3. OS INSTRUMENTOS DE POLÍTICA URBANA.
A política urbana terá de se municiar de condições básicas para ser executada, e o Estatuto prevê instrumentos, jurídicos e políticos, postos à disposição das Municipalidades, a fim de dar plena efetivação à mesma.
Tais instrumentos são todos os meios capazes de, isolada ou conjuntamente, dar vazão à execução da política urbana, alhures definida, delineada no Estatuto da Cidade.
De forma assistemática, o art. 4° da Lei enumera ditos instrumentos, que podem ser jurídicos ou políticos. Nos incisos I e II se observam instrumentos de cunho político mais amplo, tais como os planos nacionais, regionais e estaduais de ordenação territorial e de desenvolvimento econômico e social das regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e de microrregiões.
Já o inciso III traceja o planejamento municipal stricto sensu, apontando os instrumentos mais importantes de toda e qualquer política urbana: o plano diretor; a disciplina do parcelamento, do uso e ocupação do solo; o zoneamento ambiental; o plano plurianual; as diretrizes orçamentárias e o orçamento anual; a gestão orçamentária participativa; os planos, programas e projetos setoriais e o plano de desenvolvimento econômico e social.
Os institutos tributários estão consignados no inciso IV, sendo o IPTU (Imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana); a contribuição de melhoria e os incentivos e benefícios fiscais e financeiros.
Entretanto, para o presente trabalho, os mais importantes institutos jurídicos, posto que de cunho eminentemente administrativos, se encontram arrolados no inciso V: a desapropriação; a servidão administrativa; as limitações administrativas; o tombamento de imóveis ou de mobiliário urbano; a instituição de unidade de conservação; a instituição de zonas especiais de interesse social; a concessão de direito real de uso; a concessão de uso especial para fins de moradia; o parcelamento, edificação ou utilização compulsórios; a usucapião especial de imóvel urbano; o direito de superfície; o direito de preempção; a outorga onerosa do direito de construir e de alteração de uso; a transferência do direito de construir; as operações urbanas consorciadas; a regularização fundiária; a assistência técnica e jurídica gratuita para as comunidades e grupos sociais menos favorecidos; o referendo e o plebiscito.
Por fim, o inciso VI trata do Estudo Prévio de Impacto Ambiental (EIA) e do Estudo Prévio de Impacto de Vizinhança (EIV), instrumentos por excelência de tutela do meio ambiente artificial, sendo este último instrumento uma inovação benfazeja trazida pelo Estatuto.
Saliente-se, entretanto, que a exigência do EIV não dispensa a prévia apresentação de Estudo de Impacto Ambiental (EIA), tão pouco do Relatório de Impacto Ambiental (RIMA), quando exigidos pela legislação ambiental, conforme dita o art. 38 do Estatuto Citadino. Também não dispensa outras exigências legais, a exemplo dos álvaras de construção e do "Habite-se".
Outra importante novidade introduzida, já não com o caráter de ineditismo ( a Lei de Responsabilidade Fiscal - LRF traz em seu bojo instituto semelhante, a saber: o orçamento participativo), porém reiterando os recentes anseios dos legisladores de aproximar mais o povo das tomadas de decisões político-administrativas que dão destino às suas vidas, é a gestão democrática da cidade, instituída nos arts. 43 a 45 da Lei das Cidades, prevendo a criação de órgãos colegiados de política urbana, nas três esferas federativas; a realização de debates, audiências e consultas públicas; a promoção de conferências sobre assuntos de interesse urbano; e a iniciativa popular de projeto de lei e de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano.
Todos estes planos, institutos e instrumentos, políticos ou jurídicos, são regidos por leis próprias, cuja análise não é importante ser feita neste momento. Importa ressaltar, entretanto, que todos estes instrumentos, de cunho privado ou não, deverão ser aplicados em estrita consonância com a própria mens legis do Estatuto, que, por conter nítida preocupação com o bem-estar coletivo, acabará por absorvê-los e publicizá-los à seu modo.
De outra sorte, institutos foram, isto sim, criados pela Lei de Responsabilidade Social, a exemplo da outorga onerosa do direito de construir, cujo regime jurídico é o público, e nada semelhante existe na legislação civil, nem mesmo no novel Código Civil de 2002.
