O acolhimento familiar da criança e do adolescente à luz da Lei n.º 12.010/09

19/09/2017 às 07:18
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O artigo visa tratar, à luz da legislação, os principais aspectos a serem considerados no acolhimento familiar, com o objetivo de atender de forma prioritária o “melhor interesse” da criança e/ou adolescente, afastados definitivamente da família de origem.

A Lei n.º 12.010, de 03 de agosto de 2009, priorizou os programas de acolhimento familiar como primeira alternativa diante da impossibilidade da criança ou do adolescente permanecerem na família, seja ela natural ou extensa. Nesse sentido, este artigo aponta algumas das medidas importantes a serem consideradas na proposta de um programa de acolhimento familiar que possa atender, primordialmente, o “melhor interesse” da criança e/ou adolescentes afastados definitivamente da família de origem.

Inobstante a motivação intrínseca a cada família candidata ao acolhimento de crianças ou adolescentes separadas do núcleo familiar de origem, é fundamental analisar, de forma individual e prévia, os dados históricos e sociais dos menores submetidos a essa medida. Nos termos da lei, o acolhimento familiar tem caráter excepcional e temporário (art. 34, § 1º, Lei n.º 12.010/09). É evidente que, ao atribuir a este tipo de programa tais características, entende-se que o mesmo assume um papel subsidiário às tentativas frustradas de reintegração à família originária e trata-se de um momento não estável no que se refere à definição de seu status como temporário.

Identificada a sua instabilidade e subsidiariedade, não se pode, contudo, subestimar os resultados efetivos dessa medida que, vale ressaltar, tem primazia sobre a possibilidade de acolhimento institucional em que a criança e/ou o adolescente são recebidos em abrigos públicos para menores.

A instabilidade da situação jurídica que se configura a partir do acolhimento familiar em nada se confunde com a instabilidade afetivo-emocional nas relações de convivência entre a criança ou o adolescente e seus respectivos acolhedores. Partindo dessa premissa, e visando o melhor interesse daqueles, impende observar que, no processo de acolhimento, ocorrem dois fenômenos inseparáveis: a ação espontânea e dedicada dos indivíduos que recebem o menor no âmbito de sua privacidade familiar e a reação deste ante as demonstrações, por vezes inéditas, de cuidado, afeto e interesse por seu desenvolvimento saudável; ou seja, o comportamento do acolhido quando se insere numa realidade para ele não habitual.

A seleção eficiente das famílias participantes do programa requer a compatibilidade em termos práticos com os menores. A disposição das famílias para receber a criança ou o adolescente é condição necessária, porém, de per si, não se faz suficiente, haja vista que os métodos de acolhimento pela família em particular devem ir ao encontro das necessidades geradas pelos conflitos registrados nos históricos psicossociais de cada criança e adolescente.

Embora se admita que as causas motivadoras da escolha pelo programa de acolhimento familiar sejam em todos os casos graves para justificar a adoção desta medida excepcional, há que ser possível identificar os principais fatores condicionantes que agem diretamente no alcance de uma adaptação harmoniosa do acolhido ao novo ambiente de convívio familiar. A realização de uma análise efetiva e capaz de aferir as probabilidades reais de adequação de ambas as partes deve preceder ao acolhimento ainda que nos termos acima declarados.

Não se trata apenas de redirecionar, a lares cadastrados previamente, crianças e adolescentes afastadas de suas famílias de origem. É preciso avaliar em que condições essa medida pretende ser realizada a fim de que o melhor resultado da ação se traduza na materialização do melhor interesse dos acolhidos. Um exemplo que fundamenta a teoria apresentada é o acolhimento de uma criança vítima de intensas agressões físicas por parte do pai viciado em bebidas alcoólicas. A fim de complementar a hipótese, imagina-se que a casa em que vivia o menor situava-se em frente a uma taberna e da janela da sala se podia ver o pai, durante horas, consumindo bebida alcoólica. Na volta pra casa, covardemente, o indivíduo agride os filhos. Após o recebimento de denúncias sobre o caso, que culminam no afastamento definitivo da família de origem mediante o acolhimento em família substituta, o menor sob cuidados passa a residir em uma casa cujos donos mantêm no primeiro andar do terreno um próspero estabelecimento para venda de bebidas alcoólicas. Ainda que a família bem estruturada e consciente da responsabilidade tenha verdadeiro interesse em obter a guarda do menor, há que se questionar se aquele é o melhor ambiente, do ponto de vista psicológico da criança ou do adolescente, que deve ter condições de discernir que o bar que a família mantém representa o meio de sustento da casa e, portanto, não detém, naquele contexto, uma conotação negativa. Pela relevância do seu histórico pessoal, portanto, impende, então, que se encontre outra família que atenda de modo mais adequado o melhor interesse da criança e do adolescente a fim de que estes não realimentem traumas que se pretendem deixar para trás com acolhimento familiar.

