1. INTRODUÇÃO
Após mais de 15 (quinze) anos ter publicado um artigo acadêmico acerca do erro médico e o Direito, vemos que o tema ainda disponibiliza inúmeras discussões jurídicas.
Obrigações de meios, de resultados, aplicação do Código do Consumidor ao caso concreto, e outras questões atinentes ao tema rotineiramente são assuntos de nossos Tribunais, o que enseja nova abordagem sobre o tema.
Ressaltaremos algumas passagens do artigo original, pedindo vênia por terem sido escrito por um mero acadêmico na época.
Mas necessário continuar a busca por conceitos que além de acadêmicos, abarcam o mundo jurídico na área de saúde. Procuraremos, agora, ser mais abrangentes, não se limitando apenas à atividade médica, mas a todos os setores ligados à saúde.
É notório que é tema de suma importância no direito brasileiro a responsabilização civil dos profissionais da área de saúde, que por dolo, imprudência, negligência ou imperícia causam algum tipo de lesão, seja moral, material ou estética, e até a morte, aos seus pacientes.
Como ressaltado no artigo anterior (2001), tais profissionais desenvolvem um dos trabalhos mais nobres e necessários ao bem estar da sociedade: zelam pela saúde do ser humano. Porém, embora o direito à saúde seja garantido constitucionalmente a todos os cidadãos, o fato é que a adequada prestação de serviços de saúde depende intimamente do grau de capacitação dos profissionais ligados a essa área.
Assim, é dever de todo profissional de saúde ter o mínimo que seja de aptidão técnica para intervir na saúde do ser humano. A falta dessa qualificação, saliente-se desde já, caracteriza a imperícia, uma das modalidades da culpa, pressuposto da responsabilidade civil.
O presente texto visa analisar algumas peculiaridades acerca da responsabilidade civil subjetiva dos profissionais de saúde em casos de ações indenizatórias. Ressalte-se, desde já, que nesses casos, apesar de haver a necessidade da comprovação da culpa profissional para ensejar o dever de indenizar, há a possibilidade da inversão do ônus da prova à luz do Código do Consumidor, o que vem dificultando veementemente a defesa desses profissionais nas ações judiciais. Não será analisada, aqui, profundamente, a responsabilidade objetiva que cerceia as instituições prestadoras de serviços da saúde em geral, onde não há a necessidade de verificação de culpa para consumar-se a obrigação de indenizar.
Essa dissertação não visa, de modo algum, esgotar o tema proposto, visto sua insuperável amplitude, o que deve ser objeto de inúmeras discussões presentes e futuras na doutrina e na jurisprudência pátria.
2. OBRIGAÇÃO DO PROFISSIONAL DE SAÚDE
A qualificação da obrigação do profissional de saúde ao prestar serviços profissionais ao paciente pode ser analisada sob dois ângulos.
O primeiro diz respeito à clássica classificação doutrinária. Nesse caso, dúvida não há quanto à tipificação da obrigação do profissional de saúde que é procurado ou convocado a prestar serviços profissionais a um paciente: trata-se de obrigação de meio. Isso significa que o profissional "não assume o compromisso de curar o doente (o que seria contra todas as lógicas dos fatos) mas de prestar-lhe assistência, não quaisquer cuidados, porém contenciosos e adequados "[1].
Nem seria justo. A atualidade da saúde do país demonstra que não há profissionais de saúde (médicos, dentistas, enfermeiros, fisioterapeutas, psicólogos, etc), aptos a atender a demanda de pacientes diariamente, seja pelo SUS, pelo convênio de saúde, ou mesmo através de atendimento particular.
Exigir, portanto, êxito desses profissionais representa grave ofensa aos princípios insculpidos na Constituição Federal, Código Civil, Código de Defesa do Consumidor, Códigos de Éticas, dentre outros.
Ao profissional de saúde deve ser dada a liberdade de agir, nos ditames de sua lex artis, ou seja, arte profissional.
Se o profissional de saúde age com prudência, perícia, e não negligentemente, mesmo que aja algum dano ao paciente, aquele não poderá ser responsabilizado, eis que ausente o principal requisito da responsabilidade civil: a culpa.
A principal controvérsia existente na doutrina e na jurisprudência diz respeito à cirurgia estética, que se subdivide em cirurgia estética reparadora e eletiva. A primeira dispensa maiores considerações, pois é vista como os atos cirúrgicos em geral: trata-se de obrigação de meio (caso de plásticas decorrentes de ferimentos estéticos causados por acidentes de trânsitos, v.g.).
