CEM ANOS QUE VIVEM EM NÓS

O DIREITO À MEMÓRIA COLETIVA

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22/10/2017 às 09:00

Resumo:


  • A revolução russa de 1917 marcou profundamente o século XX, mas seu legado foi reinterpretado e transformado ao longo dos anos, levando a uma diversidade de desdobramentos políticos e sociais.

  • As revoluções chinesas, tanto a de 1949 quanto as reformas de Deng Xiaoping, assumiram um caminho distinto, resultando em uma China que hoje é o maior beneficiário da globalização, apesar de manter um sistema de governo centralizado e controlador.

  • O conceito de revolução evoluiu e hoje abrange mudanças tecnológicas, científicas, conceituais e normativas, sempre implicando em rupturas e novos começos, mas o processo de globalização atual desafia as teorias revolucionárias clássicas, demandando novas interpretações e análises.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

11. Foi um italiano tísico, dedicado, talentoso, que passou onze anos na prisão, dela saindo para morrer em abril de 1937 e autor de uma obra singular, a maior parte dela escrita no cárcere, que acrescentou muito ao marxismo clássico, talvez porque – como assinalou um biógrafo – “na prisão tinha descoberto que, bem além das classes, havia todo um mundo desconhecido a explorar”.

Antônio Gramsci teve sua formação intelectual identificada com a escola historicista de Benedetto Croce. Guardava, portanto, a matriz idealista, porém poucos foram tão longe na interpretação expansiva do marxismo como ele.

Inicialmente, “Gramsci atribuía à revolução poderes taumatúrgicos: tornava bons os maus e fazia nascer o homem novo. (...) A vitória da revolução comunista na Rússia, onde não era esperada, parecia acentuar o caráter providencial do processo histórico” (“O Prisioneiro – A Vida de Antonio Gramsci”, Aurelio Lepre).

Isto nada tinha de estranho: considerar a “tarefa histórica” e a “missão histórica do proletariado” sob uma concepção redentora, de certa forma decorria de um providencialismo já encontrado no escritor ítalo-francês Joseph de Maistre (1753/1821), que examinou detidamente a revolução francesa.

É verdade que Maistre fez uma clássica abordagem conservadora, mas igualmente singular, pois introduziu o conceito de contra-revolução quando – e isso mostra sua perspicácia – a revolução francesa ainda se desenvolvia.

Segundo ele, se as revoluções decorriam de forças incontroláveis, elas trariam também embutida a contra-revolução, movimento antagonista destinado a restabelecer o equilíbrio rompido. Daí afirmar “a revolução conduz os homens mais do que eles a conduzem” (“Joseph de Maistre e suas Considerações Sobre a França Revolucionária”, artigo de Laurent de Saes, acessível pelo meio eletrônico). A frase recebeu variações como “não são os homens que fazem as revoluções, as revoluções é que se servem dos homens”. Essa refinada constatação foi sofrendo aperfeiçoamentos até ganhar uma conotação francamente marxista, a despeito de sua origem: “não são os revolucionários que fazem as revoluções, são as revoluções que fazem os revolucionários”.

O idealismo e mesmo o providencialismo, portanto, não podem ser opostos como um vício intransponível ou que macule abordagem do jovem filósofo sardo no Século XX. A expansão que o marxismo teve através do pensamento de Gramsci guarda uma densidade renovadora. Diz seu biógrafo citado que “Gramsci estava convencido, assim como Marx o estivera, da primazia do Ocidente: por esse motivo, considerava que somente no centro capitalista do mundo, e não na Rússia, Lenin poderia ter elaborado uma concepção marxista da revolução”.

Pode-se dizer, sem muita chance ao erro, que foi isso o que aconteceu. Porém, a oportunidade histórica para aplicar essa concepção marxista, elaborada em torno do capitalismo do Ocidente, deu-se onde “o elo da corrente era mais fraco”, na expressão de Lenin, ou seja, na senhorial, teológica e arcaica Rússia, que ainda mantinha a servidão camponesa e que se achava então devastada pela I Guerra Mundial.

