INTRODUÇÃO
É sabido que na relação de emprego existem dois polos, o empregador e os empregados. Enquanto o primeiro organiza, controla e dirige a prestação dos serviços, o último exerce suas atividades com subordinação, em troca de remuneração. Tendo em vista a posição de inferioridade do trabalhador na mencionada relação jurídica, marcada pelo desequilíbrio, é necessário que sejam estabelecidos limites ao poder empregatício, de forma que sejam respeitados os direitos inerentes ao sujeito cuja força de trabalho a ele está vinculada.
Desse modo, o exercício desse poder deve se dar com obediência aos critérios de razoabilidade e respeito aos direitos fundamentais dos empregados, especialmente os inscritos na Constituição Federal de 1988, que é considerada um marco no reconhecimento e na tutela dos direitos da personalidade do ser humano no Brasil, bem como no Direito internacional, especialmente no que toca às atribuições da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Suponha-se, então, uma situação em que um trabalhador faz horas extras com frequência por exigência da empresa. Por isso, chega em sua casa mais tarde e encontra os filhos dormindo. No dia seguinte, quando sai para trabalhar, as crianças ainda estão dormindo. No intervalo para refeição, quando tem, não sobra tempo para almoçar em casa. Assim, ele passa meses sem encontrar a família. Essa, dentre outras diversas situações, é a rotina típica de um profissional que vive para trabalhar ao invés de trabalhar para viver. O que acontece, então, quando a sobrecarga de trabalho interfere na vida particular do empregado, afetando seus projetos e relações interpessoais?
Quando se torna inviável para o trabalhador conciliar a vida pessoal com a profissional por culpa do empregador, surgem os transtornos que esvaziam a existência humana e fazem desaparecer o sentido da vida. Em outras palavras, surge o dano existencial.
O reconhecimento do dano existencial no âmbito trabalhista é recente, necessitando ainda de um estudo mais aprofundado sobre o assunto, principalmente na responsabilização do empregador, para que só então possa se dar efetividade aos direitos fundamentais previstos na Constituição Federal de 1988.
O objetivo desse trabalho é conceituar o dano existencial, diferenciando-o de outras espécies de danos, e analisar sua ocorrência nas relações de trabalho e a concessão de uma possível indenização.
Posto isso, abordar-se-á, no primeiro capítulo, como base para o desenvolvimento do tema principal, as características da relação empregatícia, demonstrando o risco de ocorrência do dano existencial devido ao poder empregatício e a importância de se respeitar o princípio da dignidade da pessoa humana para evitar lesões de caráter existencial.
O conceito do dano existencial é abordado no segundo capítulo, bem como sua origem, a qual se deu no Direito Italiano. Faz-se, também, uma diferenciação do dano existencial e outras espécies de danos, pois como o seu conceito é recente, é preciso que seja definido cada dano extrapatrimonial passível de ser confundido com o dano em estudo. Ao fim, inserindo o dano existencial no direito do trabalho, é feita uma análise acerca das causas que possuem potencial relativamente alto para a geração desse tipo de lesão aos empregados.
Ao final, no terceiro capítulo, é feita uma análise da responsabilidade do empregador, quais as possíveis soluções para a minimização dos eventos danosos nessa seara e como a jurisprudência trabalhista tem abordado o assunto hodiernamente.
Por fim, faz-se notar o método de abordagem adotado no presente trabalho. O método dedutivo foi o escolhido, pois parte de uma análise de estudo bibliográfico e jurisprudencial, observando os dados obtidos, para elucidar o conceito de dano existencial e sua colocação no direito trabalhista.
1 - DA RELAÇÃO DE EMPREGO
1.1 Características da Relação de Emprego
Preliminarmente, é relevante salientar quais atributos caracterizam a relação empregatícia, a fim de que se tenha um conhecimento seguro para o desenvolvimento do tema em torno desse liame. Para tanto, é necessário que se delimite a partir de que ponto e por quais motivos a relação de emprego se distingue de uma relação de trabalho.
A Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) elenca, no caput do seu artigo 3º, os elementos pelos quais pode ser considerado empregado, que deve ser “toda pessoa física que prestar serviço de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário”.
