Síntese do artigo "O que são as Luzes" de Michel Foucault

18/10/2017 às 15:06
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Escritor contemporâneo', Michel Foucault analisaria, pouco antes de sua morte, um clássico de Immanuel Kant (1724-1804) "O que é esclarecimento [Aufklärung]. Este trabalho é uma síntese desta análise.

Paul Michel Foucault nasceu em Poitiers (França) em 15 de outubro de 1926. O pai era médico e docente e a mãe administrava as finanças da família[i]. A condição profissional e financeira dos familiares rendia conforto e posses. Na escola, Foucault era frágil e míope, condição que o levou a ser chamado por colegas de Polchinelle. Brilhante em seus estudos,  Foucault atravessou este período de sua vida sem destaque. Adotou história como sua disciplina preferida[ii].

Aos 20 anos de idade, em sua segunda tentativa, Foucault consegue adentrar na École Normale Supérieure, em Paris, escola renomada e frequentada pela elite francesa. Tornar-se-ia um ‘normaliens’ – uma espécie de superintelectual. Nesta fase também difícil, recusou-se a seguir a carreira de médico e descobriu sua homossexualidade, embora sem demonstrá-la pois seria algo impensável naquela escola, naquele país e naquele momento[iii]. Neste tempo também, abandonou o Paul de seu nome e passou a se auto tratar somente como Michel Foucault.

Nos primeiros anos da École, Foucault feriu o seu próprio peito com uma navalha, perseguiu um estudante com um punhal e tentou suicídio ingerindo comprimidos. Também bebia e experimentava drogas. Passou a ser ignorado em seu próprio dormitório, pois era tido pelos demais alunos como louco e perigoso[iv]. Por gostar de história, aproximou-se da filosofia de Hegel e deste, progrediu para Heidegger pois encontrou neste autor um porto seguro. Heidegger “via a situação do homem como determinada por elementos mais profundos que a mera razão”[v].

Em 1951, faz o exame final e é aprovado. Passa a lecionar na École e se especializa em filosofia e psicologia, grau que o possibilitou a visitar a unidade psiquiátrica do Hospital Sainte-Anne com certa frequência. Em 1955, aceita um cargo na Universidade de Uppsala e transfere-se para a Suécia[vi]. Aos 33 anos, regressa a Paris e dá início aos escritos de História da Loucura “tentando encontrar o marco zero em que a loucura se separara da razão”[vii]. Publicaria o livro em 1961, colocando Foucault em um patamar intelectual elevado de Paris. Nesta época, Foucault perde o pai e adquire sua herança. Em 1963, publica ‘O nascimento da clínica: uma arqueologia da percepção médica’. Entre 1964 e 1965 publica ‘As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas’ buscando com este estudo investigar o conceito de humanidade e sua evolução[viii]. Devido aos seus contatos e após passar por várias Universidades, Foucault é indicado para o Collège de France, um dos mais renomados Institutos Acadêmicos da Europa e lá, tornou-se ‘professor da história dos sistemas de pensamento’[ix]. Incomodado com os sistemas repressivos, em especial, os sistemas carcerários, Foucault publica na década de 70 ‘Vigiar e punir: história da violência nas prisões’, uma das suas principais obras. Em seguida, escreve a ‘História da Sexualidade’ em três volumes. Entrega o último volume ao editor em maio de 1984. Duas semanas depois, em 02 de junho, tem um colapso e é internado. Sofria com várias doenças desde 1982, mas somente neste momento descobriu que a causa chamava-se ‘AIDS’. Falece no dia 25 daquele mesmo mês e ano[x].

Como salientado, a obra de Michel Foucault é vastíssima. Acima, somente foi transcrito uma síntese de sua trajetória acadêmica. O trabalho que aqui será discutido foi reunido em uma publicação brasileira denominada “Ditos e Escritos”, uma coletânea de textos e conferências reunidos em vários volumes.

O artigo confeccionado com o título “O que são as luzes” foi acoplado e publicado no volume II da coletânea.

