Parentesco socioafetivo nas famílias reconstituídas e os reflexos jurídicos com o reconhecimento da multiparentalidade

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11/10/2017 às 12:47
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Busca-se analisar a família formada pela afetividade, com foco na multiparentalidade e seus efeitos, considerando alguns artigos científicos, doutrinas e jurisprudência acerca do tema.

INTRODUÇÃO

O laço afetivo criado pelo cotidiano, relacionamento de carinho, companheirismo, dedicação, doação entre pais e filhos se torna fortalecido na sociedade.  As transformações sociais modificam a forma de agir e de pensar das pessoas, quando se trata de família, um agrupamento cultural, que ao longo do tempo vem incorporando novos valores e formas de aglutinação, remodelando assim sua estrutura.

Diante da realidade social, o rompimento do laço familiar tradicional de pai, mãe e filhos oriundos do casamento, ganhou grande força com a lei de divórcio de 1977 que facilitou o grande número das dissoluções matrimoniais, com isso, surge a figura necessária de uma nova conjuntura familiar, com novas pessoas. Essa situação foi se repercutindo até chegarmos na família recomposta, que é aquela formada por pai, mãe e filhos de outrem, que agora se torna nossos.

Diante disso, as normas que regulam nosso ordenamento jurídico não podem ficar imutáveis no tempo, se exige uma releitura da nossa codificação civil em todos os aspectos. 

A Constituição Federal de 1988 levou em consideração que o conceito de família tornou-se plural, respaldando não somente aquela surgida do matrimônio tradicional, entre homem e mulher, mas também a decorrente da união estável, conforme artigo 226, § 3º, e a monoparental, com fundamento no artigo 226, § 4º.

O foco ao abordar esse trabalho, é o afeto no centro da formação familiar na qual abrange uma relação de carinho que se tem com alguém e os efeitos e reflexos da multiparentalidade, novo instituto que surge no decorrer da constituição dessas famílias.  Analisar as obrigações e deveres estabelecidos entre pais afins e pais biológicos e o reconhecimento da filiação em dúplice, inclusive no direito registral. Embasados nas doutrinas, artigos científicos e jurisprudências acerca do tema.


1. VÍNCULOS POR PARENTESCO E FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA

Família é o núcleo de um corpo social orientada pela necessidade do ser humano em estabelecer relações afetivas. Por muito tempo se manteve ligado a um contexto histórico conservador, onde o casamento era o meio juridicamente reconhecido de se constituir família e considerado como indissolúvel, simbolizado através da união de um homem e uma mulher que geram filhos. Rotulado por um sistema patriarcal onde o pai era o provedor, o centro da organização familiar, o único responsável pelo sustento da família, já a mulher cabia o papel de educador os filhos e cuidar da casa. Esse ritmo se perpetuava ao longo das gerações, os filhos cresciam enraizados nessa cultura e saíam de casa, para casar-se e começar a mesma história, formando um padrão familiar socialmente aceito.

Durante décadas a legislação brasileira tentou preservar arduamente a instituição da família tradicional e os laços sanguíneos entre os parentes. Uma vez que, só considerava-se filho, possuidor de direitos, aquele advindo dentro de uma união conjugal, denominado de filho legítimo. Logo, aquele que não vinha nesse cenário era considerado ilegítimo, não detendo os mesmos direitos. Ainda, vedava ou criava impedimentos para o rompimento do matrimônio e adoção, ignorando a importância do afeto.

Porém, o modelo tradicional de família como na época de nossos pais, foi perdendo sua referência. As constantes mudanças sociais ao longo das décadas provocaram modificações radicais que hoje pouco se acompanha um modelo padrão, a sociedade foi se reinventando, formando uma nova cultura social e jurídica, baseada na forma de convívio e afeto, menos concentrada em tabus e preconceito.

Hoje a realidade é diferente, a mulher veio galgando pouco a pouco o seu espaço no mercado de trabalho e no meio social, hoje ela também é provedora do lar, já não é submissa ao casamento como em outra época e em conjunto com o surgimento da Lei do Divórcio de 1977, o casamento deixou de ser algo inseparável, que foi um fator preponderante para tamanha incidência dos divórcios. Com isso, mães e pais solteiros é cada vez mais comum, casais homossexuais começaram ter o direito a adoção, entre várias outras mudanças, que provocaram formações de familiares oriundas da afetividade.

