CEM ANOS QUE VIVEM EM NÓS

O DIREITO À MEMÓRIA COLETIVA

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22/10/2017 às 09:00
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Os efeitos da Revolução Russa cem anos depois: a reconstrução de conceitos políticos e jurídicos no Ocidente e perspectivas diante do fenômeno da globalização

Dedico este pequeno estudo aos que não tiveram tempo e jamais souberam; aos que souberam mas lhes foi imposto o silêncio ou o sacrifício; aos que acreditaram em uma certeza que nada tinha a ver com a verdade e assim reduziram suas vidas a um esquema; aos que descobriram a verdade e a sustentaram, para que outras gerações não tivessem que cometer os mesmos erros; aos que simplificaram tudo atribuindo crimes e culpas só aos outros, pois são eles que têm de ser resgatados das grutas em que encerraram seu pensamento; por fim, dedico este ensaio também e principalmente àqueles que voltaram às fontes para buscar a raiz do entendimento, que recriaram, que expandiram, que levaram até o fim e tiveram a humildade de pensar, como está no verso de Violeta Parra: mi paso retrocedido, cuando el de ustedes avanza.

Luiz Fernando Cabeda 


1. Há cem anos nasceu Violeta Parra, compositora chilena que levou a outros países latino-americanos e europeus os cantos de seu país, inspirados no folclore e na poesia popular. O verdadeiro arrebatamento produzido por sua obra terá tido lugar no coração de muitos, no entanto, mais pela universalidade de seus versos.

Uma das últimas e mais conhecidas canções de Violeta Parra começa assim:

“Volver a los diecisiete

Después de vivir um siglo

Es como descifrar signos

Sin ser sabio competente”.

Cem anos já passaram; um século foi vivido desde 1917. Um tempo que tem de ser reconhecido pelos que hoje ainda percebem a sutileza de seus versos.

Voltar aos 17 envolve muitos signos.

A sabedoria para entender esse retorno também pode demorar a chegar e até mesmo não chegar nunca.

Tanto há o retorno a um lado juvenil nas pessoas como ao primórdio dos acontecimentos históricos, quando estes se apresentaram como uma nova aurora.

Umberto Eco não está mais entre nós, com seu humor amoroso e percepção rutilante, para nos ajudar no segundo sentido de metalinguagem em voltar aos dezessete, que todavia existe, está latente. Tanto mais que descifrar signos é exatamente o que procura realizar a semiótica, área de conhecimento a que Eco se dedicou a estudar como acadêmico, como depois a brincar como romancista.

Viver nada tem de linear e, portanto, voltar não é simplesmente ir até o que já foi. Violeta Parra sabia que a vida se enreda como a hera sobre o muro e brota como o musgo sobre a pedra:

“Se va enredando, enredandoComo en el muro la hiedraY va brotando, brotandoComo el musguito en la piedra”.


 2. Também há cem anos, Vladimir Ilyich Ulyanov, que escrevia sob o pseudônimo de Nikolai Lenin, negociou com a embaixada alemã na Suiça, onde se encontrava exilado, o retorno à Rússia em viagem de trem pelo território germânico.

A ideia primeiro lhe pareceu louca, em pleno curso da I Guerra Mundial, mas - proposta por um companheiro de exílio tomado por um insight que sepultava todas as cautelas - foi afinal encampada por ele.

Havia interesse estratégico do Kaiser e seu alto comando em firmar paz em separado com a Rússia, uma vez que a Alemanha lutava em duas frentes.

A condição estabelecida foi a de que o comboio ficaria blindado, não podendo a comitiva de Lenin desembarcar no território alemão. Por fim, depois de chegar a Hamburgo e cruzar o mar Báltico, além de percorrer áreas de estepe na Escandinávia por trenó, o grupo de exilados continuou a viagem de trem e desembarcou na acanhada Estação Finlândia, em Petrogrado.

Ali, diante de revoltosos que haviam acabado de depor o czar Nicolau II, Lenin lhes incutiu em sucessivos discursos o que ia muito além da revolta, dos seus êxitos e do orgulho por ter vencido a autocracia dos Romanov, que já durava mais de 300 anos: o que estava ocorrendo era uma revolução mundial; o modo de vida na terra mudava; as sociedades não continuariam mais a ser as mesmas; a mobilização não tinha volta e o poder popular deveria ser empolgado e fortalecido, através dos soviets (conselhos) e do partido (“Rumo à Estação Finlândia”, Edmund Wilson).

