1 INTRODUÇÃO
Na convivência dentro de uma sociedade, os conflitos de interesses passam a ser algo corriqueiro, mormente quando pensamos que cada pessoa possui um contexto de vida diferente da outra. Vale citar, contudo, que, mesmo nos casos em que os envolvidos num litígio possuam uma realidade parecida, ainda assim poderemos ter análises da situação conflituosa de forma antagônica, tendo em vista que cada qual possui aspirações, anseios, sonhos e frustrações diferentes.
Denota-se, pois, a potencialidade de lides a que estamos sujeitos a todo momento.
Pois bem, surgindo esse conflito de interesses seria de bom alvitre que as partes envolvidas chegassem a um denominador comum, por meio de concessões recíprocas, atingindo a desejada paz social. Contudo, na impossibilidade de os interessados atingirem a autocomposição, faz-se necessária a atuação do Estado-Juiz, desde que instado a tanto, por óbvio.
Da análise da narrativa empreendida até o momento, percebe-se que essa situação ocorre diuturnamente, sobretudo num Estado Democrático de Direito. Aliás, muito importante que assim seja, sobretudo quando esses posicionamentos estão amparados na legislação vigente.
Não se olvida, todavia, a delicada condição econômica da população brasileira, em sua grande maioria, cujo fato é notório (UOL, 2017). Em contrapartida, sabe-se que para se movimentar a máquina judiciária há elevados custos para tanto.
Chegamos, assim, a um relevante ponto: como conciliar a necessidade de quem precisa que o Estado solucione o seu conflito, mas não possui capacidade financeira para custear tais gastos? Ademais, caso seja requerida a gratuidade judiciária pela parte em um processo judicial, qual o procedimento a ser adotado pelo juízo? Pode tal pleito ser indeferido de plano pelo magistrado? Há a necessidade de oportunizar à parte a comprovação de que efetivamente faz jus a esse benefício?
Esse é o assunto proposto e que será abordado na sequência, com especial atenção à normatização pelo Código de Processo Civil de 2015.
2 DESENVOLVIMENTO
O clima, quando da elaboração da Constituição Federal vigente (CF/88), era aniquilar o estado de exceção, então vivido, passando a outorgar a mais ampla proteção às pessoas que residem no Brasil ou que por aqui mantenham alguma relação jurídica, procurando atingir a almejada paz social.
É de se destacar, com isso, que no preâmbulo da Constituição da República há expressa menção à solução pacífica das controvérsias para se atingir a harmonia social que fundamenta o Estado Democrático, conforme se verifica de seu teor:
Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.
De se destacar ainda a lição de José Afonso da Silva, que fora trazido à baila pelo Supremo Tribunal Federal, ao tratar do Preâmbulo da nossa Lei Maior:
E, referindo-se, expressamente, ao Preâmbulo da Constituição brasileira de 1988, escolia José Afonso da Silva que "O Estado Democrático de Direito destina-se a assegurar o exercício de determinados valores supremos. ‘Assegurar’, tem, no contexto, função de garantia dogmático-constitucional; não, porém, de garantia dos valores abstratamente considerados, mas do seu ‘exercício’. Este signo desempenha, aí, função pragmática, porque, com o objetivo de ‘assegurar’, tem o efeito imediato de prescrever ao Estado uma ação em favor da efetiva realização dos ditos valores em direção (função diretiva) de destinatários das normas constitucionais que dão a esses valores conteúdo específico" (...). Na esteira destes valores supremos explicitados no Preâmbulo da Constituição brasileira de 1988 é que se afirma, nas normas constitucionais vigentes, o princípio jurídico da solidariedade. [ADI 2.649, rel. min. Cármen Lúcia, j. 8-5-2008, Pleno, DJE de 17-10-2008.] - destaquei
Podemos citar ainda que os fundamentos do nosso país, insertos já no art. 1º da Lei Maior, corroboram os ideais preconizados em seu intróito, sendo reafirmados em seu art. 3º ao deixar explicitados os seus objetivos.
Entretanto, conforme já mencionado, nem sempre as partes conseguem efetuar a autocomposição, sendo necessária, então, a intervenção do Judiciário para a resolução do litígio.
