O Código Civil de 2002 está em vigor há quase dois anos e durante esse período a doutrina limitou-se a elaborar críticas quanto ao tratamento dispensado ao direito sucessórios dos companheiros, sem, contudo, enfrentar uma eventual inconstitucionalidade do artigo 1.790 do Código.
Um dos poucos autores a abordar este assunto foi o professor Guilherme Calmon Nogueira da Gama, para quem:
O correto seria cuidar, em igualdade de condições às pessoas dos cônjuges, da sucessão em favor dos companheiros. Tal conclusão decorre da constatação de que, desde o advento das Leis nº 8.971/94 e 9.278/96, os companheiros e os cônjuges passaram a receber igual tratamento em matéria de Direito das Sucessões: ora como sucessores na propriedade, ora como titulares de usufruto legal, ora como titulares de direito real de habitação. Desse modo, considerando que, por força de normas infraconstitucionais, desde 1996 existe tratamento igual na sucessão entre cônjuges e na sucessão entre companheiros, deveria ter sido mantido tal tratamento para dar efetividade ao comando constitucional contido no art. 226, caput, da Constituição Federal.
Diante de tais ponderações, cabe à doutrina e à jurisprudência corrigir os vícios detectados no curso do processo legislativo e, desse modo, proceder a combinação das disposições contidas no art. 2º da Lei nº 8.971/94, com as relativas aos cônjuges no art. 1.829, incisos I, II e III, CC, sob pena de flagrantes inconstitucionalidades serem cometidas contra as pessoas dos companheiros. [1]
A despeito deste entendimento de vanguarda, a doutrina, majoritariamente, presume a constitucionalidade da norma e busca soluções para a distorção e o retrocesso legislativo causados pelo artigo 1.790.
Cremos, entretanto, que a questão referente à constitucionalidade da norma mereça exame mais acurado.
A legislação constitucional e infraconstitucional anterior a 1988 regia a questão familiar considerando valores essencialmente rígidos e masculinos. Nesse sentido, até 1977 o ordenamento brasileiro vedava o divórcio e, mesmo quando a Emenda Constitucional 09/77 autorizou-o no país, restringiu a apenas um eventual segundo casamento. Outros exemplos de normas com eminente caráter patriarcal podiam ser encontrados no Código Civil de 1916, como, por exemplo, a limitação a capacidade da mulher casada, a submissão da esposa e filhos a vontade do marido e chefe da família, a impossibilidade de reconhecimento de filhos extraconjugais [2].
Em síntese, antes de 1988, a família merecia proteção jurídica pelo mero fato da sua existência; o ordenamento jurídico procurava tutelar a família, entendida esta como a entidade formalmente constituída, com a observância de todas as solenidades, como um fim em si mesma, procurando preservá-la de qualquer manifestação externa capaz que destruí-la.
Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, houve uma grande alteração neste panorama. Nos dizeres de Gustavo Tepedino:
A Constituição Federal, centro reunificador do direito privado, disperso na esteira da proliferação da legislação especial, cada vez mais numerosa, e da perda de centralidade do Código Civil, parece consagrar, em definitivo, uma nova tábua de valores. O pano de fundo dos polêmicos dispositivos em matéria de família pode ser identificado na alteração do papel atribuído às entidades familiares e, sobretudo, na transformação do conceito de unidade familiar que sempre esteve à base do sistema. Verifica-se, do exame dos arts. 226 a 230 da Constituição Federal, que o centro da tutela constitucional se desloca do casamento para as relações familiares dele (mas unicamente dele) decorrentes; e que a milenar proteção da família como instituição, unidade de produção e reprodução dos valores culturais, éticos, religiosos e econômicos, dá lugar à tutela essencialmente funcionalizada à dignidade de seus membros, em particular no que concerne ao desenvolvimento da personalidade de seus filhos (3).
Em outras palavras, a Constituição de 1988 deixa de observar tão-somente o vínculo formal familiar para atender ao aspecto funcional da família, em especial, primando pela dignidade de cada um de seus membros. Vale ressaltar que essa mudança vai ao encontro da nova ordem constitucional, que, dentre seus fundamentos, inclui a dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III, CRFB/1988 [4]) [5]. E é essa alteração que justifica a inclusão no texto constitucional das famílias não constituídas pelo formal laço matrimonial, inclusive denotando-lhes a devida proteção do Estado.