O Estatuto da Cidade, por derradeiro, promoveu a alteração de duas das mais importantes leis federais atualmente vigorantes em nosso ordenamento jurídico pátrio: a Lei da Ação Civil Pública - Lei Federal n° 7.347, de 24/07/1985, acrescida do inciso III, que foi renumerado, ao seu art. 1° ( para possibilitar a ação de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados à ordem urbanística) e a Lei dos Registros Públicos - Lei Federal n° 6.015, de 31/12/1973, que alterou a redação do item 28 e acrescentou os itens 37 e 39 ao inciso I do seu art. 167; assim como acrescentou os itens 18 a 20 ao inciso II do mesmo dispositivo ( para permitir, conforme o caso, o registro ou a averbação de certos atos no cartório de registro de imóveis, tais como as sentenças declaratórias de usucapião e termos administrativos ou sentenças declaratórias de concessão de uso especial para fins de moradia, ambos independentemente da regularidade do parcelamento do solo ou da edificação e as constituições do direito de superfície de imóvel urbano).
4 A DESAPROPRIAÇÃO COM PAGAMENTO EM TÍTULOS.
Antes de mais nada, mister se faz conceituarmos o que seja "desapropriação".
Dentre as mais drásticas formas de intervenção estatal na propriedade se destaca a desapropriação, como a mais extremada forma de manifestação do poder de império do Estado.
Contudo tal poder expropriatório, conquanto seja discricionário nas suas formas de utilidade pública e de interesse social (que é o caso do Estatuto da Cidade), só é legitimamente exercitável nos limites traçados pela Lei Maior e nos caso expressos em lei, observado o devido procedimento legal, nos alerta o saudoso mestre Hely Lopes Meirelles.
Com o brilhantismo que lhe é peculiar, Celso Antônio Bandeira de Mello conceitua "desapropriação", à luz do direito positivo pátrio, como sendo, verbis:
"o procedimento através do qual o Poder Público, fundado em necessidade pública, utilidade pública ou interesse social, compulsoriamente despoja alguém de um bem certo, adquirindo-o originariamente mediante indenização prévia, justa e pagável em dinheiro, salvo no caso de certos imóveis urbanos ou rurais em que, por estarem em desacordo com a função social legalmente caracterizada para eles, a indenização far-se-á em títulos da dívida pública, resgatáveis em parcelas anuais e sucessivas, preservado seu valor real."
Logo, a desapropriação, como meio originário de aquisição da propriedade, tem com seu principal fundamento de validade a supremacia do interesse coletivo sobre o individual, quando incompatíveis. Corresponde à idéia de domínio eminente de que dispõe o Estado sobre todos os bens existentes em seu território.
Sobre tal propósito, Odete Medauar enumera algumas características gerais das desapropriações, dentre as quais a de ser uma figura jurídica que expressa a autoridade da Administração Pública, acarretando limitação ao caráter perpétuo do direito de propriedade.
Toda desapropriação, continua a autora, tem como resultado a retirada de um bem do patrimônio de seu proprietário, tendo por fim o atendimento de um público interesse, almejando a um resultado benéfico a toda a coletividade. Medauar adverte, no entanto, que em troca do vínculo de domínio, o proprietário receberá uma indenização.
Diogenes Gasparini alcunha a desapropriação sob comento como sendo, em contraste com a ordinária prevista no inciso XXIV do art. 5° da Magna Carta, uma "desapropriação extraordinária destinada à urbanização", com esteio constitucional no art. 182, § 4°, III, e submetida à inúmeros requisitos, a saber: a) inclusão do imóvel no plano diretor; b) não edificado, subutilizado ou não utilizado; c) exigência, por lei municipal, de que o proprietário promova seu adequado aproveitamento; d) sucessividade das penas já anteriormente citadas até se chegar ao meio extremo da desapropriação; e) pagamento em títulos da dívida pública, assegurado o valor real da indenização e os juros legais.
Maria Sylvia Zanella de Pietro, com a percuciência habitual, classifica a "desapropriação-sanção", como uma modalidade expropriatória que leva em conta o interesse social, assim a analisando, litteris:
"o artigo 182, que cuida de hipótese nova de desapropriação cujo objetivo é atender à função social da propriedade expressa no Plano Diretor da cidade; embora a Constituição não fale em interesse social, a hipótese aí prevista melhor se enquadra em seu conceito doutrinário, além de apresentar grande semelhança com a prevista no artigo 2°, inciso I, da Lei n° 4.132; essa modalidade depende de disciplina legal; no entanto, o próprio preceito constitucional (art. 182, § 4°) já especifica uma das hipóteses em que é cabível, ou seja, quando se tratar de solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado e desde que já adotadas, sem resultado, as medidas previstas nos incisos I e II do artigo 182, § 4° (parcelamento ou edificação compulsórios e imposto predial e territorial urbano progressivo no tempo); é patente o caráter sancionatório da desapropriação, nesse caso;(...)."
Diogo de Figueiredo Moreira Neto conceitua esta modalidade de desapropriação sancionatória como um instrumento de intervenção do Estado na ordem econômica, com caráter excepcional, já que se afasta do princípio constitucional da democracia econômica, tida, segundo o art. 1°, IV da Carta Política de 1988, como fundamental para a Nação brasileira, e geral para toda a atividade econômica, expressada pela livre iniciativa e pela livre concorrência.
