5 – Contratos no Código de Defesa do Consumidor
5.1 – Breve evolução Histórica
5.1.1 – Liberdade Contratual: desenvolvimento
Até o Século XIX havia uma certa liberdade de contratar. As partes envolvidas numa relação de consumo podiam discutir as cláusulas contratuais, adequando-as conforme seus interesses.
O liberalismo econômico trouxe a chamada autonomia da vontade, em que era consagrada a liberdade de contratação, mediante a igualdade jurídica dos contratantes.
Na segunda metade do século XIX, observou-se um crescimento no comércio, que cada vez mais se preocupava com o aumento da comercialização, esquecendo-se da justiça social frente à figura do consumidor.
O século XX trouxe modificações importantíssimas na sociedade de consumo. O crescimento industrial e tecnológico (principalmente a partir da segunda metade do século XX), aliados a um mercado apto a consumir, despertou a necessidade de regulamentação das relações de consumo.
O fato é que houve uma massificação dos contratos na economia, o que foi extremamente acentuado no final do século XX. O desequilíbrio nas relações de consumo era cada vez mais alarmante.
O Código de Defesa do Consumidor veio trazer, por conseguinte, a regulamentação da proteção desejada. Sua aplicação tem adquirido dia-a-dia maior aceitabilidade. Desta forma, a Política Nacional de Consumo emerge na sociedade do início do século XXI como sendo uma garantia de respeito às relações de consumo. Sua fórmula impulsiona o mercado conduzindo-o ao desenvolvimento e ao progresso.
Neste contexto, os consumidores que até então estiveram em situação de vítimas nas relações consumeristas, adquirem um papel defensivo em que ficam considerados:
- Sua importância no mercado de consumo, sendo o consumidor o elemento chave para o crescimento da economia;
- A necessidade de equilíbrio das relações de consumo, sendo desprezível ao mundo fático e jurídico qualquer atitude que contrarie tais perspectivas;
- O aumento de campanhas de conscientização do consumidor e do fornecedor, como meio de tutela das relações surgidas entre os mesmos;
- O equilíbrio das relações de consumo em uma sociedade de massa que ganha cada vez mais espaço no mercado de consumo;
- A existência de meios legais para se obter o ressarcimento, quando desconsiderados os princípios e objetivos básicos da Política Nacional de Relações de Consumo.
Ademais, tem-se observado que com o crescimento exacerbado da economia, muitas empresas multinacionais vêm se estabelecendo no mercado. Com isso, torna-se necessária uma adequação do mercado a essa nova realidade, garantindo informação, segurança e qualidade nos produtos e serviços fornecidos.
Eliane Cáceres faz importante observação ao comentar o § 45 das Diretrizes para a Proteção do Consumidor elaborada pela Assembléia-Geral das Nações Unidas: "o que se tenta estabelecer nesta normativa é que passe a existir uma forma de solidariedade internacional de que se recente a nível mundial. As diretrizes exigem uma mudança e depende da atuação de cada cidadão e dos movimentos de defesa do consumidor para que os governos cumpram essas mudanças". [3]
Vem sendo notado, que consumidores individualizados vêm tomando frente na defesa das relações de consumo, participando ativamente nas decisões a serem implantadas no mercado. É uma evolução social, que tem criado algumas representações de consumidores no comércio, através de sindicatos e associações.
Cabe ressaltar, ainda, que inúmeras reclamações vêm sendo feitas pelos consumidores, dia-a-dia, aos órgãos especializados. Resta a estes órgãos e às autoridades, buscar soluções através destas reclamações.
A sociedade do Século XXI clama pelo equilíbrio contratual através da aplicação do princípio da boa-fé objetiva. O lema deste século é harmonizar as relações de consumo, para desenvolver a economia e racionalizar as demandas no Judiciário.
5.1.2.– Revolução Industrial: os contratos em massa e a necessidade de intervenção do Estado
Com o aumento da industrialização ocorrida no século XIX, na Europa (Revolução Industrial), houve uma massificação dos contratos, surgindo, em grande escala, os contratos de adesão, contrapondo-se ao interesse individual do consumidor que ficou desamparado.
Destarte, houve um incentivo à formação de classes, tornando a doutrina de fins do século XIX mais preocupada com os novos problemas sociais.
Neste contexto, observa-se um grande desequilíbrio nas relações de consumo, ditadas pelo poder econômico do fornecedor em detrimento do consumidor que, ou adequava-se às práticas abusivas do fornecedor, ou era excluído do mercado de consumo sem o produto necessário para a sua sobrevivência.
