5. PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA NÃO CULPABILIDADE/PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA
Conforme já havia dito César Beccaria, em uma das suas obras mais importantes e desafiadoras de todos os tempos que:
Um homem não pode ser chamado de réu antes da sentença do juiz, e a sociedade só lhe poderia retirar a proteção pública após ter decidido que ele violou os pactos por meios dos quais ela foi outorgada. (BECCARIA, 1997,p.69).
É importante destacar que antes mesmo de tal princípio esta de forma expressa na Constituição Federal de 1988, já havia indicativos de sua essência no art.9° da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789). Também estava consubstanciada na Declaração Universal de Direitos Humanos, aprovada pela Assembleia da Organização das Nações Unidas (ONU), em 1948, que dispõe em seu art.11.1:
Todo ser humano acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumidamente inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em seu julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias a sua defesa.13
Artigos análogos são achados na Convenção Europeia para Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais (art.6.2), entre outros.
O Brasil aderiu a essa Declaração Universal dos Direitos do Homem, ainda sob a vigência da Constituição Federal de 1946 (Constituição Democrática).
Vivendo-se ainda em relação a um Código de Processo Penal elaborado na vigência do regime ditatorial, sobre a égide da Constituição polaca de 1937, com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, o Brasil se sujeitou a essa declaração incorporando-a em seu ordenamento jurídico.
Essa ideia de que havendo dúvida em relação à inocência ou culpa do indivíduo ele não deveria ser declarado legalmente culpado, foi acolhida no ordenamento jurídico brasileiro com a entrada em vigor da Constituição de 1988, que passou a estabelecer nos moldes do art.5°,inciso LVII, que: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória ”.14 Nestes termos Renato Brasileiro conceitua em sua obra em relação ao princípio:
Consiste, assim, no direito de não ser declarado culpado senão mediante sentença transitada em julgado, ao término do devido processo legal, em que o acusado tenha se utilizado de todos os meios de prova pertinentes a sua para a sua defesa (ampla defesa) e para a destruição da credibilidade das provas apresentadas pela acusação (contraditório). (BRASILEIRO,2016,p.43).
Perceba-se a negação da escrevedura tratada no referido artigo da Constituição Federal de 1988, que “ninguém será considerado culpado...”, tendo boa parte dos doutrinadores brasileiros ao se referir ao texto Constitucional, como princípio da presunção de não culpabilidade.
Sendo que ao observar detalhadamente o texto do artigo 5°, inciso LVII da Constituição Federal 1988, uma minúcia se sobressai em relação no que diz respeito sobre a incógnita de qual é a extensão de status de não culpado do indivíduo.
Ao observar a Constituição Federal de 1988, ela estabelece que a pessoa não será tida como culpada, enquanto não houver no mínimo o trânsito em julgado de uma sentença penal definitiva, ou seja, o marco temporal da presunção de não culpabilidade se estende até o trânsito em julgado da referida sentença.
Observe que a nossa Constituição Federal de 1988, não conclui antecipadamente pelo status de inocência do indivíduo em seu texto constitucional, mas obsta a tratá-lo como culpado até o trânsito em julgado da sentença condenatória definitiva.
Em sua obra, Rogério Sanches se posiciona sobre a temática:
Na verdade, o princípio insculpido na referida norma garantia é o a presunção de não culpa (ou de não culpabilidade). Uma situação é a de presumir alguém inocente; outra, sensivelmente distinta, é a de impedir a incidência dos efeitos da condenação até o trânsito em julgado da sentença, que é justamente o que a Constituição brasileira garante a todos. (SANCHES,2017,p.104)
Nota-se de forma clara através e por meio de uma interpretação literária do texto constitucional, a terminologia da expressão de “não culpado”, o que para a maioria dos doutrinadores brasileiros a tenham como sinônima da expressão “presunção de inocência”, não havendo qualquer distinção em relação as suas consequências no ordenamento jurídico pátrio.
