O País assiste, estarrecido, à polêmica discussão, acerca de disposições que não teriam sido discutidas durante a Constituinte e que também não teriam sido aprovadas no projeto de redação final, dentre as quais se assinala a referente às medidas provisórias.
Esse debate temporão põe em xeque a própria honorabilidade da Assembléia Constituinte e do Legislativo e não encontra nenhum amparo ou propósito, quinze anos após a promulgação da Lei mais importante da República. Rememore-se, outrossim, que não se descobriu até o momento artigo melhor que o Legislativo e substituto mais adequado para este foro da liberdade.
As medidas provisórias foram concebidas como substituto do famigerado decreto-lei, com o objetivo de apagar, definitivamente, os resquícios do entulho autoritário. Os constituintes foram buscar esse instituto na doutrina e no direito positivo italiano; contudo também a Constituição do Império tinha-as como necessárias, em circunstâncias anômalas, e o direito comparado ilustra ricamente sua existência em diversos países democráticos, parlamentaristas ou presidencialistas, autorizando sua utilização, com o nome de decretos de emergência, decretos legislativos ou com nomenclatura semelhante, em situações emergenciais, com maior ou menor elasticidade, na sua abrangência.
É um mal necessário. Não obstante, constitui um instrumental sumamente democrático, porque passível de emenda, destaque ou transformação em projeto de lei de conversão e até de rejeição, por parte dos legisladores, com amplo e irrestrito debate acerca da matéria, o que não ocorria com o decreto-lei.
Vale dizer: o caminho é duplo e não de uma só mão. Há uma harmônica simbiose entre os Poderes Legislativo e Executivo. Dir-se-á um casamento de conveniência.
E, ainda, tem o Congresso Nacional a prerrogativa maior de, liminarmente, barrar-lhes a existência, se não se caracterizarem as hipóteses de urgência e relevância, devendo ainda a Comissão Mista pronunciar-se sobre a adequação orçamentária e financeira, quando for o caso. É um poder de que não pode e não deve abrir mão, sob qualquer pretexto.
Adotadas as medidas provisórias, pelo Presidente da República, entrarão em vigor, imediatamente, pelo prazo de 60 dias, prorrogável por mais 60 dias.
Fica vedada a reedição, na mesma sessão legislativa, de medidas provisórias que tenham sido rejeitadas ou que tenham perdido sua eficácia por decurso de prazo.
Após a EC nº 32, de 11 de setembro de 2001, somente as matérias não proibidas, por ela, poderão ser objeto de medidas provisórias. Sua relação é exaustiva. O decreto legislativo deverá regular os efeitos jurídicos decorrentes das medidas provisórias rejeitadas ou não apreciadas pelo Parlamento, sob pena de ficarem mantidas as relações jurídicas constituídas durante a sua vigência, se o Congresso Nacional não as regulamentar, em homenagem à segurança jurídica do súdito.
Mais que de repente, entretanto, logo após o 15º aniversário da Carta Maior, sem muita ou nenhuma comemoração, surgem vozes, aqui e ali, apontando a ilegitimidade das medidas provisórias, em virtude de seu nascimento espúrio, isto é, terem sido incrustadas, deslealmente, na calada da noite, na redação final da Constituição. Outras normas também são mencionadas como integrantes deste universo desprovido de validade.
José Afonso da Silva manifestou-se, com ênfase, neste sentido, discursando que "um gênio qualquer, de mau gosto, ignorante e abusado, introduziu-as aí, indevidamente, entre a aprovação do texto formal (portanto, depois do dia 22 de setembro de 1988) e a promulgação-publicação da Constituição no dia 5 de outubro de 1988" (Curso de Direito Constitucional Positivo, Editora Revista dos Tribunais, 6ª edição, p. 452). É uma opinião respeitadíssima, provinda de um dos mais eminentes constitucionalistas).
Não obstante, faz-se necessário conhecer a gênese das medidas provisórias e as discussões na Casa Legislativa, durante a Constituinte, e, então, outra será a conclusão.