Com relação à segunda espécie de cirurgia plástica (eletiva), a jurisprudência pátria dominante tende a considerar o ato cirúrgico como uma obrigação de resultado, onde se exige a obtenção do resultado pretendido e contratado entre paciente e médico, sob pena de inadimplemento da obrigação e o consequente dever de indenizar.
Em que pese tal opinião de peso no ordenamento jurídico brasileiro, não nos parece ser essa a posição mais adequada.
Com efeito, os Drs. Carlos Alberto Jaimovich, Talita Franco, e Márcia Rosa Araújo, então membros da Câmara Técnica de Cirurgia Plástica do Conselho federal de Medicina do Rio de Janeiro já se pronunciaram no sentido de que "toda reparação busca a beleza, sempre que possível, e alterações estéticas podem representar, para seus portadores, verdadeiras patologias com repercussões graves na esfera emocional", concluindo ainda que "a cirurgia plástica, portanto, em qualquer dos seus aspectos, é uma atividade médica que trata de doenças, sejam predominantemente físicas ou psicossomáticas"[2].
Ora, o paciente que vai até o cirurgião buscando reformar, através da cirurgia plástica, o seu nariz, os seus mamilos, a sua orelha etc., é porque esses órgãos o estão prejudicando, quer fisicamente, quer psicologicamente. Não há que se distinguir, portanto, tais atos cirúrgicos com os demais, visto que ambos buscam eliminar uma patologia. Assim, entendemos que a obrigação do médico que efetua uma cirurgia estética eletiva também é de meio.
A obrigação dos profissionais de saúde também pode ser analisada sobre o aspecto da teoria das vontades. Assim, todo ato profissional resume-se num simples fato natural, "ausente de juízo de aprovação ou de reprovabilidade"[3]. Tal ato só ingressará no mundo jurídico após a análise do pactuado entre as partes, de modo que o que definirá se a obrigação do profissional de saúde é de meio ou de resultado é o contrato realizado entre este e o paciente.
Dessa forma, se o médico, por exemplo, se comprometeu apenas a agir com todo o zelo possível inerente à sua profissão, mas sem se obrigar a alcançar o resultado pretendido, e o paciente consumou tal contratação através de um consentimento válido, a obrigação será de meio.
Já se o médico ou o dentista, v.g., se comprometeu a alcançar o fim almejado pelo paciente, a obrigação será de resultado, independente do consentimento do paciente.
Válido é salientar a lição do saudoso Aníbal Bruno, sobre o valor do consentimento do paciente nas intervenções médicas: "O fundamento da determinação não é o consentimento do paciente. Mas a ausência de consentimento torna a intervenção ilegítima, porque, então, não haveria exercício regular de uma faculdade, mas constrangimento ilícito, que tiraria desse exercício a sua legitimidade, salvo quando a vontade do paciente não se pode manifestar ou quando ocorrem os extremos do estado de necessidade"[4].
Temos, pois, que nas obrigações de meio, o profissional de saúde "obriga-se a empregar diligência, a conduzir-se com prudência, para atingir a meta colimada pelo ato"[5]. Verificada a inexecução da obrigação, "cumpre examinar o procedimento para se averiguar se o mesmo deve ou não ser responsabilizado"[6]. Já nas obrigações de resultado, "a simples verificação material do inadimplemento basta para determinar a responsabilidade do devedor"[7].
O profissional de saúde, portanto, que não atinge o fim objetivado pelo paciente no ato da contratação, somente responderá civilmente pelos atos a que deu causa se tiver agido com imprudência, negligência ou imperícia inerentes à sua profissão, se a obrigação assumida for de meio. Tal fato decorre diretamente dessa forma obrigacional, que gera a chamada responsabilidade subjetiva, sujeita à verificação de dolo, imprudência, negligência ou imperícia para caracterizar o dever de resssarcir os danos causados, diferentemente da obrigação de resultado, que dá azo à responsabilidade objetiva, que dispensa a verificação da culpa para ensejar o ônus de indenizar do profissional de medicina.
3. RESPONSABILIDADE DO PROFISSIONAL DE SAÚDE
Em se tratando de uma obrigação contratual[8], de meio, o direito brasileiro institui que para a verificação da responsabilidade civil do profissional de saúde deve ser aplicada a teoria da responsabilidade subjetiva. Tal implicação já vinha expressa no Código Civil de 1916, especialmente nos arts. 159 e 1545.