Por se tornar impossível a inobservância de tamanhas mudanças naturais, surge a necessidade de releitura dos conceitos e institutos jurídicos. Logo, a Constituição Federal de 1988, levou em consideração de uma forma expressa, outras maneiras de se considerar uma entidade familiar, estruturas de parentescos, que consiste na união de pessoas em virtude do viver comum, seja por vinculo biológico aquela que decorre da genética, não havendo qualquer dificuldade na sua conceituação, adoção, casamento, afinidade ou a qualquer relação afetiva fundada na posse do estado de filho.  No que se refere à família, Leite (1997) entende que a Carta Magna brasileira reconheceu uma evolução que já estava latente na sociedade brasileira, constitucionalizando valores que já estavam presentes no meio social, mas que estavam represados na doutrina e na jurisprudência pátria.

Após esse avanço do Direito, o instituto da família foi integralmente reformulado. A Lei Maior, trouxe em seu artigo 226 e parágrafos, o reconhecimento de alguns modelos de entidade familiar, podendo ser por meio do casamento religioso, união estável, família monoparental, aquela formada por apenas por um dos genitores e este lhe cabe o sustento, educação e criação de seus descendentes.

Considerando também de uma forma implícitas, a família anaparental, formada sem pais e a família socioafetiva, enlace criado pelo feto. Constitucionalizando assim o Direito de Família.  Ainda determina que não pode existir tratamento diferenciado entre os filhos, com base aos princípios da dignidade da pessoa humana, solidariedade e igualdade de condições entre os filhos. O Código Civil dispõe em seu artigo Art. 1.596. Os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.

Ao reconhecer as novas estruturas familiares, abre um leque para inúmeros modelos, com base principalmente na tutela jurídica do afeto, não tendo mais o casamento como meio principal de se constituir família, com a dissolução do matrimônio as pessoas passaram a ter a liberdade de se relacionar novamente e formar nova família, levando toda a bagagem de uniões anteriores inclusive os filhos.

É necessário ter uma visão pluralista da família, abrigando os mais diversos arranjos familiares, devendo buscar o elemento que permite enlaçar no conceito de entidade familiar todos os relacionamentos que têm origem em um elo de afetividade independentemente de sua conformação. (DIAS, 2013, p.42).

Não obstante, é possível presumir que o afeto com relação de carinho e cuidado na convivência, está sendo o centro da formação familiar.  Uma relação fundamentada no elemento primordial que é o amor, os pais tratam a criança originária de outra relação como se filho fosse.  De fato essa relação afetiva, deu contornos para a teoria da parentalidade sócioafetiva, tendo em vista, que ela não depende da exclusiva relação biológica ou laços civis.

O parentesco socioafetivo recolhe, de um lado, a dimensão social do fenômeno familiar, no que tange sua exteriorização perante o meio em que a comunidade familiar se insere e, de outro, a dimensão afetiva, que se reflete na convivência centrada na solidariedade entre os sujeitos que integram a relação. (FACHIN, 2012, on line).

Por afeto, temos como presunção um elemento concentrado nas demonstrações de amor que um ser humano apresenta a quem ama, com sentimentos de ternura, carinho e simpatia que alicerça o vínculo familiar. Atualmente as relações afetivas tendem balizar os projetos familiares e, nesse sentido, conduzem à assunção da responsabilidade pela constituição das famílias. “Afetividade assumiu paulatinamente importância crescente nas questões familiares, eis que mesmo na família tradicional acabou por ser considerada digna de atenção e exercício efetivo’’ (CALDERON, 2013. p. 204). Nessa perspectiva o afeto se tornou um princípio jurídico fundamental.

O princípio da afetividade possui uma dupla face cuja compreensão auxilia na exata percepção do seu sentido. A primeira delas é a face de dever jurídico, voltada para as pessoas que possuam algum vínculo de parentalidade ou de conjugalidade. Essa face do princípio vincula tais pessoas a condutas recíprocas representativas da afetividade inerente a tal relação. A segunda faceta do princípio é a face geradora de vínculo familiar, voltada para as pessoas que ainda não possuam um vínculo reconhecido pelo sistema, pela qual a incidência do princípio da afetividade consubstancia um vínculo familiar entre os envolvidos. Esta particularidade abarca a noção da posse de estado. Ou seja, a presença de um dado conjunto fático faz incidir o princípio da afetividade de modo a configurar, a partir de então, um vínculo familiar. (CALDERON, 2011, on line)

Ter a afetividade como princípio é fundamento do respeito à dignidade humana, que norteia as relações familiares e a solidariedade familiar. São identificados na Constituição quatro pontos essenciais do Princípio da Afetividade: a) a igualdade de todos os filhos independente da origem; b) a adoção, como escolha afetiva com igualdade de direito; c) a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, incluindo os adotivos, com a mesma dignidade da família; d) o direito à convivência familiar como prioridade absoluta da criança e do adolescente.

