SUMÁRIO: 1. Introdução: apresentação dos princípios do Direito Contratual; 1.1. Principiologia clássica; 1.2. Nova principiologia; 2. O princípio da boa-fé – regra geral da honestidade; 3. A boa-fé (objetiva) contratual; 3.1. Funções da boa-fé contratual; 3.2. Violação da boa-fé e a extinção contratual; 3.3. Subprincípios da boa-fé contratual; 4. Considerações finais; 5. Referências; 6. Outras sugestões de leitura e pesquisa.
1 Introdução: apresentação dos princípios do Direito Contratual
Os princípios são normas/regras gerais e referenciais que fornecem os pilares de determinada área do pensamento científico ou do ordenamento jurídico – na proposta em foco: do Direito Contratual.
GONÇALVES (2010) chama os princípios contratuais de ‘fundamentais’, devido a sua alta relevância na estruturação desse ramo do direito. FIUZA (2008) atribui a denominação ‘informadores’ aos princípios contratuais, uma vez que, para ele, esses princípios informam ao cientista e/ou profissional do direito os sustentáculos e referenciais de estudo dos quais devemos partir.
Importa, inicialmente, destacar que esses princípios fundamentais/informadores do Direito Contratual realmente são imprescindíveis para a construção e o estudo desse ramo do Direito, uma vez que se aplicam a inúmeras ocasiões e situações, e, deles, um conjunto de normas afins pode ser extraído.
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Exemplos:
a) Segundo FIUZA (2008), “do princípio do enriquecimento sem causa, pode-se deduzir a regra de que quem recebe pagamento indevido, por erro do devedor, deverá restituir o que recebeu.”;
b) Segundo os princípios da boa-fé e da confiança, quem assinou contrato de conta corrente junto a uma instituição financeira, contrato este que em uma de suas cláusulas impõe ‘consumo’ de um seguro de vida, não estará obrigado a cumprir tal imposição (mesmo que tenha que recorrer ao judiciário para fazer valer sua vontade).
Ao longo dos anos, as relações humanas, especificamente as contratuais, passaram por inúmeras mudanças e transformações – o homem hoje não contrata como contratava há trinta ou cem anos -, e, por isso, segundo FIUZA (2008), “o direito contratual se pauta, atualmente, em princípios modernos, criados para atender às mudanças de paradigma dos contratos”. Ou seja, pode-se afirmar aqui que as bases principiológicas clássicas do Direito Contratual evoluíram, objetivando ajuste a um novo modelo de contratar que releve diferenças econômicas entre as partes, massificação dos negócios, entre outros fatores de incidência na sociedade brasileira moderna.
1.Principiologia clássica
FIUZA (2008) afirma que os princípios clássicos têm como referência a forma tradicional de contratar, ou seja, o negócio jurídico onde “duas pessoas, em igualdade de condições, discutem e negociam livremente, para, então, celebrar o contrato”. A ideia é considerar a igualdade formal, “pressuposição de igualdade entre as partes”.
Apesar de não existir uma uniformidade doutrinária quanto à exata identificação de todos os princípios considerados ‘clássicos’, os mais relevantes são:
2.Princípio da autonomia da vontade – considerado o mais importante dos princípios contratuais, é ele que faculta, às partes, total liberdade para discutir e concretizar seus contratos. Nesta ótica clássica, um contrato é visto como fenômeno da vontade e não como fenômeno econômico-social, e essa ‘autonomia da vontade’ é exercida em quatro planos, segundo FIUZA (2008): contratar ou não contratar; com quem e o que contratar; estabelecer as cláusulas, respeitada a lei; e mobilizar ou não o Judiciário para fazer respeitar o contrato (fonte formal de Direito). Certamente, este princípio comporta exceções (Ex: contratos de adesão, onde inexiste a liberdade de discutir cláusulas) e foi objeto de evolução, sob novo contexto econômico-social.
3. Princípio da obrigatoriedade contratual (pacta sunt servanda) – uma vez celebrados sem qualquer vício de vontade, os contratos não podem ser modificados, ressalvada nova manifestação comum dos contratantes nesse sentido. Também segundo FIUZA (2008), este princípio só se aplica “aos contratos realizados de acordo com a lei”; e continua: “os contratos, bem como as cláusulas contrárias ao Direito, reputam-se ilegítimos, saindo da esfera do princípio da obrigatoriedade contratual”. É um desdobramento da autonomia da vontade e, modernamente, interessa à sociedade a tutela da situação por suas consequências econômicas e sociais (Teoria Preceptiva). Segundo a visão clássica, a obrigatoriedade contratual só admitia exceções diante da impossibilidade de cumprimento do pactuado por caso fortuito ou força maior.
4.Princípio do consensualismo – só se considera celebrado o contrato, obrigando, pois, as partes, no momento em que estas cheguem ao consenso, e, segundo termos da lei, independente de outra formalidade qualquer. Claro que tal regra admite exceção, desde que expressa em lei (Ex: Registro em cartório de compra e venda de imóvel).
