Capa da publicação A dúvida jurídica razoável atenua a responsabilidade por ato considerado ilícito
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A dúvida jurídica razoável e a cindibilidade dos efeitos jurídicos.

Hipótese de excludente ou atenuante de responsabilidade civil e de afastamento de efeitos jurídicos desproporcionais em outros ramos do direito

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5. CONCLUSÃO

O estudo desagua na conclusão de que, havendo um cenário de dúvida jurídica razoável, o jurista deverá servir-se da “cindibilidade dos efeitos jurídicos da ilegalidade” para, sob um juízo de proporcionalidade, afastar consequências drásticas e desproporcionais.

O fundamento jurídico dessa ilação são os princípios da legalidade, da segurança jurídica, da confiança, da boa-fé (que é mãe do princípio da confiança) e da democracia (que estabelece que é dever do Estado deixar claras as regras do jogo para os indivíduos por meio de mecanismos democráticos).

Sob essa premissa, o presente estudo conclui que:

a) a responsabilidade civil deve ser excluída ou atenuada a depender do grau de dúvida jurídica razoável, tendo em vista que esta afasta total ou parcialmente um dos requisitos da responsabilidade civil, a “violação de direito” (art. 186 do CC);

b) enquanto não sobrevier decisão do STF acerca do direito de transexual adentrar o banheiro feminino, há dúvida jurídica razoável a excluir a responsabilidade por um juízo de proporcionalidade, mas se admitindo a produção de efeitos menos drásticos, como a imposição de uma obrigação de não fazer em nome da cindibilidade dos efeitos jurídicos;

c) o desmembramento do impeachment em relação à pena de inabilitação para o exercício de função pública por oito anos é uma entre outras interpretações possíveis do art. 52, parágrafo único, da Constituição Federal, de maneira que, havendo dúvida jurídica razoável a favor do Presidente da República na conduta tipificada como crime de responsabilidade, a proporcionalidade autorizaria segregar a sanção do impeachment – que é de interesse institucional na manutenção da governabilidade do País – da punição pessoal de cassação de direitos políticos – que é estritamente pessoal, a exemplo do que sucedeu no ano de 2016;

d) é indevida a aplicação de sanção administrativa contra agente público que tenha praticado ato amparado em dúvida jurídica razoável;

e) mera irregularidade não é improbidade administrativa, especialmente quando há dúvida jurídica razoável;

f) a dúvida jurídica razoável é acolhida em todos os ramos do Direito, com inclusão do Processo Civil, do que dão exemplos a fungibilidade recursal e a modulação dos efeitos da jurisprudência;

g) A modulação dos efeitos de interpretações jurisprudenciais prevista no art. 942, § 2º, do CPC não deve ser aplicada apenas no caso de mudanças de jurisprudências pacificadas, mas também no caso de pacificação de questões inéditas nos Tribunais ao redor do qual pairavam dúvidas jurídicas razoáveis;

h) O jurista deve ter cuidado quando, com base em princípios, for considerar ilícitas condutas de particulares baseadas na interpretação literal do texto de lei e de contratos. Nesses casos, o jurista deve averiguar a existência de eventual cenário de dúvida jurídica razoável para, por meio da cindibilidade dos efeitos jurídicos, afastar sanções desproporcionais, como a indenização por dano moral. Com base nisso, consideramos inadequadas as decisões do STJ que condenou ao pagamento de indenização por danos morais um condômino que se baseou na convenção de condomínio para instalar em uma padaria (STJ invocou a supressio) e uma instituição financeira que se valeu da ação de busca e apreensão diante do inadimplemento de uma prestação de um financiamento feito para a aquisição de um veículo (STJ se valeu da teoria do inadimplemento mínimo).

Em princípio, as conclusões acima dispensariam mudanças legislativas, porque já estariam implícitas no ordenamento. Todavia, considerando que a falta de previsão textual da importância da dúvida jurídica razoável acaba deixando esse exame relevantíssimo de lado em muitos julgamentos feitos por órgãos administrativos e judiciais, convém a realização de duas modificações legislativas envolvendo situações demasiadamente sensíveis.

A primeira é no sentido de deixar claro que o gestor público jamais pode ser responsabilizado administrativamente quando praticar um ato escorado em dúvida jurídica razoável, a qual é presumida quando ele tiver se amparado parecer jurídico emitido por membro da Advocacia Pública. Essa previsão é relevantíssima, pois inúmeros agentes públicos receiam assumir cargos de gestão pelo temor de virem a ser responsabilizados pessoalmente por terem adotado uma interpretação da norma em sentido diverso daquele que, posteriormente, virá a ser adotado por órgãos de controle. Parece-nos que o art. 38 da Lei nº 13.327, de 29 de julho de 2016, é o lugar mais adequado para recepcionar uma previsão legislativa similar.