Aliás, o art. 5º, CF/88, ao trazer os direitos individuais, faz questão de deixar expresso que toda ameaça ou lesão a direito poderá ser levado ao Judiciário (inc. XXXV), não podendo a lei dispor em sentido contrário. Trata-se do denominado amplo acesso ao Poder Judiciário.
Já o inciso LXXIV desse mesmo artigo refere-se à assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos.
Cabe destacar, pela relevância, que a expressão “assistência jurídica integral” é ampla, tendo em vista que engloba a gratuidade judiciária (dispensa do recolhimento de custas e despesas atreladas a processos judiciais, tais como custas iniciais, custas recursais, porte de remessa e retorno dos autos, taxa de mandato, cópias, diligência de oficial de justiça, provas periciais, publicações) e outras medidas jurídicas necessárias (quando não estão no âmbito de processos judiciais, por exemplo: emolumentos de cartórios extrajudiciais, consultas jurídicas, processos e procedimentos extrajudiciais, etc.).
Percebe-se, desse modo, que a previsão constitucional é inconteste ao impor ao Estado a obrigatoriedade de suprir assistência jurídica integral, de natureza judicial ou extrajudicial, para quem é hipossuficiente financeiro.
No âmbito constitucional essas são as principais normas a serem destacadas nesta análise. Adentrando no campo legal, devemos destacar que a Lei Federal nº 1.060/50 trata do tema da assistência judiciária e fora recepcionada pela CF/88[1].
Com isso, conquanto a supracitada lei tivesse sido objeto de algumas alterações legislativas, mantém-se vigente até os dias atuais. Porém, com o advento do CPC/2015 fora derrogada, isto é, teve parte de seu teor revogado expressamente (art. 1.072, inc. III, CPC/2015).
No que tange à solicitação de gratuidade judiciária, vale citar que a Lei Federal nº 1.060/50 sofrera alteração pela Lei Federal nº 7.510/86. A partir de então essa vetusta norma estabelece como exigência para a concessão de gratuidade judiciária a apresentação de afirmação (declaração) por quem necessita de tal benesse (art. 4º, caput e § 1º).
Ou seja, com esse documento parte-se da presunção de que a parte faz jus à gratuidade judiciária, com todos os seus consectários. Vale dizer que essa presunção é relativa, pois pode ser derrubada quando houver meios idôneos e suficientes de comprovar a possibilidade de essa parte suportar as custas e despesas processuais.
Destarte, embora se saiba que pode esse pedido ser efetuado em qualquer fase processual, a praxe forense é a apresentação do pleito pelas partes no primeiro momento em que se manifestam nos autos, o que, em regra, dá-se em sede de Petição Inicial ou de Contestação. Em contrapartida, caso deferida essa benesse, a parte contrária pode fazer a Impugnação à Gratuidade Judiciária, que antes do CPC/2015 era autuado como um incidente processual, isto é, apartado; e agora tramita nos mesmos autos.
No que se refere à decisão de concessão ou denegação, importante destacar a previsão do caput, art. 5º, Lei nº 1.060/50, que permite ao magistrado deferir o pedido desse benefício, salvo se houver fundados motivos para indeferí-lo. Ou seja, para todos os efeitos, a declaração ou afirmação da parte de que não possui condições de arcar com as despesas processuais surte efeitos, a não ser que haja sérias razões para afetar a credibilidade do teor desse documento.
Necessário frisar ainda que essa previsão legal é da redação original da norma, não tendo sido revogada expressamente pelo CPC/2015. E, por falar do Código de Processo Civil atual, insta citar que entrara em vigor em 18.03.2016.
Atendo-nos ao tema ora em análise, impende destacar a grande inovação trazida pela previsão do § 2º, art. 99, CPC/2015, que, pela importância, será transcrito:
§ 2º. O juiz somente poderá indeferir o pedido se houver nos autos elementos que evidenciem a falta dos pressupostos legais para a concessão de gratuidade, devendo, antes de indeferir o pedido, determinar à parte a comprovação do preenchimento dos referidos pressupostos.
Da redação dessa norma, constata-se a sua imperatividade pelas expressões “somente” e “devendo”. Ou dito de outra forma, da leitura dessa previsão legal verifica-se que o juiz poderá indeferir o pedido, mas apenas (“somente”) se houver nos autos elementos que evidenciem a falta dos pressupostos legais para a concessão da gratuidade.