1.2 Nova principiologia
Segundo a ‘nova’ principiologia, o negócio obrigacional deixa de se concentrar na vontade, e passa a ser um fenômeno social – novo objeto de tutela do Direito.
Diante de acontecimentos e mudanças históricas, como a urbanização e a massificação dos grandes centros, a concentração capitalista e seus ideais de concorrência e produção industrial em série, a forma liberalista de contratar sofreu transformações, rompendo com o tradicionalismo da autonomia da vontade, para dar lugar a novos modelos contratuais: os ‘contratos de adesão’.
Nesse viés, nasce a já citada Teoria Preceptiva: “(...) as obrigações oriundas dos contratos valem não apenas porque as partes assumiram, mas porque interessa à sociedade a tutela da situação objetivamente gerada, por suas consequências econômicas e sociais.” (FIUZA, 2008). Além disso, ROBERTO e FIUZA (2002) destacam que “os princípios contratuais clássicos não devem ser excluídos, mas a sua aplicação deve ser contextualizada com as atuais exigências da justiça social e sempre em harmonia com os novos princípios.”. Portanto, os interesses particulares devem estar em harmonia com os gerais e o contrato passa a realizar um valor de utilidade social.
‘Valor’ é uma premissa, uma verdade básica. FIUZA (2008) elenca, mencionando Stein e Shand, que os valores fundamentais da sociedade moderna ocidental são quatro: ordem (segurança), justiça, liberdade e dignidade humana, e diz que “com base nesses valores que o contrato intenta promover o bem comum (...).”.
A cada um desses valores, FIUZA (2008) vincula um novo princípio contratual:
1. “à liberdade, corresponde o princípio da autonomia privada” – difere do princípio da autonomia da vontade (clássico), pois, aqui, o contrato “não é fenômeno meramente volitivo”, ou seja, “a vontade é condicionada por fatores externos, por necessidades, que dizem respeito aos motivos contratuais” – vontade derivada de uma necessidade, sobre a qual incide uma norma;
2. “à justiça, o princípio da justiça contratual” – estabelece uma relação de paridade nos negócios comutativos, “de sorte a que nenhuma das partes dê mais ou menos do que recebeu” (procura dar equilíbrio aos contratos);
3. “à dignidade, o princípio da dignidade humana” – contratos, “(...) enquanto meio de geração e de circulação de riquezas (...), devem ser instrumento de promoção do ser humano e de sua dignidade”;
4. à dignidade novamente, o princípio “da função social dos contratos” – contratos “são instrumentos de movimentação da cadeia econômica, (...) geram empregos, criam oportunidades para a promoção do ser humano”;
5. e, por fim, “à ordem (...), o princípio da boa-fé”, que veremos a seguir.
2 O princípio da boa-fé – regra geral da honestidade
Tratar do conceito de “boa-fé” nos remete a considerações éticas e morais, devido ao caráter aberto de suas diversas e apresentadas definições doutrinárias; em rudimentar e coloquial primeira impressão, a boa-fé se coloca como contraponto da má-fé, ou seja, esta expressão nos remete a atrelá-la aos ideais de confiabilidade.
GAGLIANO e PAMPLONA FILHO (2009) afirmam que “a boa-fé é, antes de tudo, uma diretriz principiológica de fundo ético e espectro eficacial jurídico”; e continuam: “a boa-fé se traduz em um princípio de substrato moral, que ganhou contornos e matiz de natureza jurídica cogente”.
Portanto, para melhor tratar do princípio da boa-fé, importa esclarecer que a ‘boa-fé’ pode ser subjetiva ou objetiva.
Segundo FIUZA (2008), a boa-fé subjetiva “consiste em crenças internas, (...) no desconhecimento de situação adversa”. E continua: “quem compra de quem não é dono, sem saber, age de boa-fé, no sentido subjetivo”.
Já a boa-fé objetiva baseia-se, segundo o mesmo autor, “em fatos de ordem objetiva”, ou seja, “na conduta das partes, que devem agir com correção e honestidade, correspondendo à confiança reciprocamente depositada”. E é aqui que se encaixa a ideia da boa-fé contratual.
3 A boa-fé (objetiva) contratual
O princípio da boa-fé contratual é um dever imposto às partes: agir com lealdade e retidão (com correção) durante todas as etapas de um contrato – tratativas pré-negociais; execução e conclusão do contrato.
Esta é a conotação dada pelos artigos 113, 187 e 422 do atual Código Civil pátrio; veja:
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Artigo 113 CC/2002 – “Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.” – REALE (2017) afirma que a boa-fé é, nesse sentido, “tanto forma de conduta como norma de comportamento, numa correlação objetiva entre meios e fins, como exigência de adequada e fiel execução do que tenha sido acordado pelas partes”, ou seja, “que a intenção destas só pode ser endereçada ao objetivo a ser alcançado, tal como este se acha (...) configurado nos documentos que o legitimam”. Detalhe: ao se falar em interpretação conforme ‘costume’ do lugar de sua celebração, fica evidente a preocupação do legislador com as consequências que o negócio jurídico gerará para o contexto econômico-social de sua inserção.
