6 ALIMENTOS DEVIDOS AO EX-CÔNJUGE E AO EX-COMPANHEIRO
Os alimentos devidos ao ex-cônjuge e ao ex-companheiro fundam-se no dever de mútua assistência, que sobrevive à dissolução dos vínculos afetivos próprios a essas relações. Amparam-se nos princípios da solidariedade (art. 3º, inc. I, da CRFB/1988) e da dignidade humana (art. 1º, inc. III, da CRFB/1988), estando previstos no art. 1694 do Código Civil. Segundo Maria Berenice Dias (2016), a obrigação alimentar, em tais casos, ostenta evidente caráter indenizatório, pautado em uma ideia de responsabilidade objetiva, postos os danos causados pelo rompimento da sociedade conjugal:
Apesar de a lei não admitir tal expressamente, não se pode chegar a conclusão diversa. A pensão tem um nítido caráter de indenização, dentro de uma visão objetiva da responsabilidade civil, pela qual o dano deve ser indenizado independentemente da culpa, bastando estar presente o nexo causal. (DIAS, 2016, p. 960).
Não mais se admite a discussão do elemento subjetivo culpa na fixação dos alimentos. Com o advento da Emenda Constitucional nº 66/2010, descabe invocar a culpa como motivo determinante para o dever de prestar alimentos, ou mesmo como justificativa para sua redução, restando, pois, revogada a regra que estabelece a conversão dos alimentos civis em naturais, caso apurada a culpa do ex-cônjuge ou do ex-companheiro pela situação de necessidade. Nesse sentido, o magistério de Rolf Madaleno:
Com a evolução da doutrina e pela intervenção de contundente parcela da jurisprudência brasileira a pesquisa da culpa conjugal passou a ceder lugar para a denúncia do mero fracasso matrimonial, e, embora o vigente Código Civil não tivesse alcançado este grau de civilidade e de respeito integral à dignidade da pessoa, foram justamente a doutrina e a jurisprudência brasileiras que encontraram uma maneira de suavizar o impacto da discussão da culpa pelo fim do casamento ao afastarem sua incidência dos processos litigiosos de separação e objetivarem o direito alimentar em sua integralidade diante da evidência de dependência financeira. (MADALENO, 2013, p. 970).
É cada vez maior a redução no número de casos nos quais foi fixada a prestação alimentícia em favor do ex-cônjuge ou do ex-companheiro. Isso porque, diante da persecução pela igualdade entre homens e mulheres, tornam-se menos frequentes os casos nos quais um dos consortes é economicamente dependente do outro, necessitando de seu provimento para sobreviver (MADALENO, 2013).
Descabe desconsiderar, no entanto, que o modelo patriarcal ainda prevalece em muitas famílias brasileiras, de molde que tentar implantar a fórceps uma concepção aritmética da igualdade entre homens e mulheres somente contribui para aprofundar o fosso social existente entre os gêneros, reduzindo à penúria aquele que se privou do exercício de atividades laborais para se dedicar integralmente à lida doméstica, muitas vezes por força de determinação autoritária e machista do varão. A esse respeito, adverte Sérgio Gischkow Pereira:
Não se pode descuidar que ainda existe uma parcela de famílias que preserva o viés patriarcal. As mulheres, muitas vezes, são impedidas de trabalhar e, quando do fim do casamento, não têm como prover a própria subsistência. Muitas renunciam aos alimentos porque espancadas, porque ameaçadas de morte, porque ludibriadas, ou todos esses fatores conjugados, e, muitas vezes, não há como provar esses eventos. Os juízes e tribunais, em geral, sabem disso, mas nem sempre o doutrinador o sabe. (PEREIRA, 2004, p. 87).
Conforme a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ), a fixação de alimentos entre cônjuges e companheiros deve observar termo certo, possuindo caráter transitório, subsistente até que o alimentando logre se inserir no mercado de trabalho, de sorte a prover suas necessidades. Ressalva a Corte, porém, que os alimentos tornar-se-ão perenes, uma vez presente a impossibilidade fática de que tal inserção se perfaça, seja pela incapacidade do ex-cônjuge ou ex-companheiro, ou pelo decurso de considerável lapso temporal de afastamento das atividades laborais, a tornar pouco provável que se consiga a reinserção no mercado de trabalho. Veja-se:
DIREITO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. FAMÍLIA. AÇÃO DE EXONERAÇÃO DE ALIMENTOS. ACORDO PARA PAGAMENTO DE PENSÃO. EX-CÔNJUGE. MANUTENÇÃO DA SITUAÇÃO FINANCEIRA DAS PARTES. TEMPORARIEDADE. POSSIBILIDADE DE EXONERAÇÃO. RECURSO ADESIVO. INADEQUAÇÃO. ARTIGOS ANALISADOS: ARTS. 15 DA LEI 5.578/68 E ARTS. 1.694 e 1.699 do Código Civil.
