1. INTRODUÇÃO
O estudo acerca da vítima é de suma importância, tendo em vista que esta foi relegada ao esquecimento por um longo período na história, de protagonista a mero repositório de informações. Verificou-se um declínio em relação à importância das pessoas que sofriam e sofrem processos vitimizatórios.
Atualmente, a Vitimologia preocupa-se com a participação da Vítima no crime, a vulnerabilidade e definibilidade da Vítima que devem ser sopesados na instrução criminal.
Observa-se que quanto mais destituída de poder econômico mais sofrimento a vítima terá ao buscar a feitura da justiça, sendo esta vulnerabilidade da vítima ignorada pelos aplicadores do Direito.
Em relação ao crime deve se estudar tanto o criminoso quanto a vítima, esta relação é destacada por ele como dupla-penal, pois, somente assim se poderá admitir o dolo e a culpa do transgressor e a constatação de uma suposta participação da vítima involuntariamente no efeito criminoso.
O crime não é composto por apenas um personagem, portanto, é de suma importância analisar-se a interação entre a dupla penal: criminoso-vítima, pois, em alguns casos a vítima participa na consecução criminosa, mesmo que de forma involuntária.
É mister estudar as relações de ordem psicológica que envolvem a dupla-penal.
O presente artigo terá por tema a aplicabilidade da Vitimologia no direito penal brasileiro, assunto este pertencente ao campo de conhecimento: Vitimologia.
O problema que se vislumbra é se o ordenamento jurídico brasileiro utiliza os conceitos da Vitimologia de forma inequívoca e expressa, de modo a auxiliar o Direito na análise da relação criminoso-vítima?
Ao se iniciar o estudo teve-se como hipótese a existência da Vitimologia como disciplina reconhecida pelos meios acadêmicos recentemente, porém, a valoração da Vítima é antiga na história da humanidade; no Brasil, o conceito é utilizado de forma incipiente, pois os conceitos da Vitimologia poderiam ser utilizados de forma mais abrangente e completa, aumentando o conhecimento da gênese do crime.
O objetivo geral a que se propôs é examinar a aplicação da Vitimologia no ordenamento pátrio e sua relevância no direito penal.
Como objetivos específicos têm-se: estudar a Vitimologia, seu histórico e conceitos necessários para sua compreensão, verificar o uso dos conceitos de Vitimologia no Direito Brasileiro e verificar na jurisprudência brasileira como as Cortes têm tratado do assunto em epígrafe.
Como acadêmicos e apreciadores do Direito Penal, a questão da vítima sempre nos intrigou e por isso tornou-se a indicada como escolhida para finalizar nossos estudos no Curso de Direito.
Justifica-se o estudo em questão, pois que com ele contribuir-se-á para a compreensão se os conceitos da Vitimologia encontram-se instaurados no ordenamento penal brasileiro e se esta contribuição vem sendo eficaz, a partir daí poderá ser formulada uma maior inserção da Vitimologia, visando auxiliar o Direito Brasileiro, caso ela se mostre eficaz para tanto; além de beneficiar a sociedade por tratar humanamente as vítimas de delitos, além de contribuir para a melhor compreensão da gênese criminal e dosimetria da pena.
Utilizou-se para a consecução do presente trabalho o método dedutivo com a análise empírica de casos concretos jurisprudenciais.
Por isso, o presente trabalho se dedica ao estudo da vítima e da Vitimologia, consideradas essenciais para o Direito Penal e para a sua execução.
2. Conceito e importância do estudo da vítima
Vítimas são pessoas que sofreram dano, individual ou coletivamente, sejam de cunho físico ou emocional, econômico ou impossibilidade de usufruir de seus direitos fundamentais, através de ações ou omissões que constituem fatos típicos, até mesmo as que se referem a abuso de poder1.
Como se percebe o conceito de vítima é bem amplo e pode abarcar várias pessoas que sofreram algum tipo de violência.