Essa que ficou reconhecida como “a revolução de fevereiro” contou com forças muito variadas e igualmente decisivas. Da parte dos bolcheviques, assim chamados porque haviam formado a maioria do Partido Social Democrata Russo, o principal comando foi exercido por Liev Davidovich Bronstein, conhecido como Leon Trotski, que articulou a formação e atuação do soviet de Petrogrado. Todavia, o próprio Trotski reconheceu: a revolução é filha da guerra. Ou seja, a devastação causada pelo confronto bélico e a hecatombe do sistema czarista deram vez à insurgência revolucionária, que já era expressiva desde o final do Século XIX.

O avô de Nicolau II, Alexandre II, havia sido morto em um atentado dos narodiniks, grupo antagonista do czarismo, cujo nome derivava da expressão Naródnaia Volia, Vontade do Povo. Alexandre III, pai de Nicolau II, também foi alvo de atentado, porém abortado. Mais de setenta pessoas foram presas por envolvimento, entre elas o irmão mais velho de Lenin, Aleksandr Ulyanov, enforcado ainda muito jovem.

Pois foi na própria gare Finlândia, e depois no palácio que havia sido tomado pelos bolcheviques da bailarina que era amante do czar, que Lenin prenunciou a próxima revolução na Alemanha e, a seguir, além, em outros países, de modo que a ordem capitalista começava a ser superada progressiva e inexoravelmente no mundo.

O governo instalado, porém, aliou liberais, sociais democratas mencheviques (ou minoritários) e socialistas e acabou chefiado por Alexander Kerensky, conterrâneo e colega de Lenin nos bancos escolares, que se havia tornado um grande tribuno, porém pouco capaz na articulação política. Esse governo proclamatório tornou-se o alvo dos bolcheviques que, na chamada “revolução de outubro” (dia 25 pelo calendário Juliano então vigente na Rússia; 7 de novembro pelo calendário Gregoriano, adotado em 1918), tomaram o poder em um assalto ao Palácio de Inverno, que havia sido transformado na sede do governo provisório.

Assim, por uma coincidência de datas – e também porque um século já foi vivido – no início de novembro deste ano, voltamos aos 17.


3. Há cinquenta anos, em 1967, Violeta Parra entendeu que já havia dado seu recado para o mundo. O quotidiano da vida estava em conflito com tanto sonho, tanta luta.

“Gracias a la Vida”, sim; mas toda vida termina.

No mesmo ano, o médico argentino Ernesto Che Guevara viu chegado ao fim seu périplo, sua bandeira de marxismo de aventura.

Che já se movia como uma legenda e essa antiga expressão de tratamento, que se propagou principalmente na região do pampa, veio a ser exata e ironicamente aquilo que a história do capitalismo consagrou como uma marca.

Desde o desfecho para a crise dos mísseis em Cuba, na forma de um compromisso de paz (que já havia custado caro a Nikita Khrushchev, secretário-geral do PCUS, derrubado em uma conspiração de outros dirigentes, em 1964), Guevara imaginou um engajamento itinerante, primeiro no Congo, depois na Bolívia.

Quando Fidel Castro se curvou à política internacional da URSS, em troca de ser subsidiado por ela, não havia mais lugar em Cuba para Che Guevara e para o voluntarismo que os russos atribuíam a ele e não aceitavam, diante dos riscos que a Guerra Fria supunha e frente aos quais se equilibrava a paz atômica. A incolumidade de Cuba dependia de tal equilíbrio. Sobre as metamorfoses da revolução cubana há um sensível e profundo testemunho, do premiado escritor Reinaldo Arenas, no filme “Antes do Anoitecer”, dirigido pelo cineasta americano Julien Schnabel. Hector Babenco considerava – e isto não é pouco - “o melhor filme latino-americano já feito sobre o tema da liberdade”.

Do ponto de vista do marxismo, não existiam condições objetivas para a guerrilha de Guevara em terras bolivianas. O país era governado por René Barrientos, um militar de carreira que tivera sua iniciação política com Paz Estenssoro, ex-presidente reformista que havia estatizado as minas de estanho e tornado o voto universal.