1. Ação de exoneração de alimentos, ajuizada em 17.03.2005. Recurso especial concluso ao Gabinete em 03.05.2013.
2. Discussão relativa à possibilidade de exoneração de alimentos quando ausente qualquer alteração na situação financeira das partes.
3. Os alimentos devidos entre ex-cônjuges serão fixados com termo certo, a depender das circunstâncias fáticas próprias da hipótese sob discussão, assegurando-se, ao alimentado, tempo hábil para sua inserção, recolocação ou progressão no mercado de trabalho, que lhe possibilite manter pelas próprias forças, status social similar ao período do relacionamento. 4. Serão, no entanto, perenes, nas excepcionais circunstâncias de incapacidade laboral permanente ou, ainda, quando se constatar, a impossibilidade prática de inserção no mercado de trabalho.
5. Rompidos os laços afetivos e a busca comum pela concretização de sonhos e resolvida a questão relativa à guarda e manutenção da prole - quando houver -, deve ficar entre o antigo casal o respeito mútuo e a consciência de que remanesce, como efeito residual do relacionamento havido, a possibilidade de serem pleiteados alimentos, em caso de necessidade, esta, frise-se, lida sob a ótica da efetiva necessidade.
6. Não tendo os alimentos anteriormente fixados, lastro na incapacidade física duradoura para o labor ou, ainda, na impossibilidade prática de inserção no mercado de trabalho, enquadra-se na condição de alimentos temporários, fixados para que seja garantido ao ex-cônjuge condições e tempo razoáveis para superar o desemprego ou o subemprego.
7. Trata-se da plena absorção do conceito de excepcionalidade dos alimentos devidos entre ex-cônjuges, que repudia a anacrônica tese de que o alimentado possa quedar-se inerte - quando tenha capacidade laboral - e deixar ao alimentante a perene obrigação de sustentá- lo.
8. Se os alimentos devidos a ex-cônjuge não forem fixados por termo certo, o pedido de desoneração total, ou parcial, poderá dispensar a existência de variação no binômio necessidade/possibilidade, quando demonstrado o pagamento de pensão por lapso temporal suficiente para que o alimentado reverta a condição desfavorável que detinha, no momento da fixação desses alimentos.
9. Contra a decisão que recebe o recurso de apelação no efeito suspensivo, é cabível agravo de instrumento (art. 522 do CPC) e não recurso especial. Não tendo sido interposto o referido recurso, a questão está preclusa.
10. Recurso especial desprovido.
11. Recurso adesivo não conhecido. (BRASIL, 2014b).
Sobreleva observar, contudo, que ainda são muito frequentes os casos em que o ex-cônjuge ou ex-companheiro, por ter passado longo período afastado do mercado de trabalho, não possui condições efetivas de se reintegrar com dignidade ao universo laboral. Semelhante preocupação é expendida por Maria Berenice Dias:
Não se pode olvidar a dificuldade de acesso ao competitivo mercado de trabalho, principalmente de quem permaneceu dele afastado por alguns anos. Essa ainda é a realidade: as mulheres, com o casamento ou ao estabelecerem união estável (geralmente por exigência do varão), dedicam-se exclusivamente às tarefas domésticas e à criação dos filhos. Não há como fixar um prazo para que consigam sobreviver por conta própria. Às vezes, a fixação do termo final é condicionada ao término dos estudos ou à conquista de trabalho. Estabelecido a favor do ex-cônjuge encargo alimentar por prazo determinado, para inserir-se no mercado de trabalho, caso tal não ocorra, possível é prorrogar a obrigação por prazo indeterminado, principalmente se, em face da idade, ele não consegue meios para prover sua subsistência. (DIAS, 2016, p. 988).
Isso se mostra frequente em casamentos ou uniões estáveis dissolvidos após longo período de duração, nos quais, observada a lógica patriarcal tradicional, a mulher, já próxima da fase idosa, não dispõe das menores condições de recuperar as condições financeiras autônomas para sua mantença. Nesses casos, há de imperar o princípio da dignidade da pessoa humana, bem como de se compulsar a dimensão concreta da aplicação normativa, franqueando-se a fruição de alimentos enquanto for possível sua prestação pelo alimentante, isto é, com termo incerto.
