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Saúde, medicamentos,desenvolvimento social e princípios orçamentários

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31/12/2004 às 00:00
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8. Princípio da transparência fiscal.

A transparência fiscal [14] é um princípio constitucional implícito. Sua base empírica está situada no art. 5º caput da CF, bem como, art. 37 caput ambos da Constituição Federal. Sinaliza no sentido de que a atividade tributária deve se desenvolver segundo os ditames da clareza de propósitos, abertura de informação e simplicidade na tributação.

Tais diretrizes principiológicas são dirigidas tanto ao Estado, ética fiscal pública, quanto aos contribuintes, ética fiscal privada. Se a opção da sociedade brasileira é pela justiça tributária, se estamos a favor da vida e não da morte, da eqüidade e não da injustiça, do direito e não do arbítrio, da convivência com o outro e não de sua negação, não temos outro caminho senão viver plenamente nossa opção pela transparência fiscal, encarnando-a, diminuindo assim a distância entre o ser o dever ser, isto é, entre o que está positivado expressa e implicitamente no Texto Constitucional, e o que vem sendo materializado na realidade tributária brasileira.

É nesta perspectiva histórica que se insere a iniciativa do Governo Federal, em criar através da Controladoria-Geral da União o Portal da Transparência Fiscal [15] motivado dentre outras situações, pelas denúncias envolvendo o cadastro de pessoas beneficiadas pelo programa Bolsa-Família. Através deste portal, será possível o acompanhamento pela internet, por qualquer cidadão, da execução financeira de todos os programas e ações do governo federal, identificando-se inclusive, a lista de pessoas beneficiadas pelos programas em cada município. O site pode ser acessado nos endereços: www.portaldatransparência.gov.br ou www.portaltransparência.gov.br.


9. Princípio da legalidade orçamentária.

Encontra sua base empírica no art. 167 e incisos da Constituição Federal. Toda e qualquer despesa pública há que estar de uma forma ou de outra prevista em lei orçamentária, sob pena de nulidade do gasto.

O princípio da legalidade orçamentária congraça com o sub-princípio da especificação ou especialidade, para limitar a concessão de créditos orçamentários, ou seja, os créditos não podem ser ilimitados ex vi do art. 167, VII da CF e art. 5º, § 4º da Lei de Responsabilidade Fiscal, nem podem ser transpostos de uma categoria de programação para outra sem prévia autorização legislativa. Sobre o sub-princípio da especificação dispõe Eber Zoelher Santa Helena,

Trata-se do princípio da especificação, ou especialidade, ou ainda, da discriminação da despesa, que se confunde com a própria questão da legalidade da despesa pública e é a razão de ser da lei orçamentária, prescrevendo que a autorização legislativa se refira a despesas específicas e não a dotações globais. O princípio da especialidade abrange tanto o aspecto qualitativo dos créditos orçamentários quanto o quantitativo, vedando a concessão de créditos ilimitados. [16]

O princípio da legalidade orçamentária é a aplicação no campo do direito financeiro, do princípio da estrita legalidade previsto no art. 5º, II, bem como, da legalidade tributária estatuída art. 150, I, ambos da Constituição Federal. Este princípio, assim como os outros princípios orçamentários, dialogam entre si naquela dimensão de ponderação de interesses [17], sem que um revogue o outro. [18]

Entende-se hodiernamente, que os direitos fundamentais previstos no art. 5º da Constituição Federal sobrepairam, inclusive, sobre a legalidade orçamentária, sendo possível à argüição de tais direitos junto ao judiciário, quando negados pela administração pública. Os direitos fundamentais no campo orçamentário se revelam na proteção dos mínimos sociais ou direitos constitucionais mínimos [19] que gozam do chamado status positivus libertatis, i.e, prescindem de lei orçamentária para terem eficácia, podem ser garantidos pelo Judiciário e postulam, além da garantia da não-incidência de tributos, prestações positivas de natureza assistencial, remédios, tratamentos e internações indispensáveis à sobrevivência, todavia, somente para àqueles indivíduos que não possuírem os meios indispensáveis à sobrevivência.

Neste sentido, os direitos constitucionais mínimos apartam-se dos direitos sociais e econômicos (arts. 6º e 7º da CF). A doutrina alemã chega a dizer que os direitos fundamentais são garantidos e os direitos sociais são concedidos [20]. Os direitos sociais não são considerados fundamentais, gozam do status positivus socialis, i.e, status dependente da concessão do legislador, não são garantidos pelo Judiciário e dependem da reserva do orçamento, compreendem o fornecimento de serviço público inessencial, e.g, educação secundária e superior, saúde, moradia, remédios não previstos na RENAME etc.