A história da Constituinte traz diversos ensinamentos, como tive oportunidade de escrever em meus livros "Medidas Provisórias" (Ed. Rev. dos Tribs., 1991), e "Medidas Provisórias – Instrumento de Governabilidade" (Ed. NDJ, junho de 2003, pp. 57-61), com fonte em documentos oficiais, tais como: PRODASEN, Centro Gráfico do Senado Federal, setembro de 1988, e Projeto de Constituição (D) – Redação final, aprovada pela Comissão de Redação, em reuniões dos dias 19 e 20 de setembro de 1988. Pode-se não gostar da história, mas não se pode ignorá-la.
A aceitação das medidas provisórias foi consciente e não por mero descuido ou acaso. Ensaiou-se, timidamente, reimplantar o decreto-lei, que, afinal, cedeu seu lugar de honra àquele instrumental jurídico. Atestam-no os trabalhos da Constituinte.
Esta foi, realmente, a concepção que norteou a Constituinte, que teve como Relator-Geral o então Senador Bernardo Cabral. Lembre-se o parecer da Comissão, contrária à supressão do art. 64 e seu parágrafo, que permitia ao Presidente da República dispor sobre medidas provisórias, porque, em caso de relevância e de urgência, constituem instrumentos importantíssimos para o moderno "well state".
Na Comissão de Sistematização (IX), a Emenda 4.284, apresentada em 2.7.87, posteriormente retirada, do Dep. Prisco Viana (artigos 96 e ss.), cometia ao Presidente da República, privativamente, editar decreto-lei, ad referendum do Congresso Nacional (o regime político previsto seria o parlamentarismo) e, na Seção VII, o processo normativo compreendia o poder de legislar deferido não só ao Congresso Nacional como também ao Presidente da República. A Emenda nº 292, do Deputado Expedito Machado atribuía ao Presidente da República, competência privativa para editar, mediante ato próprio, ouvido o Conselho de Ministros, em caso de urgência, medidas extraordinárias, em matéria econômica ou financeira, "ad referendum" do Congresso Nacional.
O debate foi bastante aceso. Na Comissão da Organização dos Poderes e Sistema do Governo (Comissão III), apresentou-se o substitutivo do relator, para estabelecer que o Executivo não poderia, sem delegação do Congresso, "editar decreto que tenha valor de lei", mas, em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderia, por solicitação, do Primeiro Ministro, adotar medidas provisórias, com força de lei, e submetê-las de imediato ao Congresso Nacional, para a conversão, o qual, estando em recesso, seria convocado extraordinariamente para se reunir no prazo de cinco dias.
Uma emenda modificativa, julgada prejudicada, apresentada à Comissão de Sistematização, pelo Deputado Ismael Wanderley, permitia que, em caso de relevância nacional e urgência e desde que plenamente justificadas, o Presidente da República, por solicitação do Primeiro Ministro, poderia adotar medidas provisórias com força de lei, sem qualquer alteração no que diz respeito ao processo.
O texto da Comissão de Sistematização (Comissão IX) é idêntico ao que passou para a Carta, adaptado ao Presidencialismo, mercê da emenda do Deputado Brandão Monteiro, com a redação proposta nos Projetos de Constituição "C e D" da Comissão de Redação.
Esta é também a opinião de Diogo Alves de Abreu Jr. Este autor registra que a medida provisória esteve presente em todos os relatórios constituintes até ser apreciada pelo plenário. Em seu depoimento, esse ilustre jornalista-autor pondera que os constituintes estavam conscientes de que algum instrumento deveria substituir os decretos-leis, o que foi demonstrado pelo Deputado Egídio Ferreira Lima, relator da Comissão da Organização de Poderes e Sistema de Governo.
Traz, ainda, à colação, pronunciamentos dos Deputados Michel Temer e Adylson Motta, contra a proposta, posta em votação no 1º turno, e a favor dela os Deputados Egídio Ferreira Lima e Nelson Jobim, demonstrando que o artigo 76 da proposta foi aprovado (edição de medidas provisórias) e o regime previsto, então, era o parlamentarismo.