Isto teve um peso imenso: a grande população indígena vinha sendo tradada até então como pária. As minas de estanho eram das últimas grandes riquezas minerais bolivianas, depois que foi exaurida pelos espanhóis coloniais a mais portentosa montanha de prata surgida das profundezas da terra, em Potosí, cuja exploração viabilizou a expansão do mercantilismo, com o surgimento de uma moeda mundial: o brasão impresso no dobrão espanhol deu origem ao sinal de cifrão que hoje conhecemos.

Potosí foi tão importante que está citada na ficção de Cervantes, no Século XVII, e nas análises de Marx, no Século XIX.

Até o primeiro governo de Paz Estenssoro, nos anos 1950, o estanho estava nas mãos da família Patiño, sendo seu expoente máximo o play boy internacional Antenor Patiño, sobre o qual quaisquer feitos mundanos já narrados sempre permitem mais um acréscimo, além do imaginável, pois patrocinou todas as excentricidades que a soberba e o delírio da riqueza permitem.

Na época da chegada de Guevara, Barrientos tinha por uso visitar com seu helicóptero todas as cidades e vilarejos de seu país. Por óbvio, era muito popular. Ele falava quéchua, idioma que remonta aos incas e que o presidente atual do país, Evo Morales, embora seja um índio aymará, não domina. Algo que não chega a ser estranho, já que é uma espécie de Macunaíma dos Andes, sendo autenticidade uma palavra que lhe é de todo estranha.

Empreender a derrubada de um governo populista e promover a revolução em lugares remotos, de um país esmagado pela exploração predatória, até hoje parece algo demasiado temerário.

De certa forma, para Guevara também o quotidiano da vida estava em conflito com tanto sonho, tanta luta. O que importava mais era deixar um testamento – e isso implicava em direcionar o voluntarismo para a morte, empurrando a vida para a redenção -, mas o legado acabou sendo feito de olhares no infinito, imagens icônicas, indumentária variada, frases abertamente idealistas, desvirtuando sua ação política até o ponto de transformá-la mais em um roteiro, de modo que o espírito de celebridade encobriu com um manto místico a guerrilha e o episódio da morte, a ponto de fundar em La Higuera um sítio mágico no mapa dos que andam em desatino com a lógica da vida.

A figura icônica de Guevara hoje permite considerar o processo de entronização da imagem semelhante ao ocorrido com a pintora mexicana Frida Kahlo, que foi casada com o muralista Diego Rivera e teve uma relação amorosa intensa e duradoura com o revolucionário Leon Trotski, em seu exílio em Coyoacán, terra natal de Frida, pouco antes da picareta de alpinista, manejada pelo catalão Ramón Mercader, destruir seu cérebro, por encomenda de Stalin.

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Porque essas linhas da história se cruzam e os personagens reaparecem em coincidências estranhas é algo que o engenho não explica; serão as “malhas que o império tece” de que falou Fernando Pessoa em um verso.

Hoje as figuras típicas da cultura pop, um pouco inventadas ou estilizadas, de Frida e Guevara são difundidas em medida parecida e com imensa criatividade, mas vaga e distante é a notícia sobre o que foi real em suas vidas.

Ainda há cinquenta anos, em 1967, um jornalista - que chegou a ter seus textos expurgados da Prensa Latina, a agência de notícias de Cuba castrista - sacudiu a América Latina e, em seguida o mundo, com a sua forma de contar exatamente o que era “real” nesta parte da terra.

Ele inscreveu Macondo, definitivamente, no mapa mundi.

Também falou, à sua maneira, em “después de vivir um siglo”.

Um dos trechos mais conhecidos de “Cem Anos de Solidão”, de Gabriel García Márquez, é este:

“O coronel Aureliano Buendía promoveu trinta e duas revoluções armadas e perdeu todas. Teve dezessete filhos varões de dezessete mulheres diferentes, que foram exterminados um por um numa só noite, antes que o mais velho completasse trinta e cinco anos. Escapou de quatorze atentados, setenta e três emboscadas e um pelotão de fuzilamento. Sobreviveu a uma dose de estricnina no café que daria para matar um cavalo. Recusou a Ordem do Mérito que lhe outorgou o Presidente da República.”