Além disso, em seu artigo 2º, informa quem pode ser considerado empregador, dispondo que seja “a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço”.
Das normas acima colacionadas, extrai-se que os elementos que caracterizam uma relação de emprego são os seguintes: a) que o trabalho seja prestado por pessoa física; b) com pessoalidade; c) de forma habitual ou não eventual; d) havendo subordinação do prestador do serviço com relação ao tomador; e) e com onerosidade para esse último.
Conforme afirma Maurício Godinho Delgado (2012, p. 284), esses são elementos fático-jurídicos, já que pertencem ao mundo dos fatos, e o direito, portanto, trata apenas de reconhecê-los e emprestar-lhes efeitos compatíveis com sua relevância sociojurídica. Desse modo, quando conjugados esses elementos citados, está-se diante, então, de uma relação empregatícia.
O primeiro pressuposto é a prestação do trabalho por pessoa física. Para que exista uma relação de emprego é necessário que o serviço seja prestado por uma pessoa física, concernindo a ela o amparo que é dado pelas normas trabalhistas. A realização de serviços por pessoa jurídica impede o reconhecimento de uma relação de emprego. No entanto, pode haver situações de fraude em se constituir uma pessoa jurídica para realizar serviços, com objetivo de burlar a legislação trabalhista. Nesse caso poderá ser desconstituída tal situação, por meio de ação judicial, para que se reconheça que de fato é uma relação de emprego. Em outra face, o empregador pode ser pessoa física ou jurídica, sem prejuízo da caracterização do liame empregatício.
Relacionado ao elemento fático-jurídico apontado acima, está o segundo pressuposto da relação de emprego, a pessoalidade. Nesse ponto, destaca-se a obrigatoriedade de o trabalho ser prestado por uma pessoa específica, a qual não pode ser substituída dentro do mesmo vínculo, já que ele é intuitu personae no que toca ao prestador dos serviços.
Por outro lado, no que diz respeito ao empregador, não existe essa característica, prevalecendo a sua despersonalização, pois em regra este será pessoa jurídica, podendo ter alterações subjetivas que em nada prejudicará a relação de emprego. Incide mais claramente nos casos de sucessão trabalhista. Há alguns casos, contudo, como a morte de empregadores pessoas físicas, em que a alteração pode prejudicar a relação de emprego, levando a sua extinção.
O trabalho tem, ainda, que ser prestado de forma habitual ou não eventual. O eventual é o esporádico, momentâneo. Pode-se dizer que o eventual é aquilo que não é contínuo, habitual e permanente. Ao se analisar uma relação de emprego, deve ter presente a continuidade, habitualidade e permanência deste vínculo que liga o empregado ao empregador, mesmo no caso de trabalhos determinados ou por obra certa.
Outro preceito para a caracterização da relação de emprego é a onerosidade. Do trabalho prestado pelo empregado, há de existir uma retribuição financeira do empregador. Pode-se afirmar que a onerosidade está relacionada a uma contraprestação de fundo econômico, cuja retribuição pode ser em dinheiro ou mista. Neste caso, composta por dinheiro, vales-alimentação, vales–transporte ou auxílios diversos (moradia, alimentação), todos de conteúdo econômico.
O último pressuposto da relação empregatícia é a subordinação. Tal preceito se caracteriza na relação através da qual o empregado cumpre ordens e determinações do empregador. Não se confunde com subordinação econômica, com subordinação em relação a sua pessoa, ou com subordinação técnica. A relação de subordinação diz estritamente a realização das tarefas vinculadas com os serviços. Deste modo o empregado fica subordinado às ordens do empregador, bem como sujeito a sua supervisão nos trabalhos efetuados.
Vinculado à subordinação do empregado nesse liame, está um poder atribuído ao empregador chamado de poder diretivo, pelo qual é permitido a ele estabelecer o direcionamento da sua estrutura de trabalho. No entanto, o abuso na utilização desse poder é um grande foco causador de danos extrapatrimoniais, tema que será analisado no tópico subsequente.