Atualmente, tal fundamento vem também expresso no art. 14, §1º, do Código de Defesa do Consumidor, que dispõe, in verbis: "A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação da culpa".
Segundo a teoria em tela, são profissional de saúde: o dano, o nexo de causalidade e a existência da culpa.
O primeiro pressuposto diz respeito à ocorrência de uma efetiva lesão moral, patrimonial ou estética no paciente, de forma que esse prejuízo seja antijurídico, ou seja, contrário ao direito. O nexo causal impõe que necessariamente a lesão deve ter sido causada por ato do profissional de saúde, ou seja, deve haver o nexo de causalidade entre o dano e o fato imputado ao médico, dentista, enfermeiro, psicólogo, fisioterapeuta, massoterapeuta, etc.
O terceiro pressuposto da responsabilidade civil subjetiva merece algumas considerações de maior complexidade. Inicialmente, cumpre ressaltar que a culpa, aqui, deve ser entendida como culpa "lato sensu", abrangendo o dolo (onde, no caso, o profissional de saúde tinha a intenção, psicologicamente falando, de causar algum dano ao paciente) e a culpa "stricto sensu", que abrange suas várias modalidades: negligência, imprudência ou imperícia.
Assim, se o médico, por exemplo, sempre tiver sua conduta abalizada pela perícia médica, ou seja, se sua atuação estiver de acordo com a lex artis médica, dificilmente ele será condenado em uma ação indenizatória, devido à ausência de culpa na sua conduta. Nesse sentido, vejamos os escólios do Prof. Gilberto Baumann de Lima sobre o lex artis dos médicos: "A atuação do profissional de medicina deverá ser de conformidade com a lex artis, ou seja: ‘Ya se ha visto que la jurisprudencia exige su concurrencia para que el acto sea legítimo, y pueda decirse que se há hecho com la observancia del cuidado ojetivamente debido; com la diligencia y pericia debidas. Por lex artis se entiende "la técnica correcta", o "aquellos principios essenciales que tiendam a su normal desenvolvimento"."[9]
Caso, porém, o médico, v.g., cause um dano a um paciente em decorrência de um ato profissional de sua autoria, e desde que ele atue com dolo, imprudência, negligência e/ou imperícia, deve o mesmo ser condenado, via ação competente, a ressarcir os danos morais, materiais e/ou estéticos causados ao paciente ou a terceiros.
O Prof. Miguel Kfouri, citando conclusão do Procurador Geral da Corte de Apelação de Milão, assim define as modalidades de culpa em sentido estrito: "Não é imperito quem não sabe, mas aquele que não sabe aquilo que um médico ordinariamente deveria saber; não é negligente quem descura alguma norma técnica, mas quem descura daquela norma que todos observam; não é imprudente quem usa experimentos terapêuticos perigosos, mas aquele que os utiliza sem necessidade". Sobre a imperícia, aliás, conclui o ilustre magistrado que "o médico deverá, diante de um caso que supere seus conhecimentos, conferenciar com colegas ou indicar um especialista. Antes de intervir, deve avaliar a si mesmo"[10].
Assim, observados no caso concreto uma das modalidades da culpa, o dano e o nexo causal entre a conduta do profissional de saúde e a lesão causada, deve o profissional liberal ser responsabilizado civilmente. Ausentes, porém, um dos três pressupostos caracterizadores da responsabilidade subjetiva, a ação deverá ser julgada improcedente, com a conseqüente condenação do paciente às custas sucumbênciais, e, dependendo do caso, à litigância de má-fé.
Vale ainda lembrar a lição do insigne mestre Arnoldo Wald sobre outros aspectos da culpa: "A culpa pode ser presumida juris tantum, admitindo a prova contrária, ou juris et de jure, quando a lei não permite que se comprove a sua inexistência. Em certos casos, a responsabilidade pelo ato de outrem decorre da culpa in vigilando ou in eligendo, a primeira significando a falta de fiscalização e a segunda a má escolha do preposto, empregado ou representante"[11].
Assim, o dano causado por culpa de preposto ou empregado do profissional de saúde, caracteriza a denominada caracteriza a culpa in vigilando ou in elegendo, e, portanto, o dever de indenizar deste.