Entretanto, alguns detalhes chamam a atenção em relação sobre a distinção de terminologia entre as expressões de não culpabilidade e o da presunção de inocência.
5.1. Distinção terminológica entre o princípio da presunção de inocência com o princípio da não culpabilidade
O princípio da presunção de inocência, também chamado por alguns e não poucos doutrinadores brasileiros, como expressão sinônima do princípio da presunção de não culpabilidade, conforme Nestor Távora esclarece em sua obra:
Presunção de inocência, presunção de não culpabilidade e estado de inocência são denominações tratadas como sinônimas pela mais recente doutrina. Não há utilidade prática na distinção. Trata-se de princípio que foi inserido expressamente no ordenamento jurídico brasileiro pela Constituição de 1.988. Antes, já se invocava sua aplicação, por decorrer do sistema, de forma implícita. A CF/1.988 cuidou do estado de inocência de forma ampla, isto é, de modo mais abrangente que a Convenção Americana de Direitos Humanos (ratificada pelo Brasil: Decreto n°678/1.992), na medida em que esta estabeleceu que “toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa” (art.8, 2), enquanto aquela dispôs como limite da presunção de não culpabilidade o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.(Távora, 2016, p.44).
O motivo dessa diferenciação terminológica pode ser explanada sobretudo por conta da heterogeneidade de termos operados pela nossa Constituição Federal de 1988 e pela Convenção Americana de Direito Humanos, conforme declara Renato Brasileiro em sua obra:
A par dessa distinção terminológica, percebe-se que o texto constitucional é mais amplo, na medida em que estende referida presunção até o transito em julgado de sentença penal condenatória, ao passo que a Convenção Americana de Direitos Humanos (Dec.6788/92, art.8° n°2) o faz tão somente até a comprovação legal de culpa. Com efeito, em virtude do texto expresso do Pacto de São José da Costa Rica, poder-se-ia pensar que a presunção de inocência deixaria de ser aplicada antes do trânsito em julgado, desde de que já estivesse comprovada nota de culpa, o que poderia ocorrer, por exemplo, com a prolação de acórdão condenatório no julgamento de um recurso, na medida em que a mesma Convenção Americana também assegura o direito ao duplo grau de jurisdição( art.8, parágrafo segundo, alínea h). (BRASILEIRO,2016,p.41).
Observe-se, que a simetria de outros tratados de Direitos Humanos, o Pacto de São José da Costa Rica faz menção à expressão presunção de inocência, motivo pelo qual ser a expressão mais utilizada.
Contudo, ao analisarmos a nossa Carta Magna de 1988, em parte alguma ela utiliza-se da locução inocente. Que para grande parte da doutrina, que de certo modo estaria correta, ao preferir tratar as expressões como semelhantes fossem, devendo desconsiderar quaisquer tipos de distinção entre as mesmas.
Todavia deve-se estar alerta a uma particularidade que rigorosamente se encontra no tocante da Convenção Americana de Direitos Humanos.
Fica entendível que sua expressão escrita difere de forma quase insignificante da que esta estabelecida no artigo 5°, inciso LVII da Constituição Federal de 1988, porque na Convenção Americana de Direitos Humanos em seu artigo 8° diz que “Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa”.15
Observe que a Convenção Americana de Direitos Humanos, não determina o reconhecimento do trânsito em julgado da sentença definitiva para a comprovação de culpa, ela demonstra explicitamente no referido artigo que “enquanto não for legalmente comprovada sua culpa”, o que de certo modo deixa uma lacuna, porquanto o que se consideraria como comprovação legal da culpa, de forma que a própria Convenção Americana de Direitos Humanos é omissa nesse sentido.
Contudo, por intermédio de uma apreensão sistemática, pode-se chegar ao entendimento de que na Convenção Americana de Direitos Humanos, essa presunção de inocência ela se prolonga até a realização do direito ao duplo grau de jurisdição. De modo que a respectiva Convenção Americana de Direitos Humanos, que proporciona terminantemente o exercício ao duplo grau de jurisdição.