Diante de tais fundamentos que tutelam o afeto, a parental idade sócio afetiva gera um espaço para a concretização da filiação socioafetiva que se descreve pela própria vontade de amar, de exercer uma condição paternal ou maternal. Na qual cumpri a mesma condição do estado de filho biológico. Esse tipo de filiação se funda na proteção da personalidade humana, protegendo a formação da identidade e personalidade da criança, tem se a necessidade de criar e manter uma estabilidade familiar fazendo com que se atribua papel secundário a verdade biológica.

O Código Civil em seu o art. 1593, de forma implícita traz uma brecha para o reconhecimento da filiação socioafetiva, nas palavras de Maluf e Maluf (2016, p. 4) “ao utilizar a expressão ‘outra origem’, abre-se espaço para o reconhecimento da parentalidade socioafetiva, em que, embora não haja laços de sangue, está presente a afetividade, tão ou mais reconhecida e valorizada atualmente do que o vínculo consanguíneo’’.

Tendo em vista que o parentesco pode ocorrer de ordem natural ou civil e nem sempre a filiação é reconhecida civilmente, a posse do estado de filho que caracteriza no mundo jurídico a filiação socioafetiva. Já temos casos concretos decorrentes do reconhecimento afetivo adotados por nossa jurisprudência como é o caso da Apelação Cível AC nº 70040743338 do  Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.

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APELAÇÃO CÍVEL. NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. PREVALÊNCIA DA RELAÇÃO SOCIOAFETIVA DEMONSTRADA. DESCONSTITUIÇÃO REGISTRO CIVIL. IMPROCEDÊNCIA. Demonstrada a existência de vínculos socioafetivos entre as partes, improcede à desconstituição do registro civil. Não obstante a inexistência do liame biológico, há o vínculo socioafetivo, demonstrado pela relação de afeto existente, sendo este o aspecto determinante para o reconhecimento do estado de filiação.

A posse do estado de filho é evidenciada através do dia-a-dia construído a base de carinho pela forma com que trata-se o filho, os cuidados, como assistência financeira, psicológica, moral e afetiva, incluindo também a forma como torna público a condição dessa filiação perante a sociedade para que se creia de fato que ela existe. Levando em consideração o sobrenome desse pai dado ao filho, toda via, alguns doutrinadores acreditam que esse elemento, pode ser descartado por não possui grande valor na configuração da posse de estado de filho, podendo ser configurada sem a utilização de registro. Portanto, para a caracterização do estado de posse de filho é necessário a manifestação desses três elementos para ser configurado, trato, fama e nome se possível. Fachin (2012, on line) entende nesse sentido que:

O instituto de que se está a tratar, para a sua caracterização exige que estejam presentes no caso concreto certas qualidades, que ofereçam segurança na afirmação da posse de estado. Há que existir notoriedade do estado de filho, ou seja, a posse de estado deve ser objetivamente visível no ambiente social. Outra qualidade necessária é a continuidade, ou seja, deve apresentar-se uma certa duração que revele estabilidade. Por derradeiro, esses fatos notórios e contínuos não devem gerar equívocos acerca da filiação.

Levado em consideração que a filiação socioafetiva não se comprova por meio de exame, ela se torna um pouco mais complexa e criteriosa para ser comprovada. Por isso, faz-se necessário, comprovar a existência não só dos elementos constitutivos da posse de estado de filho, mas há que se provar também a presença da vontade indubitável das partes de serem pai e filho, e o afeto predominante.

O reconhecimento desses requisitos ocorreu na V Jornada de Direito Civil, realizada no CJF em 2011: Enunciado 520: Art. 1.601. O conhecimento da ausência de vínculo biológico e a posse de estado de filho obstam a contestação da paternidade presumida e Enunciado 519: Art. 1.593. O reconhecimento judicial do vínculo de parentesco em virtude de socioafetividade deve ocorrer a partir da relação entre pai(s) e filho(s), com base na posse do estado de filho, para que produza efeitos pessoais e patrimoniais. (SILVA, 2016, on line ).

