta dizendo que:
[...] o art. 2º da Lei em exame abre um leque enorme para o ajuizamento de demandas perante os Juizados Especiais da Fazenda Pública, porquanto é genérico ao definir quais seriam essas ‘causas’. Obviamente que esse dispositivo haverá de ser interpretado em sintonia com todo o microssistema e, em particular, com a linha mestra definida no art. 98, I, c/c o seu § 1º, da CF, que delimitam os contornos da competência às causas de ‘menor complexidade.[31]
Em razão disto, exigirá dos operadores do direito uma interpretação sistemática, a fim de verificar se o caso concreto adentra ou não nas causas cíveis de menor complexidade à luz do art. 98, I, da Constituição Federal, visto que o Sistema dos Juizados Especiais tem princípios (oralidade, simplicidade, informalidade, celeridade e economia processual) e regras próprias que dão sustentação ao procedimento sumariíssimo.
Frise-se que a complexidade da causa, pela simples leitura do art. 98, I, da Constituição Federal, deve ser verificada em três vertentes: julgamento (fase cognitiva), conciliação e execução (fase executiva).
É preciso ficar claro que a Constituição Federal projetou a criação dos Juizados Especiais para apreciar causas de baixa complexidade (critério objetivo em razão da complexidade da matéria; limite da jurisdição) e que, para tanto, fosse possível um procedimento sumariíssimo, ou seja, mais célere que o procedimento comum do Código de Processo Civil.
Além disto, os princípios específicos do Sistema dos Juizados, por si sós, demonstram as peculiaridades do procedimento sumariíssimo, pois não se coadunam com um trâmite mais moroso, decorrente da complexidade do caso concreto. Consequentemente, se o caso concreto, complexo, tramitar pelo procedimento sumariíssimo duas situações podem ocorrer: ou estará desnaturado o Juizado Especial, porquanto equivalerá a uma justiça paralela[32] (adoção do procedimento traçado no Código de Processo Civil); ou, firme cerradamente na celeridade, informalidade, simplicidade, oralidade e economia processual que o procedimento exige, restarão violados princípios constitucionais, como o efetivo contraditório e a ampla defesa (art. 5º, LV). Logo, não haverá outra solução, a não ser declarar a incompetência dos Juizados Especiais Fazendários, sob pena de afronta visceral da Lei Maior.
Isto demonstra, patentemente, na atual conjuntura, que os Juizados Especiais Fazendários só têm competência para apreciarem casos de baixa complexidade, ainda que o valor da causa seja igual ou inferior a 60 (sessenta salários mínimos).
Vejamos, a seguir, situações que provocam a declaração da incompetência dos Juizados Especiais.
Necessidade de realização de prova complexa
Em primeiro lugar, é preciso delimitar o tema, a fim de investigar se além da complexidade fática (probatória), a complexidade jurídica (de direito) também pode ocasionar a incompetência dos Juizados Especiais Fazendários.
Marcia Cristina Xavier de Souza, quanto à complexidade da causa, menciona sobre os aspectos fático, jurídico e instrumental. Vejamos:
A complexidade da causa está relacionada com a análise da complexidade fática, da complexidade jurídica e da complexidade instrumental.
A complexidade fática diz respeito à natureza da relação controvertida, que poderá levar à complexidade probatória. Os fatos alegados pelas partes podem apresentar questões que desafiam provas, cuja produção necessariamente se protraia no temp.
Por complexidade jurídica, compreende-se uma situação de difícil ocorrência, que se relacionar com a dificuldade de interpretação de determinada norma jurídica.
A complexidade instrumental, por sua vez, se relaciona com a ocorrência de incidentes processuais que levarão a natural e esperada dilação, como a intervenção de terceiros ou a necessidade de utilização de cartas precatórias ou rogatórias.
Em qualquer uma dessas situações, que não se pode imputar às partes ou ao juiz, a celeridade do processo fica naturalmente prejudicada pela necessidade de se fazerem valer as garantias constitucionais da ampla defesa e do contraditório. O processo não será efetivo se a celeridade for erigida como finalidade única a ser alcançada, em detrimento da observância da garantia do devido processo legal.[33]
Ricardo Cunha Chimenti, por sua vez, distingue a complexidade que evolve questões de direito e de fato, entendendo que apenas neste último caso pode acarretar a incompetência dos Juizados Especiais Fazendários.
Sob a luz do art. 98, I, da CF, há de se concluir que as questões de direito, por mais intrincadas e difíceis que sejam, podem ser resolvidas dentro do Sistema dos Juizados Especiais, o qual é sempre coordenado por um juiz togado.
