Existe direito à liberdade sem o direito à vida?

As controvérsias mediante a transfusão de sangue em Testemunhas de Jeová

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O presente artigo apresenta o posicionamento dos autores com embasamento no Direito Constitucional, de que a vida é o principal direito fundamental, estando acima de todos os demais direitos.

Resumo: O presente artigo apresenta o posicionamento dos autores com embasamento no Direito Constitucional, de que a vida é o principal direito fundamental, estando acima de todos os demais direitos. No contexto das Testemunhas de Jeová, onde o direito a vida se choca com o direito à liberdade de crença, observa-se que a doutrina religiosa segue de forma contrária aos princípios morais básicos da sociedade e inclusive da liberdade, pois como haverá liberdade de crença se a religião não preservar a vida para que possa exercer tal liberdade? É fato que na esfera jurídica o direito vida é pré-requisito para que possa existir os demais direitos fundamentais.

Palavras-chave: Vida, Liberdade, Transfusão, Sangue, Testemunhas de Jeová

Abstract: This article presents the position of the authors based on Constitutional Law, that life is the main fundamental right, being above all other rights. In the context of Jehovah's Witnesses, where the right to life collides with the right to freedom of belief, it is observed that religious doctrine follows in a manner contrary to the basic moral principles of society and even of freedom, for as there will be freedom of belief if religion does not preserve life so that it can exercise such freedom? It is a fact that in the legal sphere the right to life is a prerequisite for the existence of other fundamental rights.

Keywords: Life, Freedom, Transfusion, Blood, Jehovah's Witnesses

 A transfusão de sangue em Testemunhas de Jeová nos traz uma percepção bem clara de um conflito que está sendo muito repercutido na hodiernidade, de um lado, o direito à vida, que neste contexto entra-se em conflito com o direito à liberdade. Os adeptos a essa pratica religiosa seguem uma doutrina da qual não aceitam a transfusão sanguínea, tendo como base a interpretação de alguns trechos da Bíblia, de acordo com o livro de Gênesis: “Todo animal movente que está vivo pode servi-vos de alimento. Como no caso da vegetação verde, deveras vos dou tudo. Somente a carne com sua alma – seu sangue – não deveis comer” (Gn. 9:3-4), também existe outra passagem semelhante no livro de Levítico onde diz que “Quando qualquer homem da casa de Israel ou alguém residente forasteiro que reside no vosso meio, que comer qualquer espécie de sangue, eu certamente porei minha face contra a alma que comer o sangue, e deveras o deceparei dentre seu povo” (Lv. 17:10).

 Deste modo, a partir dessa perspectiva ponderada a muitos anos e que foram passadas de geração em geração, os fiéis dessa religião não aceitam a transfusão de sangue, o que traz uma grande discussão nos dias de hoje sobre a interpretação subjetiva dos trechos, sendo que eles não trazem nenhuma proibição expressa quanto a transfusão, da mesma maneira, existe também um questionamento quanto a veracidade das informações contidas na Bíblia.

 A partir dessa doutrina das Testemunhas de Jeová não aceitarem a transfusão sanguínea, partimos para o âmbito jurídico quando o direito à liberdade entra em conflito com o direito à vida, onde temos inserido no código penal (art. 146. §3º. I.)

Artigo 146 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda:

Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa.

Aumento de pena:

§ 1º As penas aplicam-se cumulativamente e em dobro, quando, para a execução do crime, se reúnem mais de três pessoas, ou há emprego de armas.

§ 2º Além das penas cominadas, aplicam-se as correspondentes à violência.

§3º Não se compreendem na disposição deste artigo:

I – A intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida;

II - A coação exercida para impedir suicídio.

No art. 5º da Constituição Federal temos:

 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e as suas liturgias;

 Na constituição de 1969, havia além desses ditos, no mesmo artigo, um trecho que exigia a boa-fé e bons costumes. Muitas pessoas acreditam que se houvesse esse trecho na atual Constituição, não haveria espaço para a discussão, sendo que não seria discutível a autonomia do paciente nesse caso, preservando-se os bons costumes.