Dentre estas entidades familiares que mereceram proteção estatal, encontra-se a união estável – artigo 226, § 3º, CRFB [6]. Até hoje persiste a polêmica controvérsia acerca da posição constitucional ocupada pela união estável: se foi alçada pelo constituinte originário à posição equivalente a do casamento ou se representa um minus em relação a este, tendo a solução grande relevância no que tange à tutela conferida a cada um destes institutos.
Quem, novamente, melhor soluciona a questão é o ilustre professor Gustavo Tepedino:
A falta de percepção do novo paradigma axiológico parece permear a polêmica até hoje em curso na doutrina e na jurisprudência quanto a eventual equiparação do casamento às uniões estáveis. Procura-se cotejar conceitos heterogêneos, fomentando-se, em conseqüência, o que parece ser uma falsa polêmica.
O constituinte, a rigor, vale-se da dualidade conceitual da expressão casamento, que pode ser examinado ora como ato jurídico formal fundador da família, ora como a relação jurídica familiar decorrente não somente do ato jurídico formal de fundação da família. Com efeito, pode-se empregar a expressão casamento para designar o ato matrimonial: ‘O casamento de Tício ocorreu no dia tal’; e para designar as relações familiares: ‘O casamento de Tício é muito bem sucedido’. Não há dúvida quanto à admissão, pelo constituinte, ao lado da entidade familiar constituída pelo casamento, das entidades familiares formadas pela união estável (art. 226, § 3º ) e pela comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes (art. 226, § 4º). Tais entidades demonstram a mudança da ótica valorativa constitucional e impedem que se pretenda dar tratamento desigual a qualquer das entidades ali previstas. Vale dizer: toda e qualquer norma que se dirija à tutela das relações familiares deve ter como suporte fático (fattispecie) os tipos de comunidades familiares identificados pela Constituição, no âmbito dos quais a família fundada no casamento é apenas um deles. A comunidade, por sua vez, não é protegida como instituição valorada em si mesma, senão como instrumento de realização da pessoa humana.
Completamente diversa é a tutela do casamento como ato jurídico solene, protegido prioritariamente pelo ordenamento porque (só ele) capaz de trazer absoluta segurança para as relações patrimoniais e não patrimoniais que inaugura, com a constituição da família, seja quanto aos filhos, como no que concerne aos cônjuges e às relações com terceiros que com estes venham a contratar. Daí porque ter assegurado o constituinte a gratuidade da celebração do casamento civil (art. 226, § 1º), além dos efeitos civis do casamento religioso (art. 226, § 2º), de larga tradição nos costumes pátrios. Daí igualmente porquê da determinação ao legislador ordinário no sentido de facilitar a conversão em casamento das uniões estáveis (art. 226, § 3º). Ou seja, quis o constituinte que o legislador ordinário facilitasse a transformação (do título de fundação) formal das entidades familiares, certo de que, com o ato jurídico solene do casamento, seriam mais seguras as relações familiares.
Não pretendeu, com isso, o constituinte criar famílias de primeira e segunda classe, já que previu, pura e simplesmente, diversas modalidades de entidades familiares, em igualdade de situação. Pretendeu, ao contrário, no sentido de oferecer proteção igual a todas as comunidades familiares, que fosse facilitada a transformação do título das uniões estáveis, de modo a que a estas pudesse ser estendido o regime jurídico peculiar às relações formais. [7][8]
Ora, se não há qualquer hierarquia entre as entidades familiares constitucionalmente reconhecidas, o artigo 1.790 do Código Civil mostra-se, desde logo, inconstitucional por violação do princípio da isonomia (artigo 5º, caput, da CRFB [9]), entendido este sob seu aspecto material e não apenas formal.
De acordo com o princípio da igualdade, verifica-se que o modo pelo qual o legislador tratou a questão relativa à sucessão dos companheiros no atual Código Civil, de forma diversa da prevista para as pessoas que estão ligadas pelo laço matrimonial, não encontra critério algum de razoabilidade que justifique esta diferenciação, razão porque referida norma é inválida. Em verdade, configura mais uma arbitrariedade do legislador e uma expressão de todo o seu preconceito em relação às uniões estáveis.
