5. O novo mundo, que a ‘revolução de outubro’ de ‘17 anunciava, demorou para mostrar a sua face e, quando o fez, ela não correspondia à descrição, era de difícil reconhecimento.
O poder assumido sob o comando de Lenin mudava de métodos e objetivos diante de dificuldades, que não cessavam. O lema “todo poder aos soviets” foi cumprido à risca, porém a organização muitas vezes se mostrava precária, havia revolucionários de várias origens sociais como de etnias, culturas e regiões muito diversas. As discussões poderiam ser intermináveis.
Embora o conhecimento dos passos da revolução francesa fosse surpreendentemente grande, e a vontade de ir além ainda maior, a dispersão não ajudava a governar.
Este curioso registro do quotidiano daqueles dias vertiginosos mostra isso: a aristocrata Alexandra Kollontai, conhecida libertária e feminista que aderiu ao partido bolchevique, também participou muito ativamente daquela ‘vertigem dos dias’, entretendo relações amorosas intensas, finalmente fixadas em um líder marinheiro do forte de Kronstadt. Como as funções no soviet a que eles pertenciam passaram a ser negligenciadas em favor da volúpia do amor, seus camaradas levaram o problema para Lenin resolver e queriam um veredito severo, que foi este, o do cinismo apropriado ao momento: Kollontai e o marinheiro deveriam ser condenados a...ficar juntos.
Os soviets (conselhos) eram uma instituição da era dos czares, porém então funcionavam para acomodar a pesada burocracia civil e militar do império, não eram democráticos e muito menos populares. A revolução tomou talvez sua transformação em comitês revolucionários eleitos como uso adequado de uma referência já bem conhecida dos russos. Governar com a divergência que necessariamente surgia, porém, não era tarefa para quem guardasse a doutrina.
Cerca de um mês depois da tomada do poder pela revolução de outubro, foram realizadas eleições que já estavam convocadas pelo governo provisório para formar a assembleia constituinte. O partido mais votado, que veio a eleger o presidente do parlamento, não foi o bolchevique (175 deputados) mas o dos socialistas revolucionários (370 deputados).
A assembleia constituinte reuniu-se um só dia em janeiro de 1918, sendo então dissolvida. Foi instituído a partir daí o regime do partido único. Houve, portanto, um golpe de Lenin dentro da revolução. Três meses depois, em abril do mesmo ano, iniciou uma longa e destruidora guerra civil que durou até 1922. Ainda em agosto de 1918 Lenin sofreu um atentado a tiros, sendo atingido por uma bala no ombro e outra próxima ao pescoço. Fanya Kaplan foi acusada, confessou (“Considero Lenin um traidor da revolução”) e sofreu execução sumária. Os arquivos da velha Rússia guardam, no entanto, a incerteza sobre a autoria.
Em 1922 o médico alemão Felix Klemperer extraiu a bala no ombro e, segundo versões, viu-se que ela seria incompatível com a pistola Browning apreendida na ocasião do atentado. Foi considerando perigoso remover a outra bala. Naquele mesmo ano Lenin sofreu um derrame cerebral, a seguir outros, até 1924, quando morreu hemiplégico e mudo. Nesses dois anos ficou afastado do poder. Permaneceu em confinamento na cidade de Gorki, mantendo unicamente a intermediação de Stalin, em que pese Nadejda Krupskaja, mulher de Lenin, protestar com veemência e tentar outros contatos com a direção do partido, sem sucesso.
A última foto de Lenin vivo, em uma cadeira de rodas, permite vê-lo paralisado, em estado de duvidosa lucidez. Ainda assim, durante a enfermidade e em períodos que teve alguma melhora e recuperou a fala, ele ditou seu testamento político, que nunca foi lido ou considerado como documento de orientação política pelos dirigentes bolcheviques, agora reunidos no partido comunista. No documento Lenin alerta sobre o fato de Stalin haver concentrado demasiado poder e deter “rudeza intolerável” para um secretário-geral; refere Bukharin como “o preferido do partido”, mas carente de estudos sobre dialética e também censura Trotski, que considera “a mente mais brilhante”, por sua oposição ao comitê central, fonte para divisão partidária que ele, Lenin, temia acima de tudo. Por mais inacreditável que pareça, o testamento foi publicado pelo New York Times em 18 de outubro de 1926. Na URSS só veio à luz em 1989, durante o governo de Gorbachev.
Sic transit gloria mundi. A glória real de Lenin foi curta. Durante seu governo foram quebradas as regras que haviam, como princípios universais e como ambição de progresso civilizatório, servido para fomentar a crença em uma revolução grandemente transformadora.