Porém, para que assim decida, necessita (“devendo”), antes de indeferir o pedido, determinar à parte a comprovação do preenchimento dos referidos pressupostos.
Infere-se, pois, que é condição para o juiz denegar o pedido de gratuidade judiciária determinar à parte que comprove a necessidade dessa benesse. Ou seja, vislumbrando indícios de que a parte não faz jus a esse benefício, deverá intimá-la para que comprove a sua real impossibilidade financeira de suportar as custas e despesas processuais.
Insistimos, assim, que o juiz está proibido de negar de plano esse pedido, sob pena de error in procedendo, sendo passível de anulabilidade essa sua decisão.
O entendimento doutrinário quanto ao tema, a seguir transcrito, demonstra que o intuito da norma é permitir o contraditório substancial para somente então o juiz estar autorizado a indeferir a gratuidade judiciária (REDONDO, 2016, p. 118):
O caput do art. 98 revela que o pressuposto principal para a concessão do benefício da gratuidade é a insuficiência de recursos da parte para arcar com as despesas processuais. Quando se tratar de pessoa natural, presume-se verdadeira a simples alegação de insuficiência de recursos (§ 3º do art. 99). A contrario sensu, em se tratando de requerimento de gratuidade formulado por pessoa jurídica, pode o juiz exigir comprovação da alegada insuficiência, não sendo suficiente a mera afirmação de hipossuficiência. (...) O § 2º do art. 99 revela que o indeferimento do benefício deve ser a última opção. Caso existam elementos, nos autos, que revelem a falta dos pressupostos para a concessão da gratuidade, deve o juiz, antes de indeferir o pedido, determinar à parte a comprovação do preenchimento dos pressupostos (inclusive por força dos arts. 9º e 10). Somente após o contraditório substancial é que deve o pedido ser eventualmente indeferido. – negritei
Nessa linha seguem também outras lições doutrinárias reforçando a ideia de se instar previamente a parte com o escopo de comprovar nos autos que preenche os requisitos para a concessão desse benefício (Wambier et al, 2016, nota 3 ao art. 99 do atual CPC, p. 207):
(...) Para as pessoas físicas, é suficiente a afirmação de insuficiência de condições financeiras nos autos, afirmação esta que goza de presunção relativa, de conformidade com o §3º do art. 99 em análise. (...) Logo, de acordo com o §2º do art. 99 do NCPC, a decisão que indeferir o benefício de justiça gratuita deverá estar fundamentada em elementos comprobatórios dando conta de que a parte requerente do benefício tem efetivas condições de arcar com os custos e despesas processuais. Vale lembrar que o necessitado não é somente a pessoa miserável propriamente dito, mas também poderá ser beneficiário do benefício de justiça gratuita aquele que demonstrar que os custos do processo prejudicarão o seu sustento ou de sua família. (...) Antes de indeferir o benefício, caberá ao juiz intimar a parte para que comprove o preenchimento dos requisitos, quando os houver, para a concessão da gratuidade. Ainda que representada por advogado particular, a parte fará jus à concessão do benefício. – original sem negrito
Resta inconteste, assim, o rito estabelecido pela norma em cotejo, refutando-se indeferimentos antes de oportunizar à parte essa comprovação, sob pena de nulidade.
2.1 POSIÇÃO DOS TRIBUNAIS
Ante a relevância dos posicionamentos adotados pelas cortes nacionais e com o escopo de confrontar alguns de seus posicionamentos, trazemos à baila o entendimento sufragado pelo Tribunal de Justiça Paulista, evidenciando que, por ora, não há consenso quanto à aplicação do art. 99, § 2º, CPC/2015.