A desigualdade de tratamento só é autorizada pela Constituição quando configurar exigência do próprio conceito de justiça [10], isto é, quando visar atender finalidades que se coadunam com o próprio ordenamento [11].
No caso de que ora cuidamos, a Constituição destina igual proteção a todas as entidades familiares por ela reconhecidas. Não há no texto constitucional qualquer elemento discriminatório dessas entidades pelo artigo 226, o que nos leva a concluir que a diferenciação existente no tratamento infraconstitucional não se coaduna com os fins constitucionalmente estabelecidos.
A proteção de que trata o já aludido artigo 226 da CRFB não deve ser entendida meramente sob aspecto formal, sendo possível que nela se insiram as regras de direito sucessório, afinal, a sucessão é tutelável pelo Estado porque objetiva resguardar o núcleo familiar com a "valorização da aquisição, conservação e aprimoramento da propriedade, do aumento patrimonial, do crescimento da poupança individual e familiar" [12].
Tanto a família constituída pelo casamento como aquela formada pela união estável atendem ao desejo social de constituição de um núcleo de pessoas com vínculo afetivo entre si e de caráter duradouro que componham as bases do Estado e da própria sociedade. Sendo assim, cônjuge e companheiro supérstites encontram-se na mesma situação: ambos constituíram família e atenderam aos desígnios legislativos e sociais, sendo, portanto, vedado ao Direito estabelecer tratamentos diferenciados aos membros de cada uma dessas entidades sob pena de violação do princípio da igualdade material.
Mas há ainda um segundo motivo para se julgar inconstitucional o artigo 1.790 do Código Civil, qual seja, a afronta ao princípio da vedação do retrocesso. Tal princípio não é reconhecido por toda a doutrina e sua interpretação data de pouco tempo em nosso país [13]. Para aqueles que admitem sua existência, cuida-se de princípio constitucional implícito, salvo para Ana Paula de Barcellos, que entende ser a vedação do retrocesso uma modalidade de eficácia das normas jurídicas [14].
O professor José Vicente dos Santos Mendonça relata três possíveis acepções para a vedação do retrocesso [15]: para a primeira delas, denomina-se retrocesso a toda norma que contrarie a opinião pessoal de seu emissor, sendo que esta acepção deve ser, desde logo, desconsiderada, tendo em vista a sua falta de lastro jurídico. Uma segunda acepção, chamada por ele de vedação genérica do retrocesso, implica a impossibilidade da simples revogação de norma infraconstitucional que regulamenta ou completa norma constitucional, sem a substituição por outra norma. Por fim, um terceiro significado, denominado vedação específica dos direitos fundamentais, veda que direitos sociais fundamentais, regulamentados por legislação infraconstitucional, venham a sem minorados por lei posterior, atingindo o núcleo da garantia. Esse último sentido é o que interessa ao presente trabalho.
Vedação do retrocesso, neste último sentido, significa impedir que uma norma legal regulamentadora de uma norma constitucional de eficácia limitada programática e atributiva de direito a terceiro seja revogada por outra norma legal sem política substitutiva, ou seja, ela não pode ser revogada sem que a norma revogadora tenha direito de igual ou maior hierarquia [16].
A família, sob a ótica do Direito Constitucional, é, por sua natureza, um direito social fundamental constitucionalmente assegurado, seja sob um aspecto de direito subjetivo, traduzido no direito de constituição de uma família, seja sob um ponto de vista de garantia, mediante a sua proteção enquanto instituição [17]. Além disso, trata-se, consoante a classificação das normas jurídicas segundo sua eficácia de José Afonso da Silva [18], de norma constitucional de eficácia limitada programática [19].
Ora, uma vez reconhecida a entidade familiar como direito social e norma programática, revela-se plenamente possível a aplicação do princípio da vedação do retrocesso em seu campo, no sentido acima explanado.
Conforme abordado nos capítulos anteriores, o tratamento legislativo conferido à sucessão dos companheiros pelo Código Civil de 2002, em seu artigo 1.790, manifesta-se, à evidência, de menor grau que aquele existente na legislação anterior. Pela vedação do retrocesso esse novo tratamento legal é inquinado de inconstitucionalidade, uma vez que não poderia legislação infraconstitucional posterior reduzir direito assegurado por outra norma, essa, anterior, que regulamenta dispositivo constitucional.