Por fim, vale ressaltar a importância do princípio da alteridade. Não se trata de um requisito essencial nas relações de emprego, mas de uma premissa que estabelece que os riscos da atividade empregatícia correm por conta e risco do empregador, não sendo o empregado responsável pelo resultado do empreendimento. Independente de o empregador ter lucro ou prejuízo, o salário do empregado será sempre devido ao final do mês.
1.2Risco de Dano em Face do Poder Empregatício
Na relação existente entre empregador e seus empregados, ao primeiro são conferidos poderes decorrentes desse liame, conhecido como Poder Empregatício ou Poder Diretivo do Empregador. O Poder Empregatício é aquele inerente às atividades exercidas, no comando da empresa, com objetivo de regular o andamento dentro do espaço de trabalho.
Segundo Sérgio Pinto Martins (2013, p. 229) “Compreende o Poder de Direção não só o de organizar suas atividades, como também de controlar e disciplinar o trabalho, de acordo com os fins do empreendimento”.
O Poder de Organização, que é manifestamente o primeiro a ser exercido, refere-se aquele que o empregador define como serão exercidas as atividades dos empregados no desenvolver do trabalho, bem como funções e horários de trabalho.
O Poder de Controle possibilita ao empregador a fiscalização profissional dos empregados a ele subordinado, podendo ser exemplificado pelo cartão de ponto, revista pessoal e circuito interno de televisão.
Já o Poder Disciplinar é o que permite a imposição de sanções disciplinares aos empregados quando assim for justificadamente necessário, como por exemplo, a suspensão, com prazo máximo de 30 dias, previsto no art. 474 da CLT.
Apesar de o poder empregatício ser conferido ao empregador, ele não é absoluto, devendo ser aplicado de forma moderada, observando os Princípios Constitucionais da Proporcionalidade e Razoabilidade, que vem a ser a adequação dos meios aos fins, ou seja, o modo de aplicação de tal poder deve visar somente o ajustamento das condutas no exercício das atividades da empresa. A Constituição Federal de 1988 o limita, tutelando os Direitos Personalíssimos do empregado:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
(...) III- "A dignidade da pessoa humana".
Art. 5º (...) X- "São invioláveis a intimidade, vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurando o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação".
Sérgio Pinto Martins pontua que:
O poder de direção não é um poder absoluto. Só por ser um direito, tem limites. Os limites externos são: Constituição, Leis, Norma Coletiva, Contratos. Os limites internos são: boa-fé objetiva e exercício regular do direito. (MARTINS, 2013, p. 230)
O Poder Empregatício é necessário para o perfeito controle da atividade empresarial, contudo, como visto, a sua aplicação imoderada, exagerada e sem observância dos limites legais, pode ser fato gerador de dano.
Assim, o empregador que extrapola os limites da razoabilidade ao exercer o poder que lhe é conferido, atingindo, por consequência, a esfera personalíssima do trabalhador, ofende comandos de status constitucional e pode causar danos de natureza eminentemente moral e existencial, os quais tem o dever de reparar.
A título de exemplo, pode ocorrer de o empregador organizar a força produtiva de forma a causar danos aos empregados, com a determinação de jornadas exaustivas e com tempo exíguo para intervalos, a despeito da tutela normativa da integridade física e psíquica do obreiro.
Já como exemplo que pode ser citado de abuso do poder disciplinar, destaca-se o tratamento vexatório do empregado por superior hierárquico em frente a seus colegas, como nas cobranças exacerbadas de metas estipuladas pela empresa, situação na qual se configura uma ofensa clara à dignidade humana e que deve, assim, ser refratada pelo direito.
Diante das argumentações e dos posicionamentos doutrinários apresentados, conclui-se que o empregador necessita do Poder Diretivo no desenvolver de suas atividades empresariais, que por sua vez, o empregado está sujeito a obedecer às normas impostas pelo empregador, pois são normas advindas do contrato de trabalho. No entanto, esse poder não é absoluto, e por isso, não deve ser usado de forma abusiva, exagerada e desrespeitosa, ultrapassando os limites legais e morais, sob risco de causar dano a honra, dignidade e existência do empregado. O mau uso desse poder, pode vir a ser considerado ato ilícito, passível de reparação ao ofendido. Essa reparação é de caráter compensatório e punitivo, porém, o intuito maior é de evitar que tais práticas abusivas, sejam reincidentes pelo empregador.