No artigo, publicado em 1984, Michel Foucault retoma um trabalho publicado por Immanuel Kant em 1784, quando o filósofo respondia a seguinte pergunta: O que são as luzes ou o que é esclarecimento? (Was ist Aufklärung?).

A pergunta feita no século XVIII dizia respeito ao presente daquele momento, mas, se ainda perguntarmos na atualidade “qual é então esse acontecimento que se chama Aufklärung?”[xi] o conteúdo ainda continua intrigante.

O que faz da obra de Kant um trabalho ímpar tanto tempo após sua publicação é que “Kant ao questionar o significado da Aufklärung estaria privilegiando, como questão filosófica fundamental, a discussão do que as pessoas são no preciso momento histórico em que estão vivendo”, ou seja, existe no artigo uma problematização do próprio Iluminismo, e este o expõe a partir do momento em que “procura analisar o que são as pessoas naquele momento histórico, quais os seus limites, o que acontece com elas, o que é este mundo, esta época, este tempo preciso em que vivem”[xii]. Ou nas palavras de Foucault; “a reflexão sobre a atualidade como diferença na história e como motivo para uma tarefa filosófica particular me parece ser a novidade desse texto.”[xiii]

Foucault enumera alguns aspectos do texto de Kant que o faz reter a atenção do leitor mesmo 200 anos após ser escrito. Um destes aspectos é que o trabalho de Kant, segundo Foucault, traz em suas linhas já de imediato, uma procura pela saída da ‘menoridade’, aspecto imprescindível para se atingir as luzes ou o esclarecimento. E esta menoridade seria “um certo estado de nossa vontade que nos faz aceitar a autoridade de algum outro para nos conduzir nos domínios em que convém fazer uso da razão”[xiv]. Assim, a busca pelo esclarecimento via liberdade da menoridade transpassa os séculos e pode ser empregada em qualquer momento, pois o que transparece é que as amarras são sempre as mesmas. Os exemplos de Kant quando traduz o estado de menoridade são os seguintes, segundo Foucault:

Estamos no estado de menoridade quando um livro toma o lugar do entendimento, quando um orientador espiritual toma o lugar da consciência, quando um médico decide em nosso lugar a nossa dieta (...). Em todo caso, a Aufklärung é definida pela modificação da relação preexistente entre a vontade, a autoridade e o uso da razão.[xv]

Neste raciocínio, Foucault entoa que a saída da menoridade depende exclusivamente do homem e ele só terá condições de realizar esta proeza por meio de “uma mudança que ele próprio operará em si mesmo”[xvi]. E esta mudança necessariamente passará pela terminologia ‘Aude saper’ ou seja, ‘tenha a coragem de saber’. Assim, segundo Foucaul, “é preciso considerar que a Aufklärung é ao mesmo tempo um processo do qual os homens fazem parte coletivamente e um ato de coragem a realizar pessoalmente”.[xvii]

Foucault também salienta que Kant dá a receita para se sair da menoridade empregando para tanto duas condições essenciais, que, ao mesmo tempo são espirituais e institucionais, éticas e políticas:

A primeira dessas condições é que seja bem discriminado o que decorre da obediência e o que decorre do uso da razão. Para caracterizar resumidamente o estado de menoridade, Kant cita uma expressão de uso corrente: “Obedeçam, não raciocinem.” Tal é, segundo ele, a forma pela qual se exercem habitualmente a disciplina militar, o poder político, a autoridade religiosa. A humanidade terá adquirido maioridade não quando não tiver mais que obedecer, mas quando se disser a ela: “Obedeçam, e vocês poderão raciocinar tanto quanto quiserem.” (...) E Kant dá exemplos (...) pagar seus impostos mas pode raciocinar tanto quanto se queira sobre a fiscalização, eis o que caracteriza o estado de maioridade (...).[xviii]