 A base religiosa que as Testemunhas de Jeová alegam para não permitirem ser transfundidos é obtida em alguns textos contidos na Bíblia. A interpretação desses trechos bíblicos foi feita erroneamente, principalmente por se tratar de acontecimentos e épocas bem diferentes, sem questionar a veracidade da Bíblia, mas ainda assim achando que o assunto dessas passagens seja outro. A partir de pesquisas das quais foram feitas baseando-se no esclarecimento de Testemunhas de Jeová, é notório que, para eles, o sangue é sagrado, é vida, e segundo a Justiça Federal, eles não podem receber transfusão de sangue forçada.

 Uma mulher aficionada a essa religião, recorreu ao TRF da 1° Região, buscando suspender os efeitos de uma decisão que foi proferida pelo Juízo Federal da 18° Vara da Seção Judiciária de Minas Gerais, que teria autorizado a equipe médica do hospital das clínicas a realizar uma transfusão de sangue forçada na paciente, então dificultando o processo. Discernindo a ação em busca da autorização para efetivar o procedimento, foi justificado que a transfusão de sangue seria urgente para que a vida da paciente fosse salva, já que teria sido diagnosticada com Leucemia Linfoblástica Aguda, tendo que recorrer a quimioterapia, e apresentando anemia, os médicos recomendaram a transfusão de sangue.

 Porém, tendo como base suas convicções religiosas, a paciente manifestou em um documento, sua opção por um protocolo médico do qual não utilizasse componentes sanguíneos, já que desde o dia em que foi hospitalizada, eram utilizados tratamentos sem sangue e sem riscos transfusionais. Ao observar o caso, o relator, Kassio Nunes Marques, citou compreensão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso, no qual foi expresso no parecer “Legitimidade da recusa de transfusão de sangue em Testemunhas de Jeová. Dignidade Humana, Liberdade Religiosa e escolhas”. Segundo esse documento, a liberdade de religião é um direito fundamental, na qual deveria ser respeitada pelo Estado e pela sociedade. Quando um paciente se recusa a receber certo tratamento médico em questão de sua crença religiosa, é demonstrada a manifestação da autonomia desse paciente, onde é notória a dignidade da pessoa humana.

 Sendo assim, o magistrado acatou o pedido da paciente, entendendo que existem outras formas de tratamento para o caso, que não implicaria a transfusão de sangue.   A possibilidade de recusa desses procedimentos pelos Testemunhas de Jeová propõe a autorização autêntica, e para que seja legítimo é necessário observar a presença de alguns aspectos dos quais estão ligados a liberdade de escolha, a decisão informada e à permissão do paciente.

De acordo com a advogada Cíntia Helena Zwetsch:

      Impor a uma Testemunha de Jeová a prática de uma conduta que fere seu íntimo é atentar contra sua dignidade, intimidade, inviolabilidade e liberdade de escolha, à autodeterminação do próprio corpo, bem como vai de encontro ao princípio da legalidade (artigo 5°, inciso II, da CF/88).

 Partindo desse pressuposto, é indubitável que a liberdade de escolha possui tamanha relevância nesse caso. Porém, o conflito gerado nessa situação, nos impõe uma dúvida incontestável. E o direito à vida? No qual está situado como o pilar de sustentação da Constituição, pré-requisito à existência e exercício de todos os demais direitos.