A transformação ocorreu e foi grande como nunca.
Porém, foi então que – entre outros episódios de justiçamento - a família real sofreu execução. Um crime dentro da revolução. Matar crianças sempre foi e será um crime, em qualquer lugar, momento ou circunstância. C’est tout. Não deve ser esquecido, porém, que a revolução francesa esconde em seu legado grandioso o fato de haver prendido com apenas 8 anos o filho de Luiz XVI, mantendo-o na prisão até morrer, ainda criança, ao suposto propósito de extinguir uma dinastia.
Lenin também determinou a invasão da Polônia e da Ucrânia. Esta última acabou sendo incorporada à URSS, mas a Polônia resistiu, ganhou batalhas e manteve sua independência. Porém, pagou caro por isso, a partir de 1939, quando foi invadida por Stalin e pelos alemães, repartindo o país, como efeito do pacto Molotov-Ribbentrop.
A respeito da invasão da Polônia, foi recuperado dos arquivos abertos em Moscou o documento preparado por Lavrentiy Beria, chefe da NKVD (sucedida pela KGB a partir de 1954), sobre o qual foi posto despacho de próprio punho de Stalin, autorizando o julgamento sumário dos integrantes presos das tropas “inimigas” polonesas. Em razão disso sobreveio o assassinato em massa de cerca de doze mil oficiais na floresta de Katyn, cercanias de Smolensk, seguido da execução de outros militares poloneses que se encontravam em prisões, somando cerca de vinte e dois mil mortos (“Stalin, os Nazistas e o Ocidente”, Laurence Rees; filme “Katyn”, do diretor polonês Andrzej Wajda).
Mais que tudo, esses fatos - que são apenas episódios dentro de uma cadeia imensa - mostram que as revoluções podem cometer seus crimes e que a promessa de emancipação que trazem se transmuda em opressão rapidamente, principalmente quando há uma fabricação de “outros” que necessitam sofrê-la.
A estereotipação é ainda uma imensa, cruel e inesgotável fonte para espargir a ‘culpa’ sobre aqueles que “merecem” ser esmagados.
A URSS, conquanto criada sob a ideia de paz entre os povos, ainda invadiu e anexou territórios da Finlândia, sob Stalin (1939), e fez incursões militares punitivas sob Khrushchev na Hungria (1956) e sob Brezhnev na Tchecoslováquia (1968) e Afganistão (1979).
6. Não se pode exigir do poder que ele não seja exercido, diria alguém que leu Machiavel. As pessoas que se sacrificam por uma revolução, porém, pensam estar fazendo algo mais grandioso, que vá além disso.
De grandioso, no entanto, o que se salientou na Rússia soviética foi o culto à personalidade, denunciado por Khrushchev em 1956, mas que continuou, mitigado embora, pois a alma da velha Rússia, mantendo a brutalidade que remonta à formação de seu império, nunca sepultou de todo Ivan, o Terrível ou Pedro, o Grande, e não haveria de sepultar Stalin, até que a própria URSS morreu querendo reformar-se sob a orientação de Mikhail Gorbachev, sendo então inumada por Boris Yeltsin.
Outra nota que seria inverossímil se não se tivesse tornado um choque de realidade, como hoje se diz, está no fato de que o relatório Khrushchev de 1956, contra o culto à personalidade e os crimes de Stalin, foi publicado imediatamente ao Congresso do PCUS, mas só na imprensa estrangeira, através da Agência Reuters. Certamente o relatório influenciou a rebelião na Hungria, submetida então a uma ditadura férrea de Mátyás Rákosi, naquele ano.
O mesmo Boris Yeltsin – cuja imagem sobre os tanques que bombardearam o prédio do parlamento russo, quando os golpistas que pretenderam derrubar Mikhail Gorbachev foram derrotados, será tão duradoura como a outra em que ele aparece bêbado dançando em um palanque, em sua campanha para presidente da Rússia – também fez o contrário, exumou os corpos da família real, escondidos meticulosamente nos arredores de Ekaterinburg, e os entregou em cerimônia ‘sagrada’ para a Igreja Ortodoxa.
Uma revolução que celebra seu mentor como uma múmia, sendo que esta se mostra mais jovial do que Lenin aparece fotografado em seu leito de morte, não quer perpetuar-se no tempo, desenvolver-se na história; quer, ao contrário, paralisar o tempo, o que não é uma obra humana. Até a Bíblia esteve errada quando atribuiu a Josué o milagre de parar o Sol para que sua batalha terminasse. O Deus de então, conhecido pelos profetas que escreveram os livros, ainda não sabia da concepção geocêntrica de Copérnico, caso contrário autorizaria parar a rotação da Terra...