Iniciamos com posição do referido colegiado que cumpre à risca a norma supracitada, vejamos:
AÇÃO MONITÓRIA – GRATUIDADE JUDICIÁRIA REQUERIDA PELOS RÉUS – PESSOAS FÍSICAS E JURÍDICA – INDEFERIMENTO – NULIDADE – A partir a vigência do Código de Processo Civil de 2015, a gratuidade da justiça não pode ser indeferida por ausência de seus pressupostos, sem que antes a parte seja intimada a comprovar sua real situação econômica – Aplicação do art. 99, §2º, in fine, do CPC/2015 – Decisão anulada. Recurso provido. (TJSP; Agravo de Instrumento 2131194-02.2017.8.26.0000; Relator (a): Walter Fonseca; Órgão Julgador: 11ª Câmara de Direito Privado; Foro de Jaú - 2ª Vara Cível; Data do Julgamento: 24/08/2017; Data de Registro: 28/08/2017)
Verifica-se que no julgamento acima, os magistrados paulistas compreenderam o alcance da norma do novel codex.
Todavia, há julgados que discrepam dessa linha raciocínio. Para comprovar a dissonância, transcrevemos a ementa abaixo:
Agravo de instrumento. Ação monitória. Decisão que indeferiu a gratuidade judiciária. Inconformismo. Pessoa jurídica. Necessidade de comprovação da hipossuficiência alegada. Inteligência da Súmula 481 do E. STJ. Hipossuficiência não evidenciada. Pessoas naturais. Inexistência de prova comprovando o estado de miserabilidade dos agravantes. Mera declaração de hipossuficiência que não é o bastante para a concessão do benefício da justiça gratuita. Presença de elementos a elidir a presunção formada. Concessão do benefício corretamente negada. Artigo 99, § 3º, do Código de Processo Civil. Decisão mantida. Recurso não provido.(TJSP; Agravo de Instrumento 2137393-40.2017.8.26.0000; Relator (a): Hélio Nogueira; Órgão Julgador: 22ª Câmara de Direito Privado; Foro de Jaú - 2ª Vara Cível; Data do Julgamento: 14/09/2017; Data de Registro: 15/09/2017)
Na apreciação desse recurso, o relator consignou o seguinte:
(...) No entanto, que assim se admita, é necessária efetiva comprovação imediata na formulação do pedido da impossibilidade de arcar com os encargos processuais, não bastando mera declaração ou argumentos sem valor de convencimento, circundando a própria efetividade da obrigação ora discutida nos autos principais.
Do trecho transcrito acima, observa-se que o relator entende pela necessidade de comprovação imediata nos autos, não sendo suficiente “mera declaração”, conforme suas palavras. Portanto, advoga a tese de que, se a parte não juntou aos autos comprovantes de sua hipossuficiência, ao julgador compete indeferir o pedido, mesmo sem oportunizar àquela a comprovação da necessidade da benesse.
Já numa outra apreciação da Corte Bandeirante, houve a adoção de posição intermediária, isto é, concedeu-se ao requerente de gratuidade judiciária que os encargos processuais sejam quitados ao final da lide:
ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA – Embargos à execução de título extrajudicial - Pessoa jurídica – Súmula 481 do STJ – Prevalência do entendimento desta constante - Novo CPC que também dispõe no mesmo sentido, com exegese mais elástica – Dificuldades financeiras que se evidenciam induvidosamente – Presença igualmente de pessoas naturais como litisconsortes - Considerável valor dado à causa e prazo preclusivo que impõem garantir o direito de acesso às vias jurisdicionais, sem permitir no entanto que deixe o Estado de ser remunerado pelos serviços judiciários - Permissão de pagamento das custas ao final - AGRAVO PARA ESSE FIM PARCIALMENTE PROVIDO (TJSP; Agravo de Instrumento 2133275-21.2017.8.26.0000; Relator (a): Sebastião Flávio; Órgão Julgador: 23ª Câmara de Direito Privado; Foro de Jaú - 4ª Vara Cível; Data do Julgamento: 06/10/2017; Data de Registro: 06/10/2017)
O relator ponderou, todavia, o novo entendimento quanto ao tema trazido pelo CPC/2015:
Em termos mais precisos, é denotada essa regulação do novo Código de Processo Civil um intuito de desvencilhar a outorga em questão de embaraços formais e mesmo de proporcionar a facilitação, já que é bem enfática a asserção acerca da presunção de verdade da alegação de falta de condições para satisfazer os custos do processo quando se tratar de pessoa natural e de somente poder indeferir o pleito se houver elementos nos autos que evidenciem a falta de pressupostos a tanto, e não sem antes de indeferir ordenar à parte interessada que comprove o preenchimento de referidos pressupostos.