 O direito à vida é o mais fundamental de todos os direitos. A constituição protege a vida de forma geral. No estado do Rio Grande do Sul foi encontrada uma jurisprudência (Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul TJ-RS - Apelação Cível : AC 595000373 RS) na qual é atestado a preservação do direito à vida, e o dever do médico, quando se depara com tal situação:

[...] É direito e dever do médico empregar todos os tratamentos, inclusive cirúrgicos, para salvar o paciente, mesmo contra a vontade deste, e de seus familiares e de quem quer que seja, ainda que a oposição seja ditada por motivos religiosos. Importa ao médico e ao hospital é demonstrar que utilizaram a ciência e a técnica apoiadas em séria literatura médica, mesmo que haja divergências quanto ao melhor tratamento, o judiciário não serve para diminuir os riscos da profissão médica ou da atividade hospitalar. Se a transfusão de sangue for tida como imprescindível, conforme sólida literatura médico-científica (não importando naturais divergências) deve ser concretizada, se para salvar a vida do paciente, mesmo contra a vontade das Testemunhas de Jeová, mas desde que haja urgência e perigo iminente de vida (Art. 146, ¶3, inciso I do código penal) [...]

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[...] O direito à vida antecede o direito à liberdade, aqui incluída a liberdade de religião e falácia argumentar com os que morrem pela liberdade, pois, aí se trata de contexto fático totalmente diverso. Não consta que morto possa ser livre ou lutar pela sua liberdade. Há princípios gerais de ética e de direito, que aliás, norteiam a carta das nações unidas, que precisam se sobrepor as especificidades culturais e religiosas; sob pena de se homologarem as maiores brutalidades; entre eles estão os princípios que resguardam os direitos fundamentais relacionados com a vida é a dignidade humana. Religiões devem preservar a vida e não a exterminar.

 Há uma contradição significativa nesse caso, onde o direito à vida se opõe ao direito à liberdade (nesse caso, enfatizando a liberdade de crença e escolha). Pois sem o direito a vida, como teremos o direito a liberdade? Deste modo concluímos que o direito fundamental a vida é o direito pilar de todos os demais direitos fundamentais, devendo ser exercido superiormente e concomitantemente com os demais direitos, neste caso a liberdade.

 Assim chegamos na mesma conclusão que tivemos na jurisprudência (Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul TJ-RS - Apelação Cível: AC 595000373 RS), se esse parecer for seguido, o médico ficará isento das responsabilidades legais por vontades contrárias as do paciente, pois ele observa todas as formas que a lei oferece para o médico preservar a vida do mesmo. Porém é importante analisar a situação do paciente, pois o risco iminente de vida é o que dá liberdade para que o médico possa agir contra a vontade dele sem ser responsabilizado, nesse sentido, caso a transfusão seja realizada contra a vontade de um paciente que não corra risco iminente de vida, o médico poderá ser responsabilizado civilmente, penalmente e administrativamente.

 Concluímos que a vida é nossa base imprescindível e indispensável, e também é direito fundamental previsto em nossa constituição, devendo ser considerada superior a tudo no ambiente em que vivemos e no ambiente jurídico também, pois o direito à vida é pré-requisito para que possa haver os demais direitos.

REFERÊNCIAS

A polêmica da transfusão de sangue em testemunhas de Jeová. DE PAULA, Marcelo Augusto. Disponível em: (http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=8697). Acesso em 26 nov. 2017.

As Testemunhas de Jeová e a transfusão de sangue. OLIVEIRA, Carlos Gustavo de Souza. Disponível em: (https://gustavosouza.jusbrasil.com.br/artigos/111827273/as-testemunhas-de-jeova-e-a-transfusao-de-sangue). Acesso em 26 nov. 2017.

BRASIL. Código Penal. Disponível em: (http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm). Acesso em 26 nov. 2017.

BRASIL. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 1.021/80. Disponível em: (http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/1980/1021_1980.htm). Acesso em 26 nov. 2017.

BRASIL. Constituição Federal. Disponível em: (http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm). Acesso em 26 nov. 2017.

Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul TJ-RS - Apelação Cível: AC 595000373 RS. Disponível em: (https://tj-rs.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/6956801/apelacao-civel-ac-595000373-rs-tjrs). Acesso em 26 nov. 2017.

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Sobre os autores
Camila de Fátima Fonseca Roldão

Estagiária em Direito

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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