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Artigo 187 CC/2002 – “Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”. – REALE (2017) diz que o atual Código Civil volta a “dar importância ao Direito consuetudinário, o qual foi banido do Código anterior (...), em contraste com o ora vigente, com suas regras genéricas e abertas que permitem ao advogado e ao juiz apreciarem as relações jurídicas ‘in concreto’”. Essa generalidade e abertura, inclusive, permitem aos operadores do Direito atender ao aspecto social de um contrato e a “considerar ilícito o comportamento do titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé e pelos bons costumes”.
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Artigo 422 CC/2002 – “Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”. – o Recurso Especial nº 1.051.065-AM, citado por GUIMARÃES e MEZZALIRA (2017), afirma que através do artigo 422, o atual Código Civil dispôs expressamente sobre a boa-fé objetiva, da qual se extrai a necessidade de observância dos chamados deveres (*) anexos ou de proteção, devendo-se reconhecer a responsabilidade de reparação de danos, reparação essa em qualquer fase contratual (pré, execução e pós-contratual).
Segundo MARTINS-COSTA (2000), os deveres contratuais derivados da boa-fé contratual são: 1) de cuidado, previdência e segurança; 2) de aviso e de esclarecimento; 3) de informação (vinculadas às relações de consumo); 4) de prestar contas; 5) de colaboração e cooperação; 6) de proteção e de cuidado com a pessoa e com o patrimônio da contraparte; 7) de omissão e de segredo.
3.1. Funções da boa-fé contratual
O princípio da boa-fé contratual tem três funções principais, segundo FIUZA (2008), a saber:
1. Interpretativa – “os contratos devem ser interpretados de acordo com seu sentido objetivo aparente (...)”, e “quando o próprio sentido objetivo suscite dúvidas, deve ser preferido o significado que a boa-fé aponte como o mais razoável” – O generalismo e o sistema aberto da norma dão ao intérprete liberdade de estabelecer o seu sentido e alcance em cada caso;
2. Integrativa – “percebe-se que o contrato contém deveres, poderes, direitos e faculdades primários e secundários”, (...) “integrados pelo princípio da boa-fé”;
3. De controle – “diz que o credor, no exercício de seu direito, não pode exceder os limites impostos pela boa-fé, sob pena de proceder ilicitamente – (...) tem a ver com as limitações da liberdade contratual, da autonomia da vontade geral e com o abuso de direito”.
Em suma, é na eficácia do cumprimento destas funções retromencionadas que os contratantes podem permanecer tranquilos no que se refere aos objetos de pactuação, sejam eles quais forem dentro da legalidade, e, acima de tudo, realizarem a verdadeira justiça contratual (ideal concretizador do próprio Direito enquanto instituto, garantindo a harmonia e a justiça das relações jurídicas estabelecidas).
3.2. Violação da boa-fé e a extinção contratual
Entre as causas de extinção de obrigações, previstas em lei, causas essas que, pela Teoria da Responsabilidade Contratual, garantiriam compensação à parte lesada, a má-fé se destaca pela intenção perniciosa no rompimento de um contrato. FIUZA (2008) é enfático ao afirmar que um contrato pode ser extinto por violação do princípio da boa-fé, e ele atribui duas causas para isso:
1. Frustração do fim contratual objetivado – a outra parte “não estaria agindo de boa-fé, se exigisse a execução do contrato ou a indenização por perdas e danos” – o autor exemplifica, mencionando a locação de um apartamento para determinado fato especial (para uma Micareta, por exemplo) que é cancelado: frustra-se o objetivo do contrato, podendo ele ser extinto, sem aplicação de multa – qualquer exigência do locador em sentido contrário, seria categorizada como expressão de má-fé;
2. Impossibilidade econômica da prestração – “a prestração fica extremamente onerosa, apesar de mantido o equilíbrio com a contraprestração” – o autor exemplifica citando os contratos cujos valores estão indexados em dólar: a quantificação de dólar, prevista em contrato, continua a mesma, contudo, em moeda nacional, seu preço se torna um absurdo. Seria violar a boa-fé exigir o pagamento, uma vez que ocorresse supervalorização do dólar.
3.3. Subprincípios da boa-fé contratual
Vale destacar também que, além dos princípios contratuais mencionados e de maior destaque, outros também importam na boa condução do ideário da boa-fé contratual; portanto, nesse sentido, FIUZA (2008) procura especificar noções importantes para a boa compreensão do instituto, e, por isso, subdivide o princípio contratual da boa-fé em:
1. Princípio da transparência – “as partes têm o dever de informar uma à outra tudo o que julgarem importante para a boa execução do contrato”. A transparência deve se dar em todas as etapas de um contrato;
2. Princípio da confiança – “as partes confiam uma na outra, devendo a atuação de ambas corresponder a essa confiança”.
A realização de ações que cumpram fielmente os significados destes citados subprincípios é de suma importância para fins imediatos, ou seja, concretização harmoniosa de um contrato e a satisfação integral pretendida pelos contratantes, e, para fins mediatos: pacificação social (mais uma vez realizando, aqui, a pretensão preceptiva já apontada).