7 PRESSUPOSTOS PARA A FIXAÇÃO DA OBRIGAÇÃO ALIMENTAR
Segundo preceitua o art. 1.965 do CC, “são devidos os alimentos quando quem os pretende não tem bens suficientes, nem pode prover, pelo seu trabalho, a própria mantença, e aquele, de quem se reclamam, pode fornecê-los, sem desfalque do necessário ao seu sustento”. Impende recorrer às lições de Clóvis Beviláqua sobre a temática:
Aquele que possui bens suficientes ou que está em condições de prover a sua subsistência por seu trabalho não tem direito de viver à custa dos outros. O instituto dos alimentos foi criado para socorrer os necessitados, e não para fomentar ociosidade ou estimular o parasitismo. Eles se dão pietatis causa, ad necessitatem, não ad utilitatem, e, muito menos, ad voluptatem. Aquele que apenas tem com que se manter não pode ser obrigado a sustentar outrem. Há obrigações alimentares mais imperiosas umas que as outras. Assim, se do sustento das pessoas, que o parente já tem ao seu cargo, não restam sobras, não se lhe pode exigir que abra mais um espaço à sua parca mesa, em detrimento dos que já se sentam em torno dela. (BEVILÁQUA, 1905, p. 304).
Deste modo, são pressupostos para a obrigação de prestar alimentos: o vínculo de parentesco, ou conjugal, ou convivencial; a necessidade e a incapacidade do alimentando de sustentar a si próprio; e a possibilidade do alimentante de fornecer alimentos (CAHALI, 2009).
No que concerne ao critério da necessidade, os alimentos destinam-se a manter o mesmo padrão de vida desfrutado por aqueles que dele necessitam, antes de instaurada a situação geradora do dever de alimentar. Cabe ressaltar que se compreendem nos alimentos as despesas com mantimentos, vestuário, lazer, habitação, saúde e educação, não se restringindo à mera subsistência física (CAHALI, 2009).
Com respeito ao pressuposto da possibilidade do alimentante, este é determinado pelas condições financeiras do devedor de pagar a prestação necessitada pelo alimentando sem prejuízo de seu sustento. É inadmissível que, sob o fundamento de remediar uma necessidade, se instaure outra maior, privando-se o alimentante dos recursos mínimos para sua sobrevivência (CAHALI, 2009).
A par desses dois critérios, o princípio da proporcionalidade deve nortear a fixação dos alimentos, de modo a concatenar os dois critérios antes explicitados. A vinculação dos alimentos aos rendimentos do alimentante, por meio de sua fixação em percentual sobre ele incidente, é o mecanismo mais seguro de garantia da proporcionalidade (DIAS, 2016).
É necessário diferençar o processo de quantificação dos alimentos devidos aos descendentes daqueles pagos ao ex-cônjuge e ao ex-companheiro. Nesse último caso, predomina o critério da necessidade, não sendo imperiosa a manutenção de uma relação entre a evolução patrimonial do alimentante e o pensionamento praticado (DIAS, 2016).
Dificultosa se afigura, por variadas vezes, a determinação das possibilidades do alimentante, que pode se utilizar de toda sorte de expedientes para simular o percebimento de rendimentos inferiores, com o fito de reduzir ou mesmo se exonerar dos encargos alimentares. Em tais situações, há que se aplicar o princípio da aparência, partindo-se dos sinais presuntivos de riqueza emitidos pelo devedor como forma de intuir, a partir deles, o real padrão de vida desfrutado pelo alimentante. Cabível se afigura, igualmente, a inversão do ônus da prova, como bem observa Maria Berenice Dias:
Como é difícil ao credor provar os ganhos do pai, os alimentos devem ser fixados por indícios que evidenciem seu padrão de vida. Nada mais do que atentar aos sinais externos de riqueza, pelo princípio da aparência. Esta dificuldade do credor autoriza a inversão dos ônus probatórios, podendo o juiz impor ao réu o encargo de comprovar seus rendimentos. Em sede alimentar, o magistrado não está adstrito ao princípio da congruência, que restringe a decisão judicial ao limite dos pedidos das partes. (DIAS, 2016, p. 994).