Ela também era a pátria da mais poderosa literatura de impacto social: uma ficção insurgente e emancipadora. Lá ainda existia um mundo soterrado, o das “Almas Mortas” de Nicolai Gogol, dos códigos de honra que levaram um gênio como Tchaikovsky ao suicídio (que ainda teve de ser disfarçado como infecção pelo cólera) ou da repressão que internou Dostoiévski dois anos em prisão na Sibéria (daí a “Recordação da Casa dos Mortos”), depois de havê-lo submetido a um fuzilamento simulado.

Foi em virtude disso que Gramsci escreveu:

“A determinação, que na Rússia era direta e lançava as massas nas estradas ao assalto revolucionário, na Europa central e ocidental complica-se com todas estas superestruturas políticas criadas pelo maior desenvolvimento do capitalismo, torna mais lenta e mais prudente a ação das massas e, portanto, pede ao partido revolucionário toda uma estratégia e uma tática bem mais complexas e de mais fôlego do que aquelas que os bolcheviques necessitaram no período entre março e novembro de 1917”.

Porém, Gramsci frequenta o presente ensaio menos para se discutir aquelas que são conhecidas como “categorias gramscianas” e mais para acompanhar os descaminhos da sua frase mais conhecida, repetida ad nauseam por bocas imprudentes: “Pessimisme de l’Inteligence, Otimisme de La Volonté.” Trata-se obviamente de uma combinação conceitual idealista que a priori não é analítica e menos ainda dialética.

Esse aforismo foi utilizado pela primeira vez por Gramsci num artigo de abril de 1920 para o jornal “L’Odine Nuovo”, sob o título “Discorso agli Anarchici”, em que criticava a “fraseologia anarquizante”, manifestando-se em favor de “um outro mundo possível”, uma “forma histórica superior e total” (“Otimismo da vontade, pessimismo da razão”, tese de doutorado na UNESP de Roberto Dalla Santa, acesso pela internet).

Curiosamente, “um outro mundo possível” foi o slogan utilizado pelo Forum Social Mundial realizado inicialmente no Brasil. Frase igualmente um pouco mística, uma vez que a lógica indica constatação bem diferente: muitos outros mundos são possíveis, inclusive aqueles que são piores do que onde eu vivo.

Depois, já em 1929, Grasmsci voltou a usar a mesma oração em uma carta a seu irmão Carlo:

“(...) Parece-me que em tais condições [I Guerra], prolongadas durante anos, e com tais experiências psicológicas, o homem deveria alcançar um grau máximo de serenidade estoica, e adquirir a convicção profunda de que ele é, em si mesmo, a fonte das próprias forças morais, de que tudo depende dele, de sua energia, de sua vontade, da férrea consciência dos fins que se propõe, e dos meios que emprega para realizá-los – a ponto de jamais desesperar, e não cair nunca mais naqueles estados de espírito – vulgares e banais – a que se chamam pessimismo e otimismo. Meu estado de espírito sintetiza esses dois sentimentos e os supera: sou pessimista com a inteligência mas um otimista com a vontade”. 

Pois a fortuna crítica dessa frase serve para ilustrar os descaminhos no reconhecimento do que é  e do que deixa de ser marxismo.

Primeiro, o tradutor e principal divulgador das obras e pensamento de Gramsci entre nós, Carlos Nelson Coutinho negou um vínculo entre a afirmativa do filósofo italiano e o escritor francês Romain Rolland, sustentando que não se encontra nada parecido na obra deste último. Imagina Coutinho que a frase “teria saído de um livro de uma colaboradora de Rolland, a alemã Malwida Von Meysemburg, e seria de autoria do historiador suíço Jakob Burckhardt, numa classificação dos gregos como dotados de ‘pessimismo da concepção do mundo e otimismo do temperamento’” (“Dilma Rousseff erra ao citar Gramsci”, artigo de Irapuan Costa Júnior, jornal Opção, edição nº 2008, de 29/12/2013 a 04/01/2014).