Em sua monografia, apresenta o texto (artigo 62) aprovado no 2º turno e que passou para a Constituição com o mesmo número e redação (cf. Medidas Provisórias, Câmara dos Deputados, Centro de Documentação e Informação - Coordenação de Publicações, Brasília, 2002, pp. 27-30).
É verdade que elas tinham destino certo, isto é, foram imaginadas para o sistema parlamentarista de governo, tendo sido adaptadas para o presidencialismo, o que em nada desnatura sua natureza, visto que muitos países, com sistema de governo parlamentarista ou presidencialista, utilizam esse instrumento legislativo.
Leia-se ainda, como subsídio a este estudo, o "Quadro Comparativo" entre o texto aprovado no 1º turno, o texto renumerado e revisado e a redação para o 2º turno, organizado pelo Relator Bernardo Cabral, julho/88, public. Centro Gráfico do Senado Federal (cf. arts. 74, 75 e 64 que tratam respectivamente da adoção de Medidas Provisórias, pelo Presidente da República).
Portanto, não se há de dizer que este instituto não constava do Projeto em discussão no Congresso Constituinte, vez que foi objeto de amplo e acurado debate e, finalmente, aprovado como artigo 62 da Carta em vigor (outorga de poderes ao Presidente da República para expedir medidas provisórias).
O citado artigo 62 (amplamente debatido) faz parte da Subseção III (Das Leis), que por sua vez corresponde à Seção VIII, que trata do Processo Legislativo, referente ao Capítulo I, do Poder Legislativo, e tem como escudo protetor o Titulo IV – Da Organização dos Poderes. Destarte, sua presença, desde o início, é indiscutível.
A inclusão ou não das medidas provisórias, como participante do processo legislativo, previsto no artigo 59, é mero detalhe que não descaracteriza a vitalidade desse instituto que, como se viu, fez parte da discussão e aprovação nas comissões específicas e no plenário, e constou como artigo em sede adequada.
"Mutatis mutandi", o Constituinte Jarbas Passarinho utiliza argumento semelhante, com relação ao artigo 2°, que define os Poderes da União, o Executivo, o Legislativo, o Judiciário, independentes e harmônicos entre si, ou como escreve: "Se de fato houve a omissão de submeter a redação à votação, é evidente que um texto firmemente indicador de um regime democrático não colidiria com a separação dos poderes, fundamento do constitucionalismo moderno".
No que diz respeito às medidas provisórias, em especial, confirma terem os respectivos artigos sido objeto de emendas constitucionais votadas e aprovadas, o que nulificaria qualquer pretensa omissão (cf. artigo publicado no Correio Braziliense, de 14 de outubro de 2003, à página 17).
Nem outra é palavra autorizada do Deputado Federal Mauro Benavides, 1º vice-presidente da Assembléia Constituinte, ao comentar o episódio, acrescentando que uma nova assembléia dependeria de ruptura institucional, que ninguém em sã consciência pretende (cf. Polêmica extemporânea, in Jornal de Brasília, de 16 de outubro de 2003).
Some-se o ensinamento de Roma, que se aplica como uma luva, à hipótese estudada: incivile est, nisi tota lege perspecta, una aliqua partícula ejus proposita, judicare, vel, respondere: é contra o direito julgar ou emitir parecer, tendo diante dos olhos, ao invés da lei em conjunto, só uma parte da mesma (Celso, Digesto, Livro I, Título III, Fragmento 24).
Conseqüentemente, sua legitimidade é induvidosa. Não se trata, assim, de filha espúria da Constituinte, mas de irmã gêmea das demais regras constitucionais. Sua certidão de nascimento está, por conseguinte, plenamente reconhecida e inconteste.
De qualquer forma, não se põe em dúvida a promulgação da Constituição que aconteceu, efetivamente, o que lhe dá plena legitimidade. Qualquer desvio da Constituição poderá trazer conseqüências indesejáveis.