A etimologia da palavra vítima tem sua raiz no latim, derivando de vincire cujo significado é ligar, referindo-se aos animais sacrificados aos deuses que ficavam vinculados ao ritual em que seriam vitimados. A vítima é aquele que sofre a ação ou omissão do delinquente, isto do ponto de vista penal2.
Mais uma vez observa-se a conotação religiosa em torno da vítima, a qual era imolada em sacrifício aos deuses.
Tanto o criminoso quanto a vítima podem apresentar causas biopsíquicas que o tornam predispostas a ações antissociais e até mesmo vitimizantes, algumas tendências advêm de herança biológica juntamente com outros fatores de nível psicológico e socioambiental3.
O estudo da vítima é importante, pois auxilia na compreensão da gênese do delito e no vislumbre que muitas vezes, criminoso e vítima formam uma parelha, consciente ou inconscientemente4.
O entendimento da gênese do delito esclarece e pode evitar futuras ações delituosas, protegendo a vítima e educando o criminoso.
3. Aspectos históricos da vítima
O privilégio do estudo da vítima não cabe aos tempos modernos, pois já existia no passado, apesar de não sistematizado. Na chamada idade de ouro da vítima, esta possuía uma posição de destaque na solução do evento criminoso. À vítima e aos seus familiares era facultativo requerer a vingança ou a compensação. Porém, com o fortalecimento do Estado, este passou a ser o titular do direito de vingança. Na idade de ouro da vítima não existia uma nítida diferenciação entre crime e pecado, a punição tinha o condão de restaurar a harmonia perfeita que havia sido quebrada com a prática delituosa5.
O objetivo da punição ao criminoso objetivava, muitas vezes, saciar o desejo de vingança da vítima e de seus familiares, não possuindo um equilíbrio muito nítido, pois poderia ultrapassar os limites do que foi realmente sofrido pela vítima.
Uma das legislações mais antigas conhecidas – o Código de Hamurabi é originado da Babilônia, datado do século XVIII a. C., tal codificação tem origem supostamente divina. Em alguns delitos, o Código de Hamurabi previa tanto a pena de Talião quanto a composição, para escolher qual seria aplicada, deveria ser sopesada a qualificação do ofensor e do ofendido. O direito da vítima e de sua família era reconhecido tanto para aplicação da pena de Talião quanto do preço da composição, porém este direito possuía limites legais e não podia ser exercido de forma arbitrária6.
Neste momento, observa-se que o “o direito à vingança” passa a ser monitorado e deve obedecer aos limites legais estabelecidos pelo Código de Hamurabi.
O Código de Manu, também de inspiração divina, com idade incerta, entre século XIII a V a. C., possui uma clara preocupação com a manutenção da sociedade de castas. A pena possuía função moral e dependia de qual casta pertencia o ofensor, ao purificar quem a recebia, não existindo distinção entre crime e pecado. O princípio de Talião estava presente nas sanções, a maior preocupação estava no fato de que um brâmane pudesse ser vítima do crime7.
Observa-se que o Código de Manu preocupava-se com a qualidade da vítima, preocupando-se mais quando esta pertencia às castas superiores, como é o caso dos brâmanes.
O direito hebreu, que pode ser encontrado na Torá, também estava repleto de referências religiosas, sendo, portanto, de origem divina, também era regido pelo princípio de Talião, porém, este poderia ser substituído por uma indenização, cujo escopo era compensar a vítima. A lei mosaica fazia distinção entre dolo e culpa8.
Interessante observar que em civilizações antigas já havia a preocupação de se ressarcir as vítimas como forma de minimizar os efeitos do delito sofrido por elas.
O direito penal sofreu uma secularização com a fundação da República romana, a qual separou a religião e o Estado. A Lei das XII Tábuas, datada de 453-451 a. C. possuía leis penais, a diferença desta legislação para as anteriores é que ela não foi outorgada pelos deuses9.