A segunda alteração legislativa é deixar mencionado no art. 186 do CC que a dúvida jurídica razoável pode excluir ou atenuar a responsabilidade civil.


[2] A lembrança é de Cristiano Carrilho S. de Mereiros (apud OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. Competência para fiscalizar atividade jurídica de membros da advocacia pública federal: TCU ou órgão correcional próprio? Disponível em: http://jus.com.br/artigos/24056/competencia-para-fiscalizar-atividade-juridica-de-membros-da-advocacia-publica-federal-tcu-ou-orgao-correcional-proprio#ixzz3ZU2XJbu5. Publicado em abril de 2013).

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[3] Para evitar aprofundamentos inconvenientes ao objetivo deste texto, limitamo-nos a recordar que há inúmeros discursos envolvendo Direito, Estado, Sociedade e Economia para definir as soluções jurídicas mais adequadas e há diversos debates sobre o comportamento a ser adotado pelo jurista. Para detalhamentos, recomendamos nossa dissertação de mestrado, disponível neste sítio eletrônico: http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/23903/1/2016_CarlosEduardoEliasdeOliveira.pdf.

[4] TARTUCE, Flávio. Direito Civil, 1: Lei de Introdução e Parte Geral. Rio de Janeiro: Forense – São Paulo: Método, 2014, pp. 112-117.

[5] TARTUCE, Flávio. Direito civil, 1: Lei de introdução e parte geral. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2014.

[6] Discurso do Ministro Gilmar Mendes em homenagem ao Ministro Eros Roberto Grau. Em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/homenagemErosGrau.pdf.

[7] Disponível em http://jus.com.br/artigos/24056/competencia-para-fiscalizar-atividade-juridica-de-membros-da-advocacia-publica-federal-tcu-ou-orgao-correcional-proprio#ixzz3ZUCTWdSl

[8] Ressalva-se que o autor estava a criticar a ausência de critérios objetivos no julgamento de conflitos constitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, por conta da adoção do pensamento de Alexy. Todavia – talvez em função da própria natureza fluida do Direito, na esteira da teoria do conhecimento do Miguel Reale –, o aludido autor não oferece uma solução efetivamente objetiva em substituição. Concordamos que a teoria de Alexy não é mais adequada e que há outras melhores, embora estas também conspurcam-se com os inevitáveis vestígios da subjetividade. Disponível em: http://jus.com.br/artigos/21646/alexy-a-brasileira-ou-a-teoria-da-katchanga

[9] Temos que, no âmbito da Administração Pública, a Advocacia Pública foi constitucionalmente eleita para dar a palavra final na interpretação da norma jurídica, de modo que nenhum órgão administrativo de controle interno ou externo teria competência para superar essa orientação. Só o Poder Judiciário poderia derrubar a interpretação dada pela Advocacia Pública no seio da Administração.

[10] Confira-se este julgado:

“A jurisprudência desta Corte Superior de Justiça é no sentido de que não se pode confundir improbidade com simples ilegalidade. A improbidade é a ilegalidade tipificada e qualificada pelo elemento subjetivo da conduta do agente. Assim, para a tipificação das condutas descritas nos artigos 9º e 11 da Lei 8.429/92 é indispensável, para a caracterização de improbidade, que o agente tenha agido dolosamente e, ao menos, culposamente, nas hipóteses do artigo 10.” (STJ, AgRg no REsp 1355136/MG, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 16/04/2015, DJe 23/04/2015)

[11] A lembrança foi de José Vicente Santos de Mendonça (MENDONÇA, José Vicente Santos de. Estatais com poder de policia; por que não?. In: Revista de Dreito Administrativo. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/download/7958/6823.

[12] Essa expressão inglesa se reporta ao homem comum, como lembra Ronald Coase (2016, p. 4). Clapham é um bairro muito popular de Londres, de modo que a referência a um homem em um ônibus nesse local reporta-se a uma situação comum.

[13] Seria o que, mais acima, designamos de ilicitude legítima, assim entendida aquela que, no ambiente de dúvida juridical razoável, se ampara em uma interpretação que veio a ser vencida.

[14] Aí seria o que chamamos de “ilegalidade legítima”, porque escorada em dúvida jurídica razoável.

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Sobre o autor
Carlos Eduardo Elias de Oliveira

Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil, Advogado, ex-Advogado da União e ex-assessor de ministro STJ. Professor de Direito Civil, Notarial e de Registros Públicos na Universidade de Brasília – UnB. Membro da Academia Brasileira de Direito Civil, do Instituto Brasileiro de Direito Contratual, do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário e do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias. A dúvida jurídica razoável e a cindibilidade dos efeitos jurídicos.: Hipótese de excludente ou atenuante de responsabilidade civil e de afastamento de efeitos jurídicos desproporcionais em outros ramos do direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6193, 15 jun. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/61896. Acesso em: 26 abr. 2024.

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