Por outro lado, quando a solução do litígio envolve questões de fato que realmente exijam a realização de intrincada prova, após a tentativa de conciliação infrutífera o processo nos Juizados dos Estados e do DF deve ser extinto e as partes encaminhadas para a Justiça ordinária (art. 51, II, da Lei n. 9.099/1995). É a real complexidade probatória que afasta a competência dos Juizados Especiais Comuns e a da Fazenda Pública dos Estados e do Distrito Federal.[34]
Alexandre Freitas Câmara doutrina na mesma esteira, ou seja, apenas admitindo a incompetência dos Juizados Especiais quanto à complexidade probatória:
Pode ocorrer, no entanto, de o juiz considerar, no caso concreto, que não obstante incluída entre as causas cíveis de menor complexidade, certa causa é mais complexa do que o microssistema dos Juizados Especiais Cíveis é capaz de suportar. Isso jamais se dará, frise-se, por questões de direito. Estas, por mais complexas que se revelem, sempre poderão ser apreciadas nos Juizados Especiais Cíveis. Há questões, porém, que exigem provas que não podem ser produzidas nos Juizados Especiais Cíveis (bastando figurar, aqui, o exemplo de um processo em que exija uma prova pericial extremamente complexa). Nesse caso, deverá o juiz proferir sentença terminativa, extinguindo o processo sem resolução de mérito. O mesmo se dará, registre-se, quando se estiver diante de uma pequena causa que, na prática, se revele como sendo de grande complexidade.[35]
Coerentemente, citado doutrinador aduz ao comentar sobre os Juizados Especiais Fazendários:
A competência dos Juizados Especiais Cíveis Federais e dos Juizados Especiais da Fazenda Pública é determinada ratione valoris mas, como se dá em sede estadual cível, há pequenas causas de grande complexidade, as quais não poderão ser submetidas aos Juizados Federais, nem aos Juizados Especiais da Fazenda Pública.
Entre essas pequenas causas de grande complexidade, algumas já que são expressamente enumeradas na Lei nº 10.259/2001 e na Lei nº 12.153/2009 (e das quais se tratará no próximo tópico), enquanto outras terão sua complexidade verificada no caso concreto, incidindo, assim, o disposto no art. 51, II, da Lei nº 9.099/1995 (cf., supra, nº 18.2).[36] (grifo nosso)
No mesmo sentido, Leonardo José Carneiro da Cunha:
Vale dizer que os Juizados Especiais da Fazenda Pública somente julgam causas de pequeno valor; que sejam também de menor complexidade.
[...]
Ainda que o valor seja inferior a 60 (sessenta) salários mínimos, a causa será excluída da competência dos Juizados Estadual da Fazenda Pública quando houver complexidade, ou melhor, quando houver uma prova técnica mais complexa ou demorada. [...]; o que cabe, apenas, no âmbito dos juizados, é a inquirição de técnicos ou especialistas na própria audiência, ou uma inspeção sumária a ser realizada pelo juiz ou por pessoa de sua confiança, que lhe relatará informalmente o que for verificado.[37]
J. E. Carreira Alvim e Luciana Gontijo Carreira Alvim Cabral também aludem sobre a complexidade probatória:
[...] É evidente que, se o procedimento for inadmissível, seja em razão da matéria, das pessoas ou do valor, não pode prosseguir o processo, que se extingue, o mesmo ocorrendo quando se mostrar inviável após a conciliação, como, por exemplo, quando a causa assumir uma complexidade fatual e probatória de grandes proporções, em princípio dificilmente imagináveis.[38]
Ainda, Joel Dias Figueira Júnior assinala que:
Em que pese o art. 2º da Lei 12.153/2009 não fazer menção expressa ao critério da menor complexidade da matéria objeto do litígio para fixar a competência originária dos Juizados Especiais da Fazenda Pública, trata-se de preceito implícito que decorre do próprio texto constitucional (CF, art. 98, I, c/c § 1º). [...]
[...]
De outra parte, não há que se confundir pequeno valor com reduzida complexidade do litígio, seja em termos fáticos, seja em termos jurídicos. Nada obsta que estejamos diante de uma ação que não ultrapasse sessenta salários-mínimos, mas que, em contrapartida, apresente questões jurídicas de alta indagação, não raras vezes acrescidas da necessidade de produção de intrincada produção de prova pericial.
[...]
A respeito dessas hipóteses, a Lei 12.153/2009 regula a produção de prova técnica de maneira diversa da Lei 9.099/95 que permite apenas a inquirição e expertos ou a inspeção em pessoas ou coisas (art. 35), pois admite a produção de ‘exame técnico’, assim compreendido como sendo uma perícia de complexidade intermediária e não muito onerosa.