A Lei das XII Tábuas limita a vingança privada, ressaltando os delitos privados, passíveis de penas patrimoniais e com a possibilidade de composição, para desta forma evitar-se a vingança. Não possui diferenciação de classes sociais.10
No feudalismo houve a sobreposição do direito germânico sobre o direito romano. O antigo direito germânico baseava-se na vingança de sangue. O delito trazia uma relação entre o criminoso e a vítima, a comunidade autorizava e protegia a vítima, que poderia agredir o criminoso, porém, não tomava parte direta na contenda11.
Observa-se certa isenção neste sistema, porém, nem sempre deveria ser satisfatório à vítima por não ter clareza em como ressarci-la.
Quando o poder estatal foi sendo fortalecido, a composição tornou-se obrigatória, portanto, o princípio de Talião foi substituído pela composição. O valor desta dependia do status do ofendido e o inadimplemento acarretava a conversão da sanção corporal ou a consequente vingança por parte da vítima12.
Existiam três tipos de composição no direito germânico: wergeld – reparação pecuniária paga ao ofendido ou aos seus familiares; busse – o delinquente pagava à vítima ou a sua família o ‘direito de vingança’ e fredus que era o preço da paz ofertado ao chefe da tribo, ao soberano ou ao Estado. Além da composição, havia no sistema germânico outras penas, com caráter sacramental, impostas aos criminosos que afetavam as pessoas da comunidade como um todo. O direito germânico prevaleceu até o final do século XI.13.
Do final do século IX ao século XIII o direito canônico foi a principal fonte do direito positivado. Os tribunais eclesiásticos possuíam uma larga competência, sujeitando-se a eles não somente os clérigos, como também os leigos14.
Na fase da Igreja Primitiva, os cristãos criaram regras de convivência para pacificação dos possíveis conflitos entre os seus pares, por ser uma instituição clandestina, os adeptos eram orientados a não buscar a solução dos litígios junto a intervenção dos juízes romanos, por isso se submetiam à autoridade dos padres e bispos15.
A partir do ano 313, o Imperador Constantino concedeu às decisões dos bispos, o mesmo valor da decisão do juiz, nos séculos IV e V, foi concedida aos bispos a competência para julgar as infrações religiosas. Nos séculos X a XII, o direito penal começa a intervir nos tribunais em casos seculares16.
O procedimento penal, nos tribunais eclesiásticos, dependia de provocação, portanto, era acusatório. No século XII, o processo torna-se inquisitorial, portanto, o juiz deveria instaurar o processo sempre que um delito chegasse ao seu conhecimento, nesta fase, a vítima não tem qualquer relevância17.
O direito penal canônico limitou a vingança de sangue do direito germânico; a partir deste momento há uma mudança no papel da vítima: outrora sujeito central em matéria penal, torna-se mero possuidor de informações18.
A vítima, com o passar dos anos, perdeu o seu papel de protagonista, como o foi no caso do Direito Germânico, passando a possuir um papel periférico, apenas, informativo. Isto se deu com a supremacia do Estado no tocante ao poder punitivo. Conforme Oliveira:
O declínio da vítima no sistema penal coincide com o nascimento do Estado e do direito penal como instituição pública: o direito penal estatal surge exatamente com a neutralização da vítima. O Estado assume o controle absoluto do ‘jus puniendi’, convertendo-se no exclusivo detentor do monopólio da reação penal19.
O Procurador surge para fazer substituir a vítima, papel assumido em função de ser o procurador representante da ordem e do poder atingido pelo ato delituoso. Assim, surge a origem do confisco, das multas que são recolhidas pelo Estado – que favoreceram as monarquias emergentes, como uma potente fonte de capital20.
O afastamento da vítima na solução do conflito penal é patente quando se recorda da atuação dos Tribunais da Inquisição, presente no fim da Idade Média e Idade Moderna. Os Tribunais da Inquisição estavam ao lado dos Tribunais Seculares e recebiam um apoio amplo dos soberanos. À mínima suspeita, a partir de qualquer delação (por mais infundada que fosse), a confissão era obtida por intermédio da tortura, portanto, nem sequer se consultava a vítima como fonte de informações21.