O status positivus socialis na dicção de Ricardo Lobo Torres [21],

Depende da situação econômica do país e da riqueza nacional, sendo tanto mais abrangente quanto mais rico e menos suscetível a crises seja o Estado, motivo por que não tem dimensão originariamente constitucional.

Contudo, vigora neste campo uma grande confusão entre os direitos fundamentais (art. 5º da CF) e os direitos sociais (art. 6º e 7º da CF), gerando decisões judiciais que concedem liminares para garantia de direitos sociais, que estão submetidos à reserva do possível ou reserva da lei orçamentária, subvertendo assim as prioridades constitucionais. Bem diz Ricardo Lobo Torres [22]:

As políticas públicas dependem de dinheiro, e não apenas de verba. Os direitos sociais e a ação governamental vivem sob a reserva do possível, isto é, de arrecadação dos ingressos previstos nos planos anuais a plurianuais.

Os direitos sociais (arts. 6º e 7º da CF) e os direitos econômicos (art. 174 a 179 da CF), existem do ponto de vista de sua eficácia social, sob a condição da reserva do possível ou da soberania orçamentária do legislador [23], muito embora haja posições relevantes que defendem a efetividade destes direitos ditos originários, independentemente de lei orçamentária contemplando referidas prestações.

Citamos aqui José Joaquim Gomes Canotilho que sustenta:

O status social do cidadão pressupõe prestações sociais originárias como saúde, habitação, ensino, - originäre Leistungsanprünchen (...) O entendimento dos direitos sociais, econômicos e culturais como direitos originários implica, como já salientado, uma mudança na função dos direitos fundamentais (...) A efectivação dos direitos econômicos, sociais e culturais não se reduz a um simples ‘apelo’ ao legislador. Existe uma verdadeira imposição constitucional legitimadora, entre outras, coisas, de transformações econômicas e sociais, na medida em que estas forem necessárias para efectivação desses direitos. [24]

Não obstante Canotilho estender aos direitos sociais e aos direitos econômicos as mesmas garantias dos direito fundamentais, Canotilho é forçado no mesmo parágrafo, a admitir que a efectivação destes direitos se dá com a observância da "reserva do possível" e da existência de recursos econômicos [25], portanto, ao fim e ao cabo reconhece o limite da reserva da lei orçamentária para garantia dos direitos econômicos e sociais como quer Ricardo Lobo Torres. [26]

No mundo do ser, na realidade jurídica, o que vemos é uma confusão total dos conceitos acima expostos e uma ampla flexibilização da legalidade orçamentária. Decisões do Judiciário aos borbotões vêm concedendo gratuidade de remédios [27], independente de qualquer reserva orçamentária [28], e muitas das vezes tais remédios não guardam conexão direta com a proteção dos mínimos sociais porque não essenciais segundo a política nacional de medicamentos.

O Governo Federal através da Portaria nº 3.916/MS/GM, de 30 de outubro de 1998, (pugblicada no D.O.U. de 10/11/98), aprovou a Política Nacional de Medicamentos que tem como um de seus propósitos a promoção do uso racional dos medicamentos e máxime acesso da população àqueles considerados essenciais. Referida portaria federal busca fundamento de validade na Lei n.º 8.080/90, em seu artigo 6º que estabelece como campo de atuação do Sistema Único de Saúde - SUS - a "formulação da política de medicamentos (...) de interesse para a saúde (...)". É dentro deste contexto que se insere a Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (RENAME). Ao falar das diretrizes da Política Nacional de Medicamentos assim se posiciona a Portaria 3.916/98:

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3.1 Adoção de relação de medicamentos essenciais.

Integram o elenco dos medicamentos essenciais aqueles produtos considerados básicos e indispensáveis para atender a maioria dos problemas de saúde da população. Esses produtos devem estar continuamente disponíveis aos segmentos da sociedade que deles necessitem, nas formas farmacêuticas apropriadas, e compõem uma relação nacional de referência que servirá de base para o direcionamento da produção farmacêutica e para o desenvolvimento científico e tecnológico, bem como para a definição de listas de medicamentos essenciais nos âmbitos estadual e municipal, que deverão ser estabelecidas com o apoio do gestor federal e segundo a situação epidemiológica respectiva.

O Ministério da Saúde estabelecerá mecanismos que permitam a contínua atualização da Relação Nacional de Medicamentos Essenciais -RENAME, imprescindível instrumento de ação do SUS, na medida em que contempla um elenco de produtos necessários ao tratamento e controle da maioria das patologias prevalentes no País.