Em seguida, Foucault faz referência a distinção do uso público e privado da razão usados por Kant em sua obra, dizendo que o filósofo, de forma única, acabou por definir como necessário usar a razão livremente em questões públicas, ao passo que, no contexto privado, a razão poderá ser submissa. E esse uso privado seria relacionado àqueles que desempenhariam certas funções na sociedade como o soldado, o diretor de uma paróquia, o funcionário do governo, entre outros. Nota-se que todas estas situações colocam o ser humano como um segmento particular da sociedade. Este ser humano, por consequência, deve fazer uso da razão, adaptando este uso às circunstâncias que lhe cercam, porém, este uso nunca será livre como seria em questões de uso público, pois neste último caso, o raciocínio não é mecânico.[xix] Portanto conclui dizendo Foucault que “há Aufklärung quando existe sobreposição do uso universal, do uso livre e do uso público da razão”.[xx]

O texto de Kant (continua Foucault) poderia ser encarado como um “esboço de que se poderia chamar de atitude de modernidade[xxi]”. Modernidade esta encarada mais como ‘atitude’ do que como certo período da história. Por atitude, define Foucault:

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(...) quero dizer um modo de relação que concerne à atualidade: uma escolha voluntária que é feita por alguns; enfim, uma maneira de pensar e de sentir, uma maneira também de agir e de se conduzir que, tudo ao mesmo tempo, marca uma pertinência e se apresenta como uma tarefa. Um pouco, sem dúvida, como aquilo que os gregos chamavam de êthos.[xxii]

Para caracterizar a atitude de modernidade, Foucault recorre ao poeta francês Charles Baudelaire (1821-1867), pois “em geral se reconhece nele uma das consciências mais agudas da modernidade do século XIX.[xxiii]” Para Baudelaire, “A modernidade é o transitório, o efêmero, o contingente, é a metade da arte, sendo a outra metade o eterno e o imutável.” [xxiv]. Ou seja, a modernidade não é moda, é uma atitude do presente. Em outras palavras, “a modernidade não é um fato de sensibilidade frente ao presente fugidio; é uma vontade de ‘heroificar’ o presente.”[xxv]

E Foucault exemplifica o que diz Baudelaine quando o poeta trata da pintura de personagens de sua época:

Baudelaire ridiculariza esses pintores que, achando muito antiestética a maneira de se vestir dos homens do século XIX, só querem representá-los com togas antigas. Mas, para ele, a modernidade da pintura não consistirá apenas em introduzir vestes negras em um quadro. O pintor moderno será aquele que mostrará essa escura sobrecasaca como “a vestimenta necessária de nossa época”. É aquele que saberá fazer valer, nessa última moda, a relação essencial, permanente, obsedante que nossa época mantém com a morte. (...) O homem moderno, para Baudelaire, não é aquele que parte para descobrir a si mesmo, seus segredos e sua verdade escondida: ele é aquele que busca inventar-se a si mesmo. Essa modernidade não liberta o homem em seu ser próprio: ela lhe impõe a tarefa de elaborar a si mesmo.[xxvi]”

É interessante notar que, como percebeu Foucault, essa reelaboração de si mesmo segundo Baudelaire não poderá ocorrer no corpo social ou político. Apenas poderá ocorrer no campo da arte[xxvii].

E em sequência, Foucault disserta sobre a necessidade de se diferenciar o humanismo da Aufklärung, pois enquanto o primeiro é “um conjunto de temas que reaparecem em várias ocasiões através do tempo, nas sociedades européias: esses temas, permanentemente ligados a julgamentos de valor, tiveram evidentemente sempre muitas variações em seu conteúdo, assim como nos valores que eles mantiveram,”[xxviii] o segundo:

(...) é um acontecimento ou um conjunto de acontecimentos e de processos históricos complexos, que se situaram em um determinado momento do desenvolvimento das sociedades européias. Esse conjunto inclui elementos de transformações sociais, tipos de instituições políticas, formas de saber, projetos de racionalização dos conhecimento e das práticas, mutações tecnológicas (...).[xxix]

E no resumo final, registram-se as seguintes palavras de Foucault:

É preciso considerar a ontologia crítica de nós mesmos não certamente como uma teoria, uma doutrina, nem mesmo como um corpo permanente de saber que se acumula; é preciso concebê-la como uma atitude, um êthos, uma via filosófica em que a crítica do que somos é simultaneamente análise histórica dos limites que nos são colocados e prova de sua ultrapassagem possível[xxx].