Rolf Madaleno minudencia o processo de quantificação dos alimentos nos seguintes termos:
Para fixar a concreta quantidade dos alimentos o juiz toma como ponto de partida o apuro das necessidades do alimentando, sem poder deixar de considerar, por absolutamente indissociável na análise da quantificação dos alimentos, a estratificação social e econômica das pessoas envolvidas na relação de obrigação alimentar. Para estabelecer a conformação do status socioeconômico e cultural do alimentante devem ser considerados os elementos: a) econômico (bens dos pais e dos filhos); b) sociológico (meio de influência, lugar de habitação etc.); c) cultural (nível familiar de escolarização e cultura dos pais). O aspecto econômico toma em consideração a remuneração pelo trabalho, economias e outras rendas do alimentante e na contrapartida o consumo da família, contando desde o necessário para a sobrevivência até a abundância de acordo com o estilo de vida, pois este modus vivendi é determinante para o estabelecimento dos alimentos. Por fim, as economias apuradas permitem determinar o processo de acumulação de capital e ajudam a melhor identificar a possibilidade alimentar do devedor dos alimentos. Do ponto de vista sociológico é relevante diferenciar a infraestrutura familiar, observada a classificação da moradia da família segundo a sua situação geográfica (bairro onde se situa), o material de construção e quantidade de ambientes e o sistema de serviços domiciliares (números de empregados domésticos e custos de manutenção da moradia). A feição cultural considera a escolarização e formação do núcleo familiar até eventual pós-graduação das partes interessadas, porquanto são estas informações igualmente utilizadas pelos organismos governamentais para dividir as pessoas em classes sociais e culturais dentro de um sistema capitalista. Dentro dessas balizas, torna-se função discricionária do juiz buscar o arbitramento alimentar, atentando para o critério da proporcionalidade entre a possibilidade de quem paga e a necessidade de quem recebe, sendo certo que o Código Civil e tampouco qualquer ou a lei extravagante fornece alguma fórmula matemática que permita ao julgador um cálculo exato de uma pensão alimentícia. (MADALENO, 2013, p. 986).
Frise-se, finalmente, que o julgador poderá se valer de todos os mecanismos juridicamente previstos para a determinação do trinômio acima referido, em legítimo exercício de seus poderes instrutórios. Assim, tanto a requisição de cópia das declarações de imposto de renda do alimentante à Receita Federal, quanto a quebra dos sigilos fiscal e bancário, configuram procedimentos passíveis de utilização com esse propósito (DIAS, 2016).
A alteração em qualquer um dos polos do trinômio aduzido (proporcionalidade, necessidade e possibilidade) dará azo à revisão do valor da pensão alimentícia ou até mesmo à exoneração do dever de alimentar, o que, ressalvada a hipótese de contração de novas núpcias, não ocorre automaticamente, sendo premente a postulação em juízo, por meio das ações revisional ou exoneratória da obrigação alimentar.
Sobre a necessidade do alimentando, como já se afirmou, não compreende apenas a carência de elementos para uma existência digna, mas deve pressupor a impossibilidade de obtenção de tais recursos, em razão de incapacidade para o trabalho, que pode ser natural ou sociológica, no último caso diante da improbabilidade momentânea ou permanente de inserção no mercado de trabalho.
8 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em suma, a atenta interpretação dos fatos do processo é curial para a adequada concretização dos preceitos pertinentes aos alimentos, porquanto a riqueza das particularidades das situações da cotidianidade é sempre mais profícua do que as molduras legislativas, às quais sempre transbordam.
Não há como, ex ante e em abstrato, fixar todas as hipóteses de cabimento dos alimentos, porquanto, diante das regras constitucionais e legais atinentes à matéria, pode ser que determinada situação concreta, vertida aprioristicamente como indigna do arbitramento de alimentos, reclame forçosamente sejam estes estabelecidos.
REFERÊNCIAS
BARROS, Sérgio Resende de. A ideologia do afeto. Revista Brasileira de Direito de Família. Porto Alegre: IBDFAM/Síntese, n. 14, p. 5-10, jul.-set. 2002.
BEVILÁQUA, Clovis. Direito da família. Recife: Livraria Contemporânea, 1905.
BITTAR, Carlos Alberto (Coord.). Os novos rumos do Direito de Família. In: O Direito de Família e a Constituição de 1988. São Paulo: Saraiva, 1989.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso especial nº 1290313/AL, Rel. Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA, QUARTA TURMA, julgado em 12/11/2013, DJe 07/11/2014.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso especial nº 1388116/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 20/05/2014, DJe 30/05/2014b.
CAHALI, Yussef Said. Dos alimentos. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 11. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.
MADALENO, Rolf. Curso de Direito de Família. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil – Vol. V. Atual. Tânia da Silva Pereira. 25. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2017.
ROCA, Encarna. Familia y cambio social (De la “casa” a la persona). Cuadernos Civitas: Madrid, España, 1999.
TARTUCE, Flávio. Direito Civil: Direito de Famíia – Vol. 5. 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017.