O Estado é chamado a intervir para que os direitos constitucionalmente delineados sejam atingidos. Sob esta perspectiva, busca-se não só a igualdade formal consagrada pela Carta Maior de 1988, como também a igualdade material. Para tanto, o Estado deve resguardar o interesse social em prol do interesse individual.
Dentre as diretrizes estabelecidas pela Política Nacional das Relações de Consumo, constata-se a intervenção do Estado, como meio de assegurar a proteção ao consumidor vulnerável. Neste passo, o Estado poderá criar parâmetros a fim de garantir o aperfeiçoamento dos produtos e serviços, adequando tal proteção à livre iniciativa.
Conforme nos ensina Eliana Cáceres: "A proteção ao consumidor tem também grande importância para um desenvolvimento firme da economia dos países. É a forma mais efetiva de se alcançar um mercado eficiente, sem desperdício econômico, trabalhando no interesse de toda a população e não de uns poucos – sejam os fornecedores locais ou as poderosas multinacionais". [4]
Neste diapasão, qualquer proteção tendente a assegurar direitos e deveres entre consumidores e fornecedores, vem como forma de impulsionar o mercado, garantindo a sobrevivência econômica do mesmo. A autora supra mencionada completa:"(...) Esta proteção ao consumidor contribui para que o mercado seja mais competitivo e eficiente". [5]
Assim, o Estado, antes liberal e não-interventor, é chamado, em decorrência do crescimento do mercado, a intervir nas atividades produtivas, tornando-se um Estado em busca do coletivo. Considerando-se essa evolução, a Política Nacional de Relações de Consumo é uma medida estatal que vem a ser o ingrediente necessário para adequar as relações de consumo ao novo mercado.
Com isso, o artigo 3.º inciso I da Carta Constitucional de 1988 também fica resguardado, já que estará sendo construída uma sociedade livre, justa e solidária ".
6- Delineamentos a respeito da Política Nacional de Consumo
Como já se verificou, a concretização da defesa do consumidor se dá através de normas relativas à sua proteção, estampadas na Carta Constitucional de 1988 e no Código de Defesa do Consumidor.
Referido Código do Consumidor surgiu para que houvesse uma legislação específica de forma a proteger o consumidor adequadamente. Era necessária a "promulgação de um arcabouço geral para o regramento do mercado de consumo". [6]
Através da Codificação dos Direitos do Consumidor, surgiu a Política Nacional de Relações de Consumo, discriminada nos artigos 4.º e 5.º do Título I, Capítulo II da Lei n. 8.078 de 11 de setembro de 1990. Esta Política está voltada para atender as necessidades dos consumidores, respeitando a sua dignidade, a sua segurança e a sua saúde, bem como para a proteção dos interesses econômicos dos mesmos, com a conseqüente melhoria da qualidade de vida. Refere-se a uma Política que traz uma ideologia de respeito aos direitos da personalidade.
Ademais, a Política em análise traz um rol de objetivos e princípios a serem efetivamente seguidos pelos consumidores, fornecedores e pelo Estado. Obedecidos seus ditames, estar-se-á construindo um mecanismo ágil e humano de proteção ao vulnerável. Sendo tal política respeitada e salvaguardada pela sociedade, a ordem econômica – incluídos neste contexto consumidor e fornecedor – estará protegida. Com efeito, esta Política Nacional pode ser considerada como uma verdadeira filosofia de ação para a harmonização das relações de consumo.
Eduardo C. B. Bittar enumera as características extraídas da Política de Consumo:
"Assim, sistematicamente, a ideologia de uma política nacional de consumo envolve:
a)uma política nacional de desenvolvimento;
b)uma política nacional de proteção ao consumidor;
c)uma política nacional de incentivo ao respeito dos direitos fundamentais;
d)uma política nacional de cultura (empresarial e consumerista) do consumo;
e)uma política nacional de estudos, informação e divulgação de dados do setor;
f)uma política nacional de fiscalização e efetivação de direitos neste setor". [7]
Pode-se afirmar, sem sombra de dúvidas, que a Política Nacional das Relações de Consumo, é uma norma – objetivo [8], tendo como finalidade última a harmonização entre fornecedor e consumidor, com a conseqüente satisfação coletiva e bem-estar social.
São elementos componentes das relações de consumo: os produtos e serviços, o consumidor e o fornecedor. Estes últimos - consumidor e fornecedor - devem estar em situação de equilíbrio numa relação de consumo. Para tanto, o Estado interfere através de uma Política Pública eficaz (Política de Consumo) e, por conta desta interferência, o mercado cresce.
Uma Política Nacional deve refletir as perspectivas econômicas e sociais, sendo pré-estabelecidas com intuito de servir como parâmetro a ser perseguido por uma determinada sociedade, em determinada época. Desta forma, referida política deve ser elaborada a partir de um conhecimento prévio da Política Econômica em que se insere toda a sociedade.