E arremata: “Não sei se é preciso dizer hoje que o trabalho crítico também implica a fé nas luzes; ele sempre implica, penso, o trabalho sobre nossos limites, ou seja, um trabalho paciente que dá forma à impaciência da liberdade.”[xxxi]


Referências:

ASSMANN, Selvino José; NUNES, Nei Antônio. Michel Foucault e a genealogia como crítica do presente. Interthesis; v. 4, n.1, Florianópolis, jan/jun. 2007.

FOUCAULT, Michel. O que são as luzes? In_______. Ditos e escritos II. Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Tradução de Elisa Monteiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000.

STRATERN, Paul. Foucault em 90 minutos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.


Notas

[i] STRATERN, 2003, p.10.

[ii] STRATERN, 2003, p.11.

[iii] STRATERN, 2003, p.13.

[iv] STRATERN, 2003, p.14.

[v] STRATERN, 2003, p.15.

[vi] STRATERN, 2003, p.24.

[vii] STRATERN, 2003, p.27.

[viii] STRATERN, 2003, p.36.

[ix] STRATERN, 2003, p.50/51.

[x] STRATERN, 2003, p.69/70.

[xi] FOUCAULT, 2000, p.335.

[xii] ASSMANN; NUNES, 2007, p.12.

[xiii] FOUCAULT, 2000, p.341.

[xiv] FOUCAULT, 2000, p.337.

[xv] FOUCAULT, 2000, p.337.

[xvi] FOUCAULT, 2000, p.338.

[xvii] FOUCAULT, 2000, p.338.

[xviii] FOUCAULT, 2000, p.338/339.

[xix] FOUCAULT, 2000, p.339.

[xx] FOUCAULT, 2000, p.340.

[xxi] FOUCAULT, 2000, p.341.

[xxii] FOUCAULT, 2000, p.341/342.

[xxiii] FOUCAULT, 2000, p.342.

[xxiv] BAUDELAIRE apud ASSMANN; NUNES, 2007, p.13.

[xxv] FOUCAULT, 2000, p.342.

[xxvi] FOUCAULT, 2000, p.342/343/344.

[xxvii] FOUCAULT, 2000, p.344.

[xxviii] FOUCAULT, 2000, p.346.

[xxix] FOUCAULT, 2000, p.346.

[xxx] FOUCAULT, 2000, p.351.

[xxxi] FOUCAULT, 2000, p.351.

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Sobre o autor
Emerson Benedito Ferreira

Graduação em Ciências Jurídicas e Sociais (Direito) pela Universidade de Ribeirão Preto - (UNAERP - 1999). Especialista em Direito Educacional (2009), Filosofia da Educação (2011) e MBA em Gestão Estratégica de Pessoas pela Faculdade de Educação São Luis de Jaboticabal (FESL; Mestre e Doutor em Educação pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) na linha de pesquisa 'Educação, Cultura e Subjetividade'; Desenvolve investigações vinculadas à linha de pesquisa 'Diferenças: relações étnico-raciais, de gênero e etária' e participa do grupo de estudos sobre 'a criança, a infância e a educação infantil: políticas e práticas da diferença' vinculado à UFSCar. Atua principalmente nas seguintes áreas: Estatuto da Criança e Adolescente, História da Infância, Sociologia da Infância, do Desastre e da Diferença. Tem interesse nos estudos sobre a história da infância e da criança, da família, criminalidade infantil, relações étnico-raciais, abolicionismo penal (tendência estrutural historicista de Michel Foucault), patologias forense, história da sexualidade infantil.

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