Como se sabe, o reexame da sentença de 1° grau, é o exercício ao duplo grau de jurisdição, e após sendo realizado este, é que estará legalmente ratificado a sua culpa.
Esse seria o remate da problemática apresentada, ou seja, pode se chegar ao entendimento que diante do artigo previsto na Convenção Americana de Direitos Humanos, os marcos de tempo entre a esta com a Constituição Federal de 1988 são diversos, de modo que a Constituição Federal de 1988, exige o trânsito em julgado, porque a própria redação do seu referido artigo 5°, inciso LVII deixa evidente nesse sentido, visto que a Convenção Americana seria enquanto “não for legalmente comprovada a sua culpa”, o que deve ser entendido, como já foi explicado, com o momento em que o indivíduo opera o direito ao duplo grau.
Em relação á temática, o doutrinador Renato Brasileiro é preciso em enfatizar em sua obra:
A Constituição Federal, todavia, é claríssima ao estabelecer que somente o trânsito em julgado de uma sentença condenatória poderá afastar o estado inicial de inocência de que todos gozam. Seu caráter mais amplo deve prevalecer, portanto, sobre o teor da Convenção Americana de Direitos Humanos. De fato, a própria Convenção Americana prevê que os direitos nela estabelecidos não poderão ser interpretados no sentindo de restringir ou limitar a aplicação de normas mais amplas que existam no direito interno dos países signatários (art. 29, b). Em consequência, deverá prevalecer a disposição mais favorável. (BRASILEIRO, 2017, p.43).
Defronte disso, surge a pergunta inevitável na qual seria que, diante desses marcos temporais diversos, seja o da Convenção Americana de Direitos Humanos de um lado, seja o da Constituição Federal de 1988 do outro, (observando claramente que o limite temporal da Constituição Federal seria mais vantajoso para o acusado, razão pela qual se estenderia por tempo maior a sua presunção de não culpabilidade) qual dos dois deveriam prevalecer?
Diante da controversa em questão, leva-se em consideração a aplicação do princípio pro homine, que segundo estabelece que em caso de existirem dicotomia jurídica entre as normas da Convenção Americana de Direitos Humanos com as da Constituição Federal de 1988, deve sempre prevalecer a norma que for mais favorável. Nesse caso, como a Constituição Federal de 1988 ela é mais benéfica para o acusado, sendo que o limite temporal seria mais elástico, deveria a Constituição Federal prevalecer.
Contudo, segundo a decisão prolatada pelo Supremo Tribunal Federal no habeas corpus 126.292 em 17 de fevereiro de 2016, essa orientação foi abandonada, não exigindo mais o trânsito em julgado da sentença para que a pena pudesse ser executada, vindo notoriamente o S.T.F. adotar como limite temporal o da Convenção Americana de Direitos Humanos.
Entretanto, a doutrina claramente se manifesta segundo entendimento que a custódia do réu antes do trânsito em julgado da sentença, somente poderia ocorrer de forma cautelar, e ainda em caráter excepcional. Sendo que pela regra de tratamento decorrente do princípio da presunção de inocência, esboçado pela doutrina, o cidadão somente em casos excepcionais poderia ser levado ao cárcere de forma cautelar, e caso ele vier a cumprir pena antes do seu julgamento definitivo, implicaria na violação constitucional do referido princípio.
5.2. Regras decorrentes do princípio da presunção de inocência
A doutrina aponta duas regras importantes que originam do princípio da presunção de inocência, sendo a primeira tratada como regra probatória e a segunda como regra de tratamento.
Segundo Renato Brasileiro, entende-se por regra probatória:
Por força da regra probatória a parte acusadora tem o ônus de demonstrar a culpabilidade do acusado além de qualquer dúvida razoável, e não este de provar a sua inocência. Em outras palavras, recai exclusivamente sobre a acusação o ônus da prova, incumbindo-lhe demonstrar que o acusado praticou o fato delituoso que lhe foi imputado na peça acusatória. (BRASILEIRO,2017,p.44).