Sob este aspecto, importante será estabelecer os anseios da sociedade consumidora que clama, dia-a-dia, por melhores e maiores satisfações pessoais advindas do mercado de consumo.
Conforme nos ensina Cristiane Denari [9], existem instrumentos objetivos e subjetivos de acesso dos indivíduos aos objetos da produção. Nesta esfera, surgem:
a)Instrumentos Objetivos:
São criados pelo modo de produzir e consumir, viabilizando, por conseguinte, as trocas no mercado. Podem ser de dois aspectos:
-Jurídicos: simbolizam regras previamente estabelecidas a que os consumidores estão sujeitos. São a propriedade privada e o contrato;
-Econômicos: relacionados à troca ou à contraprestação, em que ocorre a entrega da mercadoria, mediante pagamento de determinada quantia em dinheiro. Os fatores econômicos estão relacionados ao dinheiro ou à disponibilidade financeira.
b)Instrumentos Subjetivos:
Referem-se à liberdade de escolha pelo consumidor, é ele quem detém a livre iniciativa na busca pelas mercadorias que lhe proporcionam satisfação pessoal.
Não interessa ao mercado de consumo a existência do instrumento objetivo, sem que exista o subjetivo e vice-versa. Um consumidor não adquire bens e serviços, sem que tenha o elemento objetivo (caracterizado pela possibilidade econômica de comprar). Da mesma forma, em não havendo a satisfação pessoal (elemento subjetivo), não haverá relação de consumo. Tal fato se dá porque o mercado de consumo existe para proporcionar ao consumidor a possibilidade de satisfazer necessidades individuais, associadas ao menor custo possível.
Diante disso, para que haja uma relação de consumo realizada conforme os ditames legais, é preciso constatar-se a existência de instrumentos objetivos e subjetivos de acesso dos sujeitos aos objetos da produção. Na falta de qualquer deles, haverá um vício muitas vezes passível de nulificar a relação de consumo.
Visualizando desta maneira, a Política de Consumo tem objetivos primordiais a serem seguidos, sendo necessário analisar a existência ou não dos instrumentos objetivo e subjetivo nas relações de consumo, para que nenhum integrante destas relações – especialmente os consumidores – sejam prejudicados.
Neste contexto, a existência da boa-fé objetiva será um fator determinante.
7– Princípio da Boa-fé contratual
7.1.– Noção Geral
O artigo 4.º do Código de Defesa do Consumidor traça as diretrizes da Política Nacional das Relações de Consumo, tendo por objetivos: o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito a sua dignidade, saúde, segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os princípios da boa-fé e do equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores, dentre outros.
A expressão boa-fé tem sua origem etimológica a partir da expressão latina bona fides. Sobre o tema, Plínio Lacerda Martins nos ensina que: "’Fides’ significa o hábito de firmeza e de coerência de quem sabe honrar os compromissos assumidos, significa, mais além do compromisso expresso, a fidelidade e coerência no cumprimento da expectativa alheia independentemente da palavra que haja sido dada, ou do acordo que tenha sido concluído, acordo entre homens honrados – compromisso expresso ou implícito de fidelidade e cooperação nas relações contratuais(confiança). [10]
Analisando a boa-fé, Adalberto Pasqualotto apresenta o seguinte entendimento: "A boa-fé permite que o contrato converta-se numa ‘ordem de cooperação’, em que credor e devedor não ocupam mais posições antagônicas, dialéticas e polêmicas. A contraposição de interesses é superada pela convenção, que concerta e harmoniza os objetivos comuns das partes em torno do objeto do negócio. A partir do acordo de vontades, o cumprimento da obrigação de um representará a satisfação do crédito do outro. Por isso o vínculo jurídico que une os contraentes apresenta uma exigência inerente de ética e lealdade, para que não ocorra a frustração das expectativas." [11]
Sob um aspecto genérico, a boa-fé pode ser considerada como algo que deve estar presente em todas as relações jurídicas e sociais existentes. Conforme ensinamento de Agathe E. Schmidt da Silva: "A boa-fé pode ser abordada em diferentes aspectos da vida social. Sob o aspecto psicológico, boa-fé é o estado de espírito de quem acredita estar agindo de acordo com as normas de boa conduta. Sob o ponto de vista ético, boa-fé significa lealdade, franqueza, honestidade, conformidade entre o que se pensa, o que se diz, o que se faz". [12]
Cabe ressaltar que, majoritariamente, a doutrina entende haver dois sentidos diferentes para a boa-fé: em sua concepção subjetiva, corresponde ao estado psicológico do agente; enquanto que a boa-fé objetiva se apresenta como uma regra de conduta.