Em outros termos, significa dizer que, havendo regulamentação por lei de uma norma constitucional de eficácia limitada programática, definidora de direito fundamental, essa, de certa forma, adere à Constituição, sendo vedado à legislação posterior suprimir ou reduzir direitos antes garantidos atingindo seu núcleo.
Um dos fundamentos da aplicação do princípio da vedação do retrocesso reside na garantia de eficácia jurídica e social da norma, ou, conforme preceitua Luís Roberto Barroso, de eficácia e efetividade da regra.
Efetividade, para o professor Luis Roberto Barroso, revela-se pela concretização dos preceitos jurídicos, mediante a maior aproximação possível entre o "dever-ser" normativo e o "ser" da realidade social [20]. Hans Kelsen, na obra "Teoria Pura do Direito", abordou a temática referente à eficácia social, retratando-a como "o fato real de ela ser efetivamente aplicada e observada, da circunstância de uma conduta humana conforme à norma se verificar na ordem dos fatos" [21].
Em regra, a efetividade deriva do cumprimento espontâneo da norma jurídica, decorrente de sua adequação ao sentimento social existente, a sua consonância com as tendências sociais. Quando estes dois fatores deixam de ocorrer, a norma torna-se inefetiva e cai em desuso.
No campo do direito sucessório não há como falar na inaplicação das suas normas por inefetividade, tendo em vista que se tratam todas de normas de direito público, normas essas cogentes; portanto, de aplicabilidade obrigatória enquanto estiverem em vigência. Contudo, a efetividade da regra do artigo 1.790 do Código Civil irá sempre se valer dos mecanismos de coerção do aparelho estatal [22].
Num momento em que o Direito, em especial o Direito de Família – que reflete, conseqüentemente, no Direito das Sucessões –, avança em direção ao reconhecimento mais amplo de situações meramente fáticas, como, por exemplo, o destaque do vínculo familiar sócio-afetivo e a repersonalização do Direito de Família, o artigo 1.790 do Código Civil representa uma retrocessão neste cenário, dissociando o Direito da realidade que ele regula. Sem alterações, nem mesmo mediante a adoção do entendimento ora proposto, é inevitável o prejuízo a eficácia da norma e a sua efetividade.
A ilustre Ana Paula de Barcellos bem ilustra a questão, afirmando que:
(...) não há direito sem realidade. É ela que o direito pretende transformar e é dela que ele extrai as novas necessidades e demandas a serem reguladas; é a realidade que confronta o intérprete com os problemas mais intrincados e o impulsiona ao trabalho; é da realidade que o direito não pode se afastar além de um determinado limite, sob pena de perder o contato e caminhar sozinho e sem sentido, incapaz de aproximá-la de si (23).
Outrossim, é de extrema importância ressaltar que a posição por nós adotada vai ao encontro do Estado Social de Direito, assim como à eficácia dos direitos fundamentais e seu dever de proteção.
Nos dizeres de José Vicente dos Santos Mendonça:
Quanto ao princípio do Estado Social, que, nas palavras de Hesse, ‘obriga e legitima o legislador e o poder executivo para o exercício de tarefas estatal-sociais’, a vinculação é direta: o resguardo de determinados níveis de realização dos direitos sociais é-lhe inequívoco corolário. Quanto à proteção da confiança na seara do Estado de Direito, definida por CANOTILHO (junto ao princípio da segurança jurídica) como a possibilidade de o cidadão confiar em seus atos ou as decisões públicas incidentes sobre seus direitos, posições jurídicas e relações se ligam a efeitos jurídicos duradouros, previstos ou calculados com base nessas mesmas normas, a ligação também não tarda: o regime dos direitos sociais não se poderia retroceder livre e plenamente sem importar quebra de confiança. Já os direitos a prestação possuem uma dimensão eficacial negativa, vale dizer, exigem do Estado uma postura que lhes não afronte: daí talvez se retirasse uma vedação relativa do retrocesso dos direitos sociais. Do mesmo modo, quando se apontou que uma das conseqüências da dimensão objetiva dos direitos fundamentais é um dever de proteção do Estado contra ameaças dos poderes públicos, de particulares ou de outros Estados, essa ameaça (estatal) poderia vir sob a forma do retrocesso. Diga-se, no entanto, que o ponto sobre a fundamentação ainda se não consolidou. Esses são apenas alguns de seus possíveis delineamentos. (24)
Vale lembrar que todos os valores acima referidos encontram-se expressamente no texto constitucional brasileiro, razão pela qual não há como negar a inconstitucionalidade do supra citado artigo 1.790, seja pela violação da isonomia, seja pela violação da vedação do retrocesso e da dignidade humana.