Dentre as quatro instituições interventivas postas à disposição do Estado, a desapropriação em estudo é uma modalidade sancionatória sui generis, pela qual o Estado pune os abusos e excessos praticados contra o princípio constitucional da função social da propriedade urbana, se caracterizando pela discricionariedade, uma vez que o Poder Público municipal pode considerar outras motivações para executá-la.
Diogo de Figueiredo a chama de "sui generis", porque a mesma refoge à regra de indenização prévia e justa, em dinheiro, como sói acontecer nas desapropriações ordinatórias, regra esta consignada, repise-se no art. 5°, XXVI da CF/88, por sinal reiterada no art. 182, § 3° do mesmo diploma constitucional.
No caso do Estatuto da Cidade, se o proprietário renitente, já submetido ao regime de parcelamento, edificação ou utilização compulsórios, não o urbaniza nem lhe dá a adequada utilização nos prazos e, conforme o caso, nas etapas aludidas na lei, nem é levado à tal pela cobrança do IPTU progressivo no tempo, pode ( e não "deve" - daí ser uma faculdade da Municipalidade) o Poder Público Municipal valer do recurso extremo da desapropriação sancionatória.
Trata-se de instrumento destinado a assegurar o regramento constitucional destinado à tutela do meio ambiente artificial dentre as possibilidades de institutos jurídicos e políticos disciplinados pelo art. 4°, V, "a" do Estatuto da Cidade.
Contudo a grande polêmica que cerca tal instituto, e é o cerne de estudo deste trabalho, remonta à forma de indenização prevista no Estatuto: em títulos da dívida pública municipal, e não em dinheiro, como ocorre na regra geral das desapropriações.
Daí porque Ter se instalado grande celeuma quanto à constitucionalidade do art. 8° e seus parágrafos, do Estatuto da Cidade.
Cremos que tal questão só poderá ser solvida à luz de uma sistêmica interpretação constitucional, de modo a conceber o sistema constitucional como um todo orgânico, harmônico e fechado.
Dessa forma, se partimos, de forma desapegada e friamente, da atenta leitura do art. 5°, XXIV da Magna Carta, veremos que neste próprio dispositivo está a salvação, ou melhor dizendo, a constitucionalidade do referido art. 8° da Lei das Cidades.
Dita referido comando constitucional que "a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição."
Ora, o próprio dispositivo que serve de lastro para juristas de renomada, como Celso Antonio Pacheco Fiorillo e Toshio Mukai, que entendem inconstitucional tal regramento do Estatuto, dá ensanchas à entendimento contrário, já que faz expressa ressalva à possibilidade de se pagar tais indenizações por outro meio, desde previstos na própria Carta de 1988.
No caso, é com fuste no inciso III do § 4° do art. 182 da mesma Constituição, que nos permite concluir, sem sombras de dúvidas, ser absolutamente constitucional o comando do art. 8° da Lei n° 10.257/2001.
Em tal inciso, se lê, de forma cristalina, que o pagamento da multi-citada indenização se dará mediante "títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais."
Ainda que o § 3° do art. 182 da Carta de 1988 possa nos confundir, quando dita que as desapropriações de imóveis urbanos serão feitas com prévia e justa indenização em dinheiro, tal dúvida se dissipa quando entendemos que tal parágrafo se refere à generalidade das desapropriações feitas pela Municipalidade.
Mister se faz lembrar que a desapropriação sancionatória é medida de exceção, e como tal há de ser concebida. O Município não só desapropria quando quer punir o proprietário especulador ou desleixado para com seu imóvel urbano.
Nos casos normais, em que o Poder Público Municipal quiser se valer do seu poder discricionário para desapropriar, por necessidade ou interesse público, como no caso de uma abertura de via de acesso, e.g., lógico que, em casos que tais, a indenização haverá de ser em moeda corrente, com esteio no art. 182, § 3° da CF/88.
Contudo, nos casos específicos do Estatuto da Cidade, aí sim, o pagamento seguirá os ditames dos arts. 182, § 4°, III da CF e art. 8° da Lei de 2001.
O que não pode acontecer, e aqui cabe o alerta às autoridades competentes, como a Câmara de Vereadores, o Ministério Público, e a sociedade em geral, é o desvirtuamento do instituto urbanístico para todo e qualquer procedimento desapropriatório municipal, como forma de burla à Constituição Federal e à própria Lei de Responsabilidade Fiscal, como típica forma de se "dar um jeitinho de se empurrar as contas para a próxima gestão", tão à moda brasileira da "Lei de Gérson".