7.1.1.- Boa-fé Subjetiva
A boa-fé subjetiva diz respeito à ignorância de uma pessoa acerca de um fato modificador ou impeditivo de seu direito. Neste sentido, o manifestante de vontade crê que sua conduta é correta, tendo em vista o grau de conhecimento que possui de um negócio. Para ele há um estado de consciência ou aspecto psicológico que deve ser considerado.
Com se observa, na boa-fé subjetiva, considera-se a intenção do sujeito. Trata-se de um estado de espírito, estado de consciência, como o conhecimento ou desconhecimento de uma situação, fundamentalmente psicológica. E é exatamente a intenção do sujeito da relação jurídica que o intérprete terá que levar em consideração.
Na relação de consumo não se aplica a boa-fé subjetiva (intenção, crença) e sim a boa-fé objetiva (lealdade). Assim, não há a preocupação referente à intenção de cumprir o contrato, mas sim se existe ou não a lealdade no contrato estabelecido.
7.1.2.– Boa-fé Objetiva
O princípio da boa-fé objetiva traz uma regra de conduta impondo, por conseguinte, o dever de lealdade, transparência, veracidade e cooperação recíproca antes, durante e após as relações de consumo. Trata-se de um verdadeiro controle das cláusulas e práticas comerciais abusivas no mercado de consumo. Ora, o artigo 3.º da Carta Constitucional de 1988 tem como um de seus objetivos fundamentais, "a construção de uma sociedade livre, justa e solidária". Quer então o legislador que, através do princípio da boa-fé objetiva, os consumidores se sintam protegidos. Só assim estará sendo atingida a sociedade livre, justa e solidária proclamada como fundamento da Carta Maior.
O princípio da boa fé se traduz no interesse social da
segurança das relações jurídicas onde as partes devem agir com lealdade e
confiança recíprocas.
A boa-fé objetiva exige a valoração da conduta das partes que deve ser
honesta, correta e leal.
As variadas acepções da boa-fé conduzem os dois sentidos básicos: um negativo, em que se visa impedir a ocorrência de comportamentos desleais (obrigação de lealdade), e um positivo, de espírito mais moderno e exigente, em que se intenta promover a cooperação entre os contraentes (obrigação de cooperação).
O que se procura demonstrar é que o contrato não produz somente os deveres que foram convencionados entre as partes, mas cria deveres que decorrem implicitamente dele. Tais deveres são denominados anexos ou secundários, por não constarem expressamente do contrato.
Podemos inserir dentro desses deveres anexos o comportamento das partes, que deve ser honesto e leal na relação contratual. Destarte, entre esses principais deveres, podemos citar o dever de informação, o dever de oportunidade de conhecimento do conteúdo do contrato, o dever de cooperação, o dever de sigilo, o dever de cuidado, o dever de prestar contas e o dever de proteção.
O dever de informação tem sua previsão legal constante, por exemplo, nos artigos 30, 31, 34, 48 do Código de Defesa do Consumidor, e significa que as partes devem se manter informadas acerca de tudo que cerca o contrato em comum, resguardando a lealdade exigida em todas as fases contratuais.
Por dever de cooperação, deve-se entender que nenhuma das partes deve se utilizar de mecanismos que impeçam ou obstruam o fiel cumprimento do contrato.
Temos também o dever de sigilo, que vem significar o comprometimento entre as partes de não tornar público aquilo que foi pactuado como sigiloso, ou aquilo que a lei determina como tal.
O dever de cuidado refere-se tanto à preservação de danos à integridade pessoal, ou a integridade do patrimônio dos contraentes.
As partes também devem prestar contas uma à outra a respeito dos gastos contratuais etc. De igual modo, têm o dever de tomar todas as atitudes possíveis para que a integridade do contrato seja protegida.
É importante deixar claro que as partes, ao tomarem qualquer atitude com relação ao contrato que se coloca, devem agir coerentemente, ou seja, sem atitudes contraditórias.
Como se verifica, embora estes deveres anexos não estejam expressos em lei, devem existir por traduzirem o respeito ao princípio da boa-fé objetiva.
Portanto, diz-se que a boa-fé objetiva tem algumas funções, a saber:
a)1.ª função: fonte de novos deveres especiais de conduta durante o vínculo contratual, os chamados deveres anexos da relação contratual;
b)2.ª função: limitadora do exercício, antes lícito, hoje abusivo, dos direitos subjetivos advindos da autonomia da vontade;
c)3.ª função: norma de interpretação e integração do contrato, com conotação finalística, visando resguardar o equilíbrio e o resultado equitativo da relação contratual