Todavia, há uma parcela da doutrina [25] que nega a possibilidade aqui aventada da existência da vedação específica do retrocesso. Segundo os autores que defendem esse entendimento, admitir um princípio da vedação do retrocesso nos termos expostos seria negar autonomia à vontade do legislador, violando a liberdade de conformação legislativa [26], ou seja, a liberdade de escolha do momento e do conteúdo para produção de norma legislativa [27].
É possível inclusive enquadrar a ilustre Ana Paula de Barcellos nesse posicionamento. Em sua obra, a autora é enfática ao afirmar que a vedação do retrocesso é "modalidade de eficácia" atribuível somente às hipóteses em que há revogação "pura e simples" da norma. Para ela, a substituição de uma legislação infraconstitucional por outra se insere no poder que o legislador detém de adequar o fim constitucional pretendido ao meio que considera mais apropriado [28].
Da mesma forma, parece entender Luis Roberto Barroso, ao afirmar que:
Por este princípio, que não é expresso mas decorre do sistema jurídico-constitucional, entende-se que se uma lei, ao regulamentar um mandamento constitucional, instituir determinado direito, ele se incorpora ao patrimônio jurídico da cidadania e não pode ser arbitrariamente suprimido.
Nessa ordem de idéias, uma lei posterior não pode extinguir um direito ou uma garantia, especialmente os de cunho social, sob pena de promover um retrocesso, abolindo um direito fundamental na Constituição. O que se veda é o ataque à efetividade da norma, que foi alcançada a partir da sua regulamentação. Assim, por exemplo, se o legislador infraconstitucional deu concretude a uma norma programática ou tornou viável o exercício de um direito que dependa de sua intermediação, não poderá simplesmente revogar ato legislativo, fazendo a situação voltar ao estado de omissão legislativa anterior. [29]
No âmbito jurisprudencial, o Egrégio Superior Tribunal Federal não teve ainda a oportunidade de analisar a constitucionalidade do artigo 1.790 do atual Código Civil. Não obstante, esta Corte, em voto do ilustrado Ministro Sepúlveda Pertence na ADIN 2.065-0/DF, analisou questão relativa ao princípio da vedação do retrocesso, entendido este em sua acepção genérica.
Em seu voto, afirmava o Ministro que:
Pouco importa. Certo, quando, já vigente à Constituição, se editou lei integrativa necessária à plenitude de eficácia, pode subseqüentemente o legislador, no âmbito de sua liberdade de conformação, ditar outra disciplina legal igualmente integrativa do preceito constitucional programático ou de eficácia limitada; mas não pode retroceder – sem violar a Constituição – ao momento anterior de paralisia de sua efetividade pela ausência da complementação legislativa ordinária reclamada para implementação efetiva de uma norma constitucional.
Vale enfatizar a esclarecer o ponto.
Ao contrário do que supõem as informações governamentais, com o admitir, em tese, a inconstitucionalidade da regra legal que a revogue, não se pretende emprestar hierarquia constitucional à primeira lei integradora do preceito da Constituição, de eficácia limitada. Pode, é óbvio, o legislador ordinário substituí-la por outra, de igual função complementadora de Lei Fundamental; o que não pode é substituir a regulação integradora precedente – pré ou pós-constitucional – pelo retorno ao vazio normativo que faria retroceder a regra incompleta da Constituição à sua quase impotência originária.
Em que pese o brilhantismo do voto, na ADIN em questão, o Ministro Sepúlveda Pertence, relator originário, foi voto vencido, tendo o Pleno do Supremo Tribunal Federal entendido, majoritariamente, que o caso em questão não ensejava o controle de constitucionalidade pela via direta por se estar diante de inconstitucionalidade indireta.
Contudo, este voto é um bom paradigma de uma futura posição da Corte Constitucional quanto à vedação do retrocesso, que no voto acima exposto entendeu pela existência do princípio da vedação do retrocesso tão-somente no que tange à vedação genérica, negando, assim, a possibilidade de aplicação da vedação específica ao ordenamento jurídico brasileiro.