 Mário Vargas Llosa, entusiasmado com a obra (que chamou “História de um Deicídio”), chegou a propor: façamos as trinta e duas revoluções do coronel Aureliano Buendía, ainda que tenhamos de perdê-las todas.

Todavia, nenhuma nova revolução foi inventada desde então, muito menos repetida. Hoje Vargas Llosa detém um merecido Prêmio Nobel e descrê em revoluções. Pudera, na vida madura ele só viu prosperar golpes, ditaduras militares e homicídios massivos por motivos políticos na América Latina.

Já a verdadeira revolução literária que “Cem Anos de Solidão” desencadeou, apelidada de ‘realismo mágico’, nos fez entender melhor, repetindo Hegel, “o que é racional é real”, mas com este acréscimo importante: o que é irracional também.


4. A revolução russa revelou, com o reconhecimento do Ocidente, o trabalho em particular de dois juristas soviéticos: Pyotr Ivanovich Stucka (“La Función Revolucionária del Derecho y del Estado”) - ele chegou a ser o primeiro Comissário da Justiça e depois presidente da Suprema Corte -, e Evgueni Bronislávovich Pashukanis (“A Teoria Geral do Direito e o Marxismo”).

Esses nomes russos – e os demais aqui reproduzidos - são também encontrados com outras grafias parecidas, pois a transliteração do cirílico para o inglês admite variações, já que realizada a partir da pronúncia.

A tarefa de construção de uma teoria nova, exigida de Stucka e Pashukanis, foi imensa, vertiginosa, acidentada e incompleta. O domínio do conhecimento das noções básicas do marxismo a respeito de superestrutura e dos institutos desenvolvidos no Ocidente não era o bastante, de modo que os juristas soviéticos se impuseram saber o que significava, por exemplo, a legalidade revolucionária. Ela seria uma nova ordem vinculante do Estado? Poderia traçar diretrizes e até mesmo ser um freio às ações políticas da revolução?

Por outro lado, havia uma lógica que precisava ser enfrentada e ela era estranha ao fervor revolucionário:

“O proletariado deve ter uma atitude friamente crítica não apenas face à moral e ao Estado burguês, mas também face ao seu próprio Estado e à sua própria moral. Por outras palavras, ele deve estar consciente da necessidade histórica da sua existência mas também do seu desaparecimento.” 

A crítica das formas jurídicas feitas pelos dois juristas soviéticos progrediu até voltar-se para a ... necessidade de permanência dessas mesmas formas enquanto o Direito era, ele próprio, transformado pela revolução.

Por exemplo, um dos postulados mais questionados na ação política era o da anterioridade da pena. A inclinação era a de interpretá-la como predomínio da forma, já que a maneira de burlar a nova ordem revolucionária era múltipla e aleatória. No entanto, Pashukanis sustentou:

“Os conceitos de delito e de pena são (...) determinações necessárias da forma jurídica, das quais não nos poderemos desembaraçar senão quando começar o perecimento da superestrutura em geral.” 

Isto era demais na era Stalin, que começou antes mesmo da morte de Lenin, no início de 1924, em virtude da enfermidade deste. O jurista  escolhido para representar o pensamento soviético sob o stalinismo foi Andrei Wyschinski, que  logo veio a ser investido como procurador-geral da URSS, responsável pela acusação nos chamados processos de Moscou, nos anos 1930, quando a oposição foi eliminada.

Stucka perdeu seus cargos e viveu no ostracismo nos seus dois últimos anos, mas, tendo morrido antes que a repressão se acentuasse, manteve as honras e o direito a um sepultamento respeitoso. Já Pashukanis foi acusado de traição ao socialismo e executado em circunstâncias não esclarecidas, no auge do expurgo stalinista.

As formas jurídicas haviam sido banidas, mas com elas “a criança foi jogada fora junto com a água do banho”. A transformação revolucionária – em algo que era sobretudo totalitário - havia pervertido a noção de direito.

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Sobre o autor
Luiz Fernando Cabeda

Desembargador do TRT da 12ª Região, inativo. Fez estágio na Escola Nacional da Magistratura da França, Seção Internacional. Autor de "A Justiça Agoniza" e "A Resistência da Verdade Jurídica".

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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O presente artigo examina criticamente os cem anos da revolução soviética

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