Hoje a Rússia é governada por um déspota nacionalista que, tendo feito carreira como oficial da KGB, tornou-se protegido de Yeltsin, talvez porque este não tivesse mais a quem recorrer, depois de precipitar o fim da economia socialista estatizada. Yeltsin agiu para desmontar o proclamado comunismo soviético com a mesma urgência e fascinação que, na velha estação Finlândia, Lenin incutiu nos revolucionários.
Foi Vladimir Putin, como prefeito de Leningrado, quem trocou o nome da cidade – após um plebiscito que patrocinou – para o atual, São Petersburgo. Ele também se reconverteu ao credo da Igreja Ortodoxa, à qual dá grande apoio, prestigiando seu patriarca.
Putin invadiu o lado oriental da Ucrânia e tirou-lhe o território da Criméia.
Os métodos autoritários são, pormenorizadamente, velhos conhecidos de Putin, que domina a prática de perseguir opositores até - com certa frequência - matá-los, além de executar ex-agentes de seu país que caíram em desgraça. Ele também faz um “rodízio de autoridade” com Dimitri Medvedev: enquanto um é primeiro-ministro, o outro é presidente, mas o poder sempre se desloca para o cargo que Putin ocupa.
A múmia de Lenin e suas estátuas, de um lado, e a decisiva afirmação de rumos contida nas análises políticas que elaborou, de outro, tudo remete a um tempo passado, mal encoberto, mas que não desperta atualidade de interesse em ser reconhecido.
Situações sobremodo irrisórias foram criadas: quando se realizar a Copa do Mundo em 2018, uma das sedes será Ekaterinburg, onde ainda existem monumentos e efígies artísticos de Lenin. Mas foi também ali que a família real foi executada e enterrada. Qual fantasma assombrará, ou melhor, despertará a curiosa, mas distante e volúvel, observação dos turistas esportivos?
Esse lado irrisório e alienado de ver o passado é o tema de uma comédia cinematográfica interessante e provocativa: “Adeus, Lenin”, do cineasta alemão Wolfgang Becker. Em ironia não há o que lhe exceda.
Mesmo afastada a indisfarçada propaganda contra as ideias socialistas em geral, que se disseminou na Guerra Fria (mas é muito anterior a ela, bastando lembrar a repressão no início do Século XX, de que é exemplo o vergonhoso julgamento-modelo de Nicolas Sacco e Bartolomeo Vanzetti, em Boston, EUA, nos anos ‘20); mesmo sem precisar lembrar que o macarthismo floresceu nos Estados Unidos dos anos ‘50 usando alguns métodos muito parecidos com aqueles que levaram Stalin à gloria no pós-guerra; mesmo assim se haverá de considerar surpreendente que os mais documentados, mais precisos, mais prestigiados por sua autenticidade museus sobre os crimes da União Soviética se encontrem...na Rússia (Museu da História do Gulag, do governo da cidade de Moscou; Museu Virtual Gulag, da prefeitura de São Petersburgo e, o principal deles, que foi prestigiado por muitos, incluindo o físico Andrei Sakharov - Prêmio Nobel da Paz -, o Museu Perm-36, que funciona em antigo campo stalinista de prisioneiros políticos nos arredores da cidade de Kuchino, na região dos Montes Urais). Este último atualmente sofre ataques de Putin, que não deseja dar projeção aos crimes já cometidos na Ucrânia, com a qual hoje luta.
A propaganda que viceja no Ocidente, fazendo proselitismo anticomunista sem estudar o fenômeno político em profundidade, peca de forma capital (aceitando-se aqui duplo sentido a essa palavra) ao apontar as vítimas do regime como sendo aquelas contrárias a ele.
O stalinismo só existiu e ainda existe como prática política porque resultou na concentração de poder que só se impunha por ser brutal e porque isso se fez em nome de uma concepção de história que não tinha nada a ver com ela e, sobretudo, porque também se afirmou ainda mais contra os que professavam, frequentemente com maior profundidade e grau de convicção, a praxis marxista.
Ou seja, a concentração do poder só existiu porque foram dizimados os iguais e com isso ficou eliminada a possibilidade de existirem os diferentes.
Repetir que ‘as revoluções matam seus filhos’ é bastante simplista, tanto quanto fácil de entender, como qualquer slogan. Porém, a revolução russa matou seus filhos, seus pais, os irmãos camaradas mais dedicados, a memória dos que se sacrificaram, a identidade dos corpos dos que desapareceram. Sem esta marca da morte não se pode compreendê-la e superar seus êxitos e fracassos.