Essa elucubração tão própria dos escoslásticos fez Coutinho improvisar... em vão. Na verdade, Romain Rolland havia produzido a resenha de um trabalho de Raymond Lefevbre, a que deu o título de “Le Sacrifice d’Abraham” e publicou no jornal “L’Humanité”, órgão do partido comunista francês. Ali Rolland escreveu “é essa íntima fusão – que, para mim, constitui o homem verdadeiro – de pessimismo da inteligência, que penetra toda ilusão, e otimismo da vontade”.

Parece tão óbvio que Gramsci, como militante e depois dirigente do PCI, partido comunista italiano, tivesse fácil acesso ao jornal francês. Foi dele que extraiu a expressão, que utilizou pelo menos duas vezes, e que acabou marcando ‘defeituosamente’ sua obra.

Por que defeituosamente?

Porque se trata de uma abordagem idealista. Tanto no texto original de Rolland como na carta que Gramsci enviou ao irmão há referências a “valores”, “homem verdadeiro”, “a fonte das próprias forças morais”, “férrea consciência”.

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Apesar do filósofo italiano haver tentado dar uma conotação dialética, a afirmativa apenas revela uma esperança de superação, que ele provavelmente usou porque a realidade política da Itália se mostrava ruim com a ascensão do fascismo, mas que o entendimento disso não deveria levar ao esmorecimento, mas à vontade de lutar.

A obra de Gramsci é tão mais importante para ficar marcada por uma frase emprestada, ainda mais de conteúdo idealista, cujo uso em circunstâncias determinadas nada tem de errado, mas que para definir um pensamento sofisticado é uma redução deformadora.

Não é tudo.

Uma pesquisa sobre o uso adaptado da famosa frase mostra uma surpreendente variação de sentido, mas, para vergonha nossa – ou para vilipendiar o cadáver de Gramsci – a malsinada frase acabou tendo o pior uso por Dilma Rousseff. Na sua boca ficou assim: “O pessimismo dá inteligência. O otimismo dá vantagem”...

A corrupção da linguagem talvez seja o início de toda a corrupção...

A obra de Gramsci continuará a ser estudada, apesar dessas aberrações. Seu conceito de hegemonia é importante, pois a predominância das forças sociais não fica presa nas relações econômicas, mas se expande. O pensamento de Gramsci permitiu ver que não é verdade que o Ocidente não fez sua revolução. Aceitar o contrário significaria atribuir à revolução um sentido de milagre transformador.

Nem todas as revoluções são concentradas e executadas sob comando político. Muitos que guardam o ideário da revolução não se dão conta de que adotam um modelo de ideal que tem raízes platônicas. Esse ideal entra em choque com a realidade e passa a exigir uma imposição para se consolidar. É exatamente isso que ficou conhecido como “socialismo real”.

Maquiavel escreveu: “as armas são justas quando não há nenhuma esperança a não ser nelas”. Isto é definitivo e correto; é a razão primordial para a ruptura. Porém o que eram “as armas” no tempo de Machiavel e o que são hoje? O desprestígio público, por exemplo, atualmente pode ser obtido por armas que não eram sequer pensadas no tempo de Machiavel, assim como a destruição de carreiras, a discriminação ou mesmo a ruína econômica de concorrentes.

Muitos esquecem que as mais caras e preciosas propostas revolucionárias cultivadas em todos os tempos foram escritas à luz de velas e candeeiros. Hoje há – em grau superlativo, como nunca antes - um “saber revolucionário”, proporcionado pela ciência, pelas conquistas tecnológicas e pela cultura, paralelo à atuação política. Gramsci mostrou-se sensível a isso. A percepção de que ele havia expandido o marxismo foi notada até pelo seu antigo camarada de militância no partido socialista, então levado ao poder despótico na Itália. Mussolini registrou em uma de suas obras: “Se Gramsci se encontrasse naqueles dias na União Soviética e não na Itália, teria morrido de chumbo e não de doença”.

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Sobre o autor
Luiz Fernando Cabeda

Desembargador do TRT da 12ª Região, inativo. Fez estágio na Escola Nacional da Magistratura da França, Seção Internacional. Autor de "A Justiça Agoniza" e "A Resistência da Verdade Jurídica".

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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O presente artigo examina criticamente os cem anos da revolução soviética

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