Nesse sentido Viana (2014, p. 193) afirma que:

A posse de estado de filho é, de fato, requisito essencial para configuração da paternidade socioafetiva, contudo não é o único. Imperioso se faz avaliar criteriosamente se existe o elemento determinante para estabelecimento, qual seja: vontade. Assim, presentes os requisitos já trabalhados – fama, tratamento e nome – e a vontade de serem pai e filho, com base no reconhecimento recíproco e exercício da função paterna estar-se-á diante de uma verdadeira relação paterno-filial.

Enfim, a filiação socioafetiva abraça todos os direitos e deveres originários com seu reconhecimento, Isto é, partindo da ideia que a relação paternal reflete na construção da personalidade e a identidade do filho, depois de todo um convívio, uma vida formada nesse seio familiar, em prol da proteção ao bem estar dele e da segurança jurídica, a doutrina e jurisprudência aos poucos vem entendendo a impossibilidade da desconstituição da paternidade fundada na socioafetividade. Assim trata o acórdão, proferido pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) por ocasião no julgamento do recurso especial nº 1059214-RS, 2008/0111832-2, in verbis:

Ementa: DIREITO DE FAMÍLIA. AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. EXAME DE DNA NEGATIVO. RECONHECIMENTO DE PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO. 1. Em conformidade com os princípios do Código Civil de 2002 e da Constituição Federal de 1988, o êxito em ação negatória de paternidade depende da demonstração, a um só tempo, da inexistência de origem biológica e também de que não tenha sido constituído o estado de filiação, fortemente marcado pelas relações socioafetivas e edificado na convivência familiar. Vale dizer que a pretensão voltada à impugnação da paternidade não pode prosperar, quando fundada apenas na origem genética, mas em aberto conflito com a paternidade socioafetiva. 2. No caso, as instâncias ordinárias reconheceram a paternidade socioafetiva (ou a posse do estado de filiação), desde sempre existente entre o autor e as requeridas. Assim, se a declaração realizada pelo autor por ocasião do registro foi uma inverdade no que concerne à origem genética, certamente não o foi no que toca ao desígnio de estabelecer com as então infantes vínculos afetivos próprios do estado de filho, verdade em si bastante à manutenção do registro de nascimento e ao afastamento da alegação de falsidade ou erro. 3. Recurso especial não provido.

Isso exposto, conclui-se que o vínculo afetivo é irretratável e irrenunciável, isto é aquele que reconheceu como se filho fosse não pode romper a qualquer tempo esse vínculo depois de estabelecida a socioafetividade. Porém, pode ocorrer demanda específica para a desconstituição da paternidade socioafetiva, somente em casos específicos que ainda não tenha concretizados os requisitos de existência da referida paternidade, já mencionados. Desta feita, através da garantia do acesso à justiça, do subjetivismo do Direito e do Processo Civil como meio adequado para o procedimento judiciário ao caso concreto, realizando uma das funções do Estado que é a função jurisdicional dirigida, organizada e efetivada pelo poder judiciário através do Juiz. O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul já proferiu decisão a cerca da matéria

APELAÇÃO. NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. ANULAÇÃO DE RECONHECIMENTO DE FILHO. VÍCIO DE VONTADE NÃO COMPROVADO. IRREVOGABILIDADE. PATERNIDADE SOCIOAFETIVA CONFIGURADA. 1. O reconhecimento voluntário de paternidade é irrevogável e irretratável, e não cede diante da inexistência de vínculo biológico, pois a revelação da origem genética, por si só, não basta para desconstituir o vínculo voluntariamente assumido. 2. A relação jurídica de filiação se construiu também a partir de laços afetivos e de solidariedade entre pessoas geneticamente estranhas que estabelecem vínculos que em tudo se equiparam àqueles existentes entre pais e filhos ligados por laços de sangue. Inteligência do art. 1.593 do Código Civil. Precedentes. Negaram provimento.

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Sobre a autora
marissol galvao godoy

Acadêmica do Curso de Direito da Faculdade Católica do Tocantins (FACTO). E-mail: [email protected]

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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