A partir deste momento a vítima passa a ser relegada ao esquecimento, não se preocupando com sua indenização pelos danos causados e nem em minimizar seu sofrimento de qualquer forma, muito menos a sua ânsia por vingança
Com a Escola Positiva surge a Criminologia, que a princípio não valorizava a vítima. Os estudos baseavam-se no Antropologismo de Lombroso e no determinismo sociológico de Ferri, buscando a compreensão do criminoso. Porém, no curso da evolução da Criminologia surgiu um eventual interesse pelo papel da vítima no delito22.
No princípio desses estudos a vítima ainda não era vislumbrada, observa-se somente o criminoso.
Em relação à vítima, vivencia-se atualmente a fase do redescobrimento, a qual se iniciou com o fim da II Guerra Mundial, tendo em vista que a humanidade presenciou o genocídio de seis milhões de judeus nos campos de concentração nazistas. Surge a Vitimologia, que passou a estudar qual o porquê do esquecimento do direito criminal no que concerne à vítima e também entender a razão pela qual a vítima não se enquadrava como possuidora de direitos, o que era concedido aos delinquentes23.
O sentimento trazido à humanidade pelos danos e imolação sofrida pelos judeus durante a II Grande Guerra trouxe a necessidade de valoração, amparo e estudo da vítima.
É necessário que o vislumbre da importância da vítima continue em ascensão, mormente no Brasil, onde ainda se dá pouca importância ao papel da vítima na parelha criminal.
4. Iter Victimae
O caminho, interno e externo que um indivíduo percorre até se transformar em vítima é chamado de iter victimae, sendo o conjunto de etapas que se operam cronologicamente no desenvolvimento de vitimização24.
A vítima também percorre um caminho até a sua imolação.
Tais acontecimentos modificam a natureza interna e externa fazendo com que uma simples pessoa passe a figurar como vítima de um delito25.
Segundo a esquematização de Oliveira este processo possui cinco fases: intuição: a vítima tem uma intuição ou percepção de que irá sofrer uma agressão; fase dos atos preparatórios (conatus remotus): a possível vítima passa a tomar medidas preliminares de autodefesa ou de ajuste de seu comportamento para que não venha a sofrer a agressão do delinquente; fase do início da execução (conatus proximus): a vítima começa a exercitar a chance que possua para operacionalizar a sua defesa ou direcionar o seu comportamento no sentido de cooperar, apoiar ou facilitar a ação ou omissão desejada pelo delinquente; fase executória: operacionaliza-se a verdadeira defesa da vítima, definindo-se a resistência da vítima para evitar que seja atingida pelo resultado que o agressor deseja atingir ou a resignação da vitimização; conclusão: observa-se o ato delitivo, consumado ou não, com ou sem a participação da vítima. Os resultados podem ser diversos, dependendo do crime e de como se deu a ação criminosa e até mesmo os fatores externos presentes26.
Caso essas fases sejam identificadas o evento delituoso pode deixar de existir, posto que será possível evitar-se a sua conclusão.
É mister estudar o iter victimae para se verificar até que ponto a vítima contribui para o resultado lesivo.
5. A VITIMOLOGIA NO DIREITO BRASILEIRO.
Inicialmente, é necessário ressaltar o uso da terminologia vítima no direito brasileiro. Observa-se que o termo "vítima" designa aquele que foi lesado nos crimes contra a pessoa, conforme a doutrina. Utiliza-se ofendido no casos de crimes contra a honra e contra os costumes, lesado, nos crimes contra o patrimônio. Porém, as leis substantiva e adjetiva penais usam os termos citados várias vezes e de forma indistinta27.
O Código Penal não possui uma conceituação explícita ou classificação no que tange à vítima, porém, a sua presença encontra-se nas partes geral e especial do Estatuto Penal, através de condições ou qualidades que garantem a conceituação, qualificação ou exclusão do crime, em outros casos, a pena principal é diminuída, atenuada, ou agravada28.
Observa-se que a utilização dos conceitos de Vitimologia é incipiente no Direito Brasileiro, porém, verifica-se uma mudança na atualidade e uma maior preocupação com a vítima.