Por força dessa regra, entende-se que recai sobre a acusação, o encargo de demonstrar a culpabilidade do acusado, e não este de provar sua inocência. A pessoa como acusado é presumidamente inocente, cabendo a acusação comprovar a sua culpa.
Sendo exatamente dessa regra probatória que deriva a famoso axioma do in dubio pro réo, que nada mais é do que uma regra de julgamento destinada ao juiz.
O juiz ao final do processo não pode proferir o chamado non liquet, que trata da hipótese deste recusar-se de julgar a lide, porque não saberia como decidir no caso concreto.
Sendo de forma obrigatória por força de lei que, existindo dúvida em relação ao status de inocência do acusado, o magistrado não pode eximir-se de julgar, devendo ser aplicado nesse caso de imprecisão, a regra de tratamento do in dúbio pro réo, que consequentemente desaguaria no reconhecimento da absolvição do acusado, conforme está previsto no Código de Processo Penal:
Art.386. O juiz absolverá o réu, mencionando a causa na parte dispositiva, desde que reconheça:
(...)
VI - existirem circunstâncias que excluam o crime ou isentem o réu de pena (arts.20,21,22,23,26 e § 1°do art 28, todos do Código Penal), ou mesmo se houver fundada dúvida sobre a sua existência.16
Entre a condenação de um possível inocente e a absolvição de um possível culpado, conforme dito doutrinário, seria mais razoável optar pela segunda opção, com a finalidade de evitar um eventual erro judiciário que acarretaria na restrição de liberdade de uma pessoa inocente.
Devendo no entanto ser observado, segunda a nova orientação do S.T.F., a incógnita de até onde iria o limite da aplicação da regra do in dúbio pro réo?
Que segundo entendimento já firmado pelo Supremo Tribunal Federal, o limite se estenderia, até o momento em que houver o exercício do direito do duplo grau de jurisdição, conforme exposto no presente trabalho.
Entretanto, além da regra probatória, existe a regra de tratamento da qual origina-se também do princípio da presunção de inocência.
Conforme esclarece Renato Brasileiro, deve-se entender por regra de tratamento:
A privação cautelar da liberdade, sempre qualificada pela nota da excepcionalidade, somente se justifica em hipóteses estritas, ou seja, a regra é responder o processo penal em liberdade, a exceção é estar preso no curso do processo. São manifestações claras desta regra de tratamento a vedação de prisões automáticas ou obrigatórias e a impossibilidade de execução provisória ou antecipada da sanção penal. ((BRASILEIRO,2017,p.45).
Esta seria a segunda regra que deriva do princípio da presunção de inocência, ou seja, por conta dessa regra, o acusado deve responder ao processo em liberdade.
Se o indivíduo é considerado como não culpado, não se pode estabelecer a prisão como regra para a persecução penal. Todavia, essa regra de liberdade durante a persecução penal, não seria uma regra absoluta, sendo que a própria Constituição Federal de 1988 estabelece no seu artigo 5°,LXI, quando trata da prisão, seja no caso de flagrância ou diante de autorização judicial fundamentada, a possibilidade do indivíduo ser levado ao cárcere ainda que durante o trâmite processual.
Com todas essas regras derivadas do princípio da presunção de inocência, fomentou-se o debate tanto por parte da doutrina quanto por parte da jurisprudência, em relação a questão, se a execução provisória da pena se adequaria a tal princípio, ou se trataria de uma violação gritante, que poderia até ser percebido através dos olhos de um leigo.
De acordo com o novo posicionamento do S.T.F, a execução provisória da pena se adéqua perfeitamente às exigências do princípio da presunção de inocência. Ao tratar da matéria fechou-se o S.T.F. em torno da questão da execução provisória da pena.
Finalmente, no tópico subsequente enfrentar-se-à a questão da execução provisória da pena e o seu paralelo ao princípio da presunção de inocência conforme se vê.