O fato de que a Relação Nacional, conforme assinalado acima, deverá ser a base para a organização das listas estaduais e municipais favorecerá o processo de descentralização da gestão, visto que estas instâncias são, com a participação financeira e técnica do Ministério da Saúde, responsáveis pelo suprimento de suas redes de serviços. Trata-se, portanto, de meio fundamental para orientar a padronização, quer da prescrição, quer do abastecimento de medicamentos, principalmente no âmbito do SUS, constituindo, assim, um mecanismo para a redução dos custos dos produtos. Visando maior veiculação, a RENAME deverá ser continuamente divulgada por diferentes meios, como a Internet, por exemplo, possibilitando, entre outros aspectos, a aquisição de medicamentos a preços menores, tanto por parte do consumidor em geral, quanto por parte dos gestores do Sistema.

No processo de atualização contínua da RENAME, deverá ser dada ênfase ao conjunto dos medicamentos voltados para a assistência ambulatorial, ajustado, no nível local, às doenças mais comuns à população, definidas segundo prévio critério epidemiológico. (grifos nossos).

É de se ponderar que qualquer liminar judicial deve avaliar estas questões que envolvem a Política Nacional de Medicamentos, ou seja, verificar no aqui-e-agora se o medicamento pleiteado pelo cidadão faz parte da RENAME (Relação Nacional de Medicamentos Essenciais), ocasião em que legitimidade do pleito do cidadão acresce de valor e deve ser atendido na esfera de um justo direito social a ser protegido na forma do art. 6º da Constituição Federal. As liminares ou outras decisões que não observam estes parâmetros, ao nosso ver ademais de tudo, ferem de morte o princípio da legalidade orçamentária.

Outro aspecto a se comentar ainda no tocante a legalidade orçamentária, é que as próprias disposições orçamentárias das dotações vêm sendo questionadas sob a ótica da legitimidade e economicidade, no Judiciário, fato que a bem pouco tempo atrás não era sequer pensado. Veja-se no Rio de Janeiro, o episódio da liminar obtida pelo Ministério Público (posteriormente cassada pelo presidente do tribunal) impedindo o remanejamento de R$81 milhões de verbas da secretaria de saúde (Fundo Estadual de Saúde – FES) para secretaria de ação social, sob a alegação de que os programas assistenciais não devem ser considerados como pertinentes á área de saúde. [29]

No âmbito federal, as polêmicas jurídicas em torno do gasto público e da lei orçamentária não têm sido diferentes. E Emenda Constitucional nº 29/2000, deu nova redação ao art. 77 seus incisos e parágrafos, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, estabelecendo limites mínimos, com correção pela variação nominal do PIB (Produto Interno Bruto), a serem aplicados nas ações e serviços públicos de saúde, nos anos de 2000 a 2005. Pois bem. Para o orçamento federal de 2004, a Procuradoria Geral da República, segundo o procurador-geral Dr. Cláudio Fonteles, vem entendendo que é inconstitucional, por ofensa ao art. 77 do ADCT, a inclusão no orçamento do Ministério da Saúde de recursos destinados ao saneamento e ao combate à fome zero. Com base neste raciocínio da procuradoria da república, o governo teria de mandar uma emenda à proposta de lei orçamentária para 2004, restituindo à Saúde, os R$3.571 bilhões que foram incluídos em suas dotações, porém, destinados ao programa de combate à fome. [30] Verifica-se que o controle fiscalizatório sobre as leis orçamentárias, bem como, o justo gasto do tributo arrecadado é cada dia mais perseguido pelas instituições democráticas do país.

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Sobre o autor
Roberto Wagner Lima Nogueira

mestre em Direito Tributário, professor do Departamento de Direito Público das Universidades Católica de Petrópolis (UCP) , procurador do Município de Areal (RJ), membro do Conselho Científico da Associação Paulista de Direito Tributário (APET) é autor dos livros "Fundamentos do Dever Tributário", Belo Horizonte, Del Rey, 2003, e "Direito Financeiro e Justiça Tributária", Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2004; co-autor dos livros "ISS - LC 116/2003" (coord. Marcelo Magalhães Peixoto e Ives Gandra da Silva Martins), Curitiba, Juruá, 2004; e "Planejamento Tributário" (coord. Marcelo Magalhães Peixoto), São Paulo, Quartier Latim, 2004.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NOGUEIRA, Roberto Wagner Lima. Saúde, medicamentos,desenvolvimento social e princípios orçamentários. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 542, 31 dez. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6127. Acesso em: 26 abr. 2024.

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