Já nos casos que comportam a aplicação da teoria da responsabilidade objetiva, ou teoria do risco, decorrentes diretamente da obrigação de resultado, exclui-se a necessidade da verificação da culpa para se determinar a condenação ou não do profissional de saúde ao dever de indenizar. Nada impede, porém, que esse se utilize processualmente das excludentes de responsabilidade para se eximir de tal compromisso.
4. DA PROVA
O processo civil contempla uma regra inerente aos processos em geral no sentido de que ao Autor incumbe provar os fatos constitutivos de seu direito, e ao Réu os fatos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do Autor. Assim, "para que a responsabilidade do profissional de saúde emerja, mister se faz que o doente ou seus herdeiros demonstrem que o resultado funesto, por ele experimentado, derivou de negligência ou imprudência do profissional"[12].
Ocorre que a atividade de saúde equipara-se à prestação de serviços. Assim, o profissional de saúde, como prestador de serviços que é, sujeita-se às normas do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90), que, em seu art. 6º, VIII, dispõe que são direitos básicos do consumidor: "VIII – a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do Juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiência".
Duas são, portanto, as possibilidades de se inverter o ônus da prova no caso de uma ação indenizatória em decorrência do chamado erro profissional: caso haja a verossimilhança da alegação ou caso seja verificada a hipossuficiência do consumidor.
A primeira situação contempla aquelas alegações que realmente trazem um elevado grau de certeza de verdade ao Juiz da causa. Assim, na hipótese dos fatos alegados pelo paciente serem acreditáveis, pode o juiz inverter o ônus da prova, de tal forma que ao profissional de saúde incumbirá provar sua inocência. Entendemos, contudo, que o grau de convencimento do Juiz deve ser efetivamente elevado para que se conceda tal benefício processual ao consumidor, de forma que uma pessoa de grau médio de conhecimento, diante da exposição fática do caso concreto, pudesse chegar à mesma conclusão.
A segunda hipótese de inversão do ônus da prova contempla a verificação da hipossuficiência, segundo as regras ordinárias de experiência, ou seja, nos casos em que o consumidor for parte mais fraca economicamente ou tecnicamente.
O caso de situação econômica desvantajosa é muito comum nos processos em geral, principalmente nas situações que envolvam prestação de serviços pelo SUS (Sistema Único de Saúde). Cabe ao juiz, então, verificar que esse desnível econômico realmente influenciará na decisão final do processo, segundo sua experiência pessoal em outros processos, em estudos anteriores etc.
A hipossuficiência técnica é ainda mais freqüente, e diz respeito às informações que o profissional de saúde transmite ao paciente sobre o tratamento a que deverá ser ou a que foi submetido o consumidor. Na maioria dos casos, tais informações são prestadas de maneira extremamente técnica, onde se presume que qualquer pessoa relativamente bem instruída fosse incapaz de entender tal comunicação. Verificada tal ocorrência, pode o Juiz inverter o ônus da prova no processo.
Para que o profissional de saúde possa evitar essa desvantagem processual no caso de um pleito indenizatório, deve o mesmo buscar passar informações sobre sua conduta, os procedimentos pós e pré operatórios, as cautelas, os riscos inerentes a determinado ato etc., por escrito, recolhendo a assinatura do paciente em uma das vias do documento, além de explicar oralmente tais comunicações em uma linguagem mais acessível ao cidadão comum. Agindo dessa forma, a hipossuficiência técnica não mais se caracterizará, paciente e profissional de saúde possuirão idêntica posição processual, e o sistema de provas seguirá a regra do Código de Processo Civil.
O fato é que atualmente a maioria dos profissionais de saúde não se previnem adequadamente contra possíveis ações judiciais propostas pelos seus pacientes, o que muitas vezes dificulta a atuação jurídica de seus procuradores, no momento da defesa processual. No instante em que o profissional adquire o consentimento do paciente para determinada prática na área de saúde, salvo situações de urgência ou emergência que dispensam tal formalidade de imediato, por exemplo, de nada adianta um documento extremamente técnico, fora dos padrões exigidos pelo ordenamento jurídico vigente. O consentimento não é um documento único, é um processo complexo, incluído aí a anamnese, as informações fornecidas ao paciente, a documentação utilizada nos padrões exigidos por lei etc. Se não estiver nesses termos, o consentimento do paciente não poderá ser utilizado como meio de prova idôneo a favor do profissional da saúde, sob pena, inclusive, de provar a conduta ilícita (presumidamente ou não) do mesmo. Deve o profissional de saúde, portanto, atuar nos conformes do direito moderno.