Contudo, poucas não serão as vezes em que, no Juizado Estadual, o juiz instrutor terá de valer-se não de ‘inquirição’ de técnico, mas de verdadeira prova pericial ,o que é inadmissível nos Juizados Especiais. Nesses casos, para que nos mantenhamos fiéis ao requisito constitucional da menor complexidade da causa e dos princípios da simplicidade que deve orientar todo o processo, parece-nos que a solução está em o juiz declarar-se incompetente (de ofício ou mediante requerimento da parte) e remeter as partes às vias ordinárias, extinguindo o processo, sem resolução do mérito (art. 51, II), ou determinar a redistribuição imediata dos autos, em razão da inadmissibilidade procedimental específica, diante da complexidade assumida pela demanda após a audiência infrutífera de conciliação.[39]
Em razão deste entendimento, Joel Dias Figueira Júnior afirma que:
Diversas são as hipóteses em que, mesmo diante da instalação do Juizado Especial da Fazenda Pública, a competência dita ‘absoluta’ poderá ser modificada. Vejamos, então, em que circunstâncias essa alteração poderá ocorrer e, por conseguinte, a modificação da competência previamente estabelecida: [...] b) formado o contraditório, verifica o julgador a complexidade da lide pendente ou a necessidade de produção de prova pericial, não sendo suficiente um simples exame técnico (art. 10, LJEFP).[40]
A complexidade jurídica (questão de direito), por si só, realmente não tem o condão de ocasionar a incompetência dos Juizados Especiais Fazendários, em razão da regra do iura novit curia.
Sobre isto, há o Enunciado nº 54 do FONAJE: “A menor complexidade da causa para a fixação da competência é aferida pelo objeto da prova e não em face do direito material.”[41]
Por outro lado, não é difícil concluir que em causas complexas, o procedimento sumariíssimo não poderá ser empregado ao caso concreto.
Indubitavelmente haverá causas em que os Juizados Especiais Fazendários serão absolutamente incompetentes para apreciá-las, em razão da incompatibilidade do procedimento sumariíssimo (célere, informal, simples, econômico e oral) que, obviamente, não admite a produção de provas complexas. Isto, por uma razão bastante simples: não se estará diante de causa cível de menor complexidade (art. 98, I, e § 1º, da Constituição Federal).
Se o Juizado Especial não declarar a sua incompetência, certamente ocasionará: ou a deturpação do procedimento sumariíssimo (equivalente a uma justiça paralela, com afronta ao art. 98, I, da Constituição Federal), ou, respeitado o trâmite célere, simples, informal, oral e econômico do procedimento sumariíssimo, a violação dos princípios do efetivo contraditório e da ampla defesa (art. 5º, LV).
Anote-se, pois, que a complexidade (concreta[42]) da prova abrange o contexto não só da necessidade de um exame mais esmiuçado (inviável através de simples exame técnico), bem como da onerosidade da sua realização, em razão do caso concreto ser intrincado. Exemplos[43]: a) uma ação indenizatória que demande a realização de perícia quanto à impossibilidade do exercício da profissão ou ofício, ou que se alegue a diminuição da capacidade de trabalho, com a fixação de pensão, ou que dependam de prova complicada sobre lucros cessantes; b) uma causa que exija a oitiva de várias testemunhas, com a necessidade, inclusive, de expedição de diversas precatórias.
Neste mesmo raciocínio, diz o Enunciado nº 91 do FONAJEF: “Os Juizados Especiais Federais são incompetentes para julgar causas que demandem perícias complexas ou onerosas que não se enquadrem no conceito de exame técnico (art. 12 da lei n. 10.259/2001).”[44]
Vejamos, ainda, os seguintes enunciados FONAJE[45] (Fazenda Pública): Enunciado nº 11 do FONAJE: “As causas de maior complexidade probatória, por imporem dificuldades para assegurar o contraditório e a ampla defesa, afastam a competência do Juizado da Fazenda Pública”; e Enunciado nº 12 do FONAJE: “Na hipótese de realização de exame técnico previsto no art. 10 da Lei 12.153/09, em persistindo dúvida técnica, poderá o juiz extinguir o processo pela complexidade da causa”.
Ao examinarem o art. 12 da Lei nº 10.259/2001, J. E. Carreira Alvim e Luciana Gontijo Carreira Alvim Cabral comentam:
Este preceito trata também do exame técnico -, que em última análise é uma microperícia -, quando necessário à tentativa de conciliação ou ao julgamento da causa, dizendo que o juiz nomeará pessoa habilitada, que apresentará o laudo até cinco dias antes da audiência, independentemente de intimação das partes.[46]
De fato, o Pleno do Supremo Tribunal Federal, no Recurso Extraordinário nº 537.427, analisando uma causa sobre danos materiais relacionados à dependência ao cigarro, decidiu em 14.04.2011, por unanimidade, e embasado no art. 98, I, da Constituição Federal, que aos Juizados Especiais cabem tão somente julgar casos de baixa complexidade e simples compreensão[47], razão por que foi declarada a incompetência do Juizado Especial.
Enfim, não se nega, frise-se, a possibilidade da realização de exame técnico (perícia consistente em exame, vistoria ou avaliação) nos Juizados Especiais Fazendários, até mesmo em razão da expressa previsão nos arts. 12 da Lei nº 10.259/2001 e 10 da Lei nº 12.153/2009, porém a sua realização insere-se num regime próprio e informal, apesar de ser escrito e de serem admitidas a formulação de quesitos e a indicação de assistente técnico. Destarte, é destinado apenas aos casos simples, do ponto de vista probatório e constitucional (art. 98, I, e § 1º), sendo imprestável para as causas cíveis de maior complexidade.