O caput do art. 197-C da Lei 12.010/2009 faz referência à intervenção obrigatória de equipe interprofissional a serviço da Justiça da Infância e da Juventude para elaboração de estudo psicossocial a respeito dos postulantes à adoção. O objetivo do estudo é conter subsídios que permitam aferir a capacidade e o preparo dos postulantes para o exercício de uma paternidade ou maternidade responsável, à luz dos requisitos e princípios da referida Lei. Adiante, no § 1º do mesmo dispositivo, é prevista como etapa obrigatória a participação dos postulantes em programa oferecido pela Justiça da Infância e da Juventude preferencialmente com apoio dos técnicos responsáveis pela execução da política municipal de garantia do direito à convivência familiar, que inclua preparação psicológica, orientação e estímulo à adoção interracial, de crianças maiores ou de adolescentes, com necessidades específicas de saúde ou com deficiências e de grupos de irmãos. Finalmente o § 2o  do art. 197-C traz uma interessante atividade complementar à etapa obrigatória, que é o contato com crianças e adolescentes em regime de acolhimento familiar ou institucional em condições de serem adotados, a ser realizado sob a orientação, supervisão e avaliação da equipe técnica da Justiça da Infância e da Juventude, com o apoio dos técnicos responsáveis pelo programa de acolhimento familiar ou institucional e pela execução da política municipal de garantia do direito à convivência familiar.

Pelo conteúdo exposto, observa-se uma evidente preocupação por parte do legislador em avaliar técnica e criticamente a vocação daqueles que se candidatam a pais adotivos. Tal vocação é aferida levando em consideração principalmente o estado psicológico dos candidatos. Busca-se identificar por meio de critérios qualitativos o nível de maturidade e responsabilidade social de cada postulante à adoção a fim de que seja possível determinar as chances efetivas de uma adoção bem-sucedida, ou seja, que cumpra o compromisso de atender ao melhor interesse da criança e do adolescente. Tão importante quanto a avaliação e preparação dos postulantes à adoção através do contato com crianças e adolescentes em regime de acolhimento familiar é o acompanhamento psicológico destes últimos nas fases do processo de transição e consolidação de uma nova vida. Ora, se a legislação faz referência ao convívio com os menores como uma etapa intermediária entre o programa de preparação e orientação dos postulantes e a conclusão do processo, também há que se promover um trabalho específico orientado aos acolhidos sob a supervisão de equipe técnica qualificada.

É consenso que as decisões judiciais que determinam o afastamento definitivo de crianças e adolescentes de suas famílias de origem são todas motivadas por circunstâncias de extrema necessidade nas quais a integridade das vítimas, quando não bruscamente já violada, encontra-se em constante ameaça. Diante do quadro apresentado e identificada a causa geradora dos transtornos, é de extrema importância que os menores sejam individualmente avaliados por profissionais especializados, assim como são os adultos que visam à adoção. Mais que uma análise superficial que demonstre um ou outro aspecto da personalidade das crianças e adolescentes a serem acolhidos por uma família, é necessária a realização de um levantamento apurado das suas condições psíquicas e emocionais. A proposta do estudo psicossocial para os postulantes a fim de selecionar aqueles que verdadeiramente estão aptos para receberem em seus lares crianças ou adolescentes, independentemente de esteriótipos pré-definidos, traduz-se aqui no estudo orientado para o centro dos interesses da questão: a criança e o adolescente.

Assim como não basta apenas a apresentação de documentos pessoais para registrar o interesse em se tornar um adotante, devendo-se ainda proceder a um exigente processo de avaliação e preparo práticos, não é possível também destinar os menores a primeira família da lista que se disponha a recebê-los sem investigar anteriormente o que este menor a ser acolhido de fato necessita em termos de acompanhamento por parte da Justiça da Infância e da Juventude. Não se trata aqui de se livrar de um potencial problema para o Estado entregando crianças e adolescentes desamparados a novas famílias. O compromisso com estes indivíduos se prolonga ainda que eles já tenham sido acolhidos a fim de monitorar o progresso obtido com a medida.