Dignidade Humana nas Relações de Emprego
A Constituição Federal de 1988 proclama, em seu artigo 1ª. Inciso III, a dignidade da pessoa humana, como fundamento da República e do Estado Democrático de Direito nela constituído. Diz Luís Roberto Barroso que esse princípio tem destaque em todas as relações, públicas e privadas, e “se tornou o centro axiológico da concepção de Estado Democrático de Direito e de uma ordem mundial idealmente pautada pelos direitos fundamentais”. (BARROSO P. 35).
Além disso, o caput do artigo 170 da Carta Magna consagra como um dos fundamentos da ordem econômica a valorização do trabalho humano, com o fim de assegurar a todos uma existência digna, conforme os ditames da justiça social. Pode-se inferir, portanto, que a dignidade humana é alvo de proteção especial da Lei Maior e se consagra como um princípio balizador do direito brasileiro.
Ao abordar o tema, Yara Maria Pereira Gurgel discorre acerca da dignidade da pessoa humana caracterizando-a nos termos a seguir delineados:
A dignidade humana, como base ética da sociedade moderna, é valor absoluto e qualidade inerente a todo ser humano; além de ser destituída de qualquer fator moral, religioso ou econômico. Não há espaço para substituição, relativização ou valoração do ser humano. Também não há que se pensar em dimensão quantitativa ou qualitativa da dignidade. Todos os seres humanos possuem a mesma condição humana e, portanto, igual valor absoluto – possuem idêntica dignidade e direito à proteção jurídica. (GURGEL, 2010, p. 31)
Portanto, as normas do direito do trabalho deverão sempre estar em harmonia com a proteção e o respeito à dignidade do trabalhador.
A evolução dos modos de trabalho ao longo da história mostra que, antigamente, não havia qualquer respeito pela dignidade do empregado, cuja força de trabalho era empenhada de maneira desumana. A escravidão, que predominou durante séculos e deixou marcas latentes na sociedade até os dias de hoje, reduzia o ser humano à condição de objeto, de mercadoria, no que talvez tenha sido a forma mais repulsiva com que os indivíduos já se relacionaram.
Com a revolução industrial, surgida na Inglaterra no século XVIII, ainda não se entendia que trabalhador deveria ter uma esfera de dignidade que limitasse a atuação e o poder diretivo de seu empregador. Jornadas exaustivas que chegavam a dezesseis horas, sem a possibilidade de fruir de qualquer período de descanso ou de desfrutar de férias, caracterizavam a relação empregatícia de então, que resultavam, por consequência lógica, em inúmeros acidentes de trabalho.
Após a Primeira Guerra Mundial, foi criada a Organização Internacional do Trabalho (OIT), como parte do Tratado de Versalhes. A clara preocupação humanitária, a partir dos ideais de justiça social, foi considerada como primordial para que se mantivesse a paz universal e permanente. Como bem destaca Maria Áurea Baroni Cecato, o preâmbulo da Constituição da OIT já explicitava as motivações que resultaram na criação do órgão, tal qual se observa no trecho abaixo transcrito:
(...) Considerando que existem condições de trabalho que implicam, para grande número de indivíduos, miséria e privações, e que o descontentamento que daí decorre põe em perigo a paz e a harmonia universais, e considerando que é urgente melhorar essas condições no que se refere, por exemplo, à regulamentação das horas de trabalho, à fixação de uma duração máxima do dia e da semana de trabalho, ao recrutamento da mão-de-obra, à luta contra o desemprego, à garantia de um salário que assegure condições de existência convenientes, (...) (Online)
Desse modo, conclui-se nitidamente que a relação empregatícia abrange a tutela dos direitos relativos à dignidade do trabalhador, devendo levar a ele a possibilidade de um trabalho decente, ou seja, com condições de promover uma existência digna, com liberdade e segurança, atingindo não apenas as questões salariais e de jornada, como também a esfera pessoal daquele, sob o manto de proteção da dignidade humana.
Portanto, o empregador que submete o seu empregado a condições penosas no ambiente de trabalho pode e deve ser responsabilizado, como medida de ressarcimento e até mesmo coibição para evitar novas práticas.