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O que se propõe aqui é um efetivo trabalho de colaboração com os acolhedores na reabilitação socioafetiva de crianças e adolescentes em sua maioria traumatizados psicologicamente ou, senão, sempre abalados emocionalmente, através de programas de elevação de autoestima, desenvolvimento da confiança pessoal e renovação de seus ideais maculados pela tragédia a fim de que possam novamente estar inseridos num ambiente familiar saudável e, de fato, acolhedor. As recorrentes lembranças do passado triste devem ser superadas e abertas as portas de entrada para uma nova vida feliz.

Não se espera que crianças e adolescentes recém saídos de um convívio familiar caótico tenham conscientemente definidos os parâmetros ideais de comportamento a serem aplicados em suas vidas práticas. O fato é que se tratam de menores de idade em formação do pensamento e da personalidade. Enquanto uns podem sedimentar interiormente o medo e as frustrações que carregam, outros podem eventualmente externar um posicionamento mais inóspito, segundo suas concepções. Nestas condições e seguindo a proposta de um acolhimento familiar que verdadeiramente atenda ao melhor interesse da criança e do adolescente, faz-se necessário que os menores acolhidos adquiram uma adequada percepção quanto à realidade social na qual estão inseridos e compreendam o seu papel como participantes ativos na comunidade a que pertencem. Para tanto, o primeiro pressuposto requerido é que estes menores concebam na figura de seus acolhedores um referencial de comportamento a ser seguido. Desta forma, entende ser preciso que a criança ou o adolescente recebam orientações constantes que o auxiliem a perceber a importância que possuem dentro da dinâmica social pela qual também são atingidos e o compromisso de suas ações para com o desenvolvimento comunitário saudável.

Os menores afastados definitivamente do núcleo familiar de origem podem trazer consigo lembranças de experiências trágicas e exemplos de maus tratos. O comportamento cruel e desumano traduzido em castigos físicos, agressões verbais ofensivas e demais atitudes danosas ao estado físico-anímico do menor podem introduzir uma percepção nociva quanto aos valores morais reconhecidos universalmente. Pode-se dizer que há, neste contexto, a construção de um sistema axiológico às avessas do que se espera obter em um meio que objetiva a coexistência humana digna, pacífica e solidária.

A partir do momento em que estes menores saem do domínio perverso a que são submetidos e entram em contato com um mundo de valores diametralmente opostos ao que se verificava em sua convivência com a família de origem, podem tender a se afastar dos requisitos de convivência socialmente difundidos e aceitos. Importa então que o acolhedor seja capaz de identificar as peculiaridades inerentes ao comportamento do menor, a fim de que possa servir de referencial para as mudanças exigíveis à garantia da convivência familiar e comunitária.

O acolhimento familiar, portanto, pressupõe sensibilidade para aceitar o recebimento do menor, independentemente do estado em que ele se encontre, e disposição fática para ajudá-lo a constituir base autônoma sólida para sua formação pessoal, visando, por intermédio das medidas apresentadas, ao cumprimento do melhor interesse da criança e do adolescente.

Com o intuito de atender ao “melhor interesse” da criança e do adolescente, as principais medidas apresentadas neste trabalho à luz da Lei n.º 12.010/09 foram: a seleção das famílias acolhedoras de acordo com o histórico pessoal de cada criança e adolescente; o acompanhamento psicológico antes, durante e depois do processo de acolhimento familiar, para permitir à criança e ao adolescente o acesso a tratamento de traumas advindos de situações de perda, abandono e violência; e a constituição de referenciais para adequar a personalidade da criança e do adolescente ao novo momento familiar e aos requisitos de convivência socialmente difundidos e aceitos.


Referência

BRASIL. Lei n.º 12.010, de 03 de agosto de 2009. Dispõe sobre adoção; altera as Leis nos 8.069, de 13 de julho de 1990 - Estatuto da Criança e do Adolescente, 8.560, de 29 de dezembro de 1992; revoga dispositivos da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil, e da Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943; e dá outras providências. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/l12010.htm>. Acesso em: mar. 2011.

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Sobre a autora
Daniela Almeida

Bacharel em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e Especialista em Tecnologias e Educação a Distância.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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