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Pela extinção da remessa necessária

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5 ISONOMIA E A REMESSA NECESSÁRIA

Como bem preleciona Gomes e Martins (2010), a Constituição da República estatui o Estado brasileiro como Estado de Democrático de Direito, ou seja, caracterizado pelo império das leis, instituídas por representantes do povo eleitos democraticamente.

Um dos pilares desse Estado são os direitos e garantias fundamentais, insculpidos pelo legislador originário na Lei Maior. Desse modo, as leis editadas na ordem jurídica não podem confrontar as normas fundamentais, dando ao princípio da legalidade, além da dimensão formal, uma dimensão substancial em razão da necessidade de conformação das leis com a Constituição e, sobretudo, com os direitos fundamentais.

Nesse espeque, Gomes e Martins (2010) notam que o neoconstitucionalismo ou pós-positivismo busca dar concretude aos direitos e garantias fundamentais estabelecidos constitucionalmente. Por esse motivo, não se pode dissociar o estudo do Direito Processual Civil do conteúdo axiológico-normativo das normas constitucionais que regem o Estado de Direito. Assim, o processo não deve ser visto como mero instrumento de resolução de conflitos, mas como um meio efetivo de realização e de proteção dos direitos fundamentais.

Nesse particular, entre todos os direitos e garantias fundamentais consignados na Constituição da República, o princípio da isonomia desempenha uma função demasiadamente relevante no âmbito processual: garantir um processo justo e democrático para os litigantes.

De acordo com o reportado princípio, "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza". Para Ávila, mencionado por Gomes e Martins (2010), a igualdade consiste numa norma proibitiva de discriminações e num princípio-fim que deve ser promovido.

Neste raciocínio, Gomes e Martins (2010), ao mencionar Bandeira de Mello, reforça que a isonomia não somente deve ser observada pelo aplicador e intérprete do direito, mas também pelo legislador, que não deve produzir normas iníquas, fomentadoras de privilégios e perseguições.

Na seara processual, Lucon, apontado por Gomes e Martins (2010), prescreve que a igualdade, além do seu conteúdo formal, "deve ser vista substancialmente como um meio concreto de proporcionar às partes condições de real acesso ao Judiciário e de poder influenciar na prestação jurisdicional (igualdade material)".

O Código de Processo Civil de 2015, no art. 139, inciso I, assegura a concessão de idênticas condições de atuação e a paridade de armas entre os litigantes. Entretanto, observadas as lições de Neves (2016), em termos de tratamento diferenciado, a Fazenda Pública supera qualquer outro litigante, havendo corrente doutrinária que defende tratar-se, genuinamente, de privilégios e não prerrogativas.

Nesse ponto, a remessa necessária é um dos exemplos de tratamento diferenciado. Para perquirir sua constitucionalidade, é mister uma investigação da sua necessidade para a proteção do interesse público, diante da suposta desigualdade em que se encontra a Fazenda Pública perante o particular, tendo em vista sua hipossuficiência — problemas estruturais conjugados ao colossal volume de trabalho, nas palavras de Neves (2016).

 


6 PELA EXTINÇÃO DA REMESSA NECESSÁRIA

A incorporação ao ordenamento jurídico do instituto da remessa necessária, sob a justificativa do mal aparelhamento do Estado, recebe inúmeras críticas da doutrina, pugnando-se, inclusive, por sua supressão. No entanto, as críticas não são recentes.

Discorrendo sobre o assunto, Koehler (2016) relata que o mentor do Código de 1973, Alfred Buzaid já lutava pela extinção da remessa necessária, tanto que, em uma de suas obras, em 1951, declarou que não havia necessidade de se manter um recurso extravagante, haja vista a existência de órgãos especializados e suficientemente aptos para promoverem a defesa da Fazenda Pública.

Reportando à Ada Pellegrini Grinover, Koehler (2016) reitera que a jurista qualifica o instituto como um privilégio anti-isonômico, eivado de inconstitucionalidade, já que estabelece tratamento diferenciado com base em critério subjetivo relativo às partes, em vez de considerar a relevância da matéria objeto do processo.

Posto que a jurisprudência dos tribunais reconheçam a conformidade das prerrogativas fazendárias junto aos princípios constitucionais, mormente o da isonomia, a jurisprudência do STJ demonstra um desconforto pelos seus membros, que fazem severas críticas, como se pode observar no excerto abaixo, ipsis verbis:

 

Em verdade, o instituto traduz uma deformação cultural, herdada de nossas origens: a falta de confiança do Estado em seus agentes e a leniência em sancionar quem prática atos ilícitos em detrimento do interesse público. Se o Juiz ou Advogado do Estado é desidioso ou prevaricador, outros povos o afastariam da magistratura. Nós, não: criamos uma compilação processual, pela qual, violentando-se o princípio do dispositivo, obriga-se o juiz a recorrer. (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 29.800-7/MG da 1ª Turma. Relator: Ministro Humberto Gomes de Barros, 16 de dezmbro de 1992.)

 

Afora isso, Koehler (2016) aponta que o instituto da remessa necessária torna inócuo a finalidade do recurso adesivo nas lides em que há sucumbência parcial da Fazenda Pública, pois a parte sabe que, mesmo sem a interposição de apelação, não ocorrerá o transito em julgado sem a reapreciação da sentença pelo juízo ad quem. "Isso traz ainda mais morosidade ao julgamento do apelo, uma vez que o tribunal deverá se debruçar sobre mais um recurso, com seus respectivos argumentos", sustenta o autor.

Ainda nesse aspecto, Paulo Afonso Brum Vaz, citado por Koehler (2016), leciona que os efeitos nefastos do atraso na concessão da tutela jurisdicional não decorrem tão somente da estrutura da justiça, mas também dos instrumentos processuais disponibilizados pelos sistema. O indigitado autor utiliza, como exemplo, a remessa necessária para indicar uma etapa procedimental que acaba por atrasar a efetiva satisfação do direito buscado. Em razão disso, assume ser favorável à sua extinção do sistema processual. Em tempo, revela acreditar que a tutela de direitos, disponíveis ou indisponíveis, cabe aos seus respectivos titulares, e não ao Poder Judiciário.

Outro interessante registro feito por Koehler (2016) se refere à proposição de alguns autores em manter o instituto em discussão apenas para estados e municípios com orçamentos reduzidos por constituir verdadeiro obstáculo ao acesso à justiça, devendo-se promover a extinção das demais hipóteses normativas. Nesse sentido, é a doutrina de João Monteiro, trazida por Koehler (2016), ad litteram:

 

Se o Estado tem o dever de proporcionar aos litigantes, pelas leis de organização judiciária, máxima garantia de probidade e acerto, não pode vir ele mesmo, com a criação de duas instâncias, fazer sentir que primeira não reúne aquelas condições de garantia.

 

A propósito, Koehler (2016) destaca pertinente pesquisa no âmbito do Tribunal de Justiça do Estado do Pernambuco, referente ao ano de 2004. Através dos dados coletados, constatou-se que somente 5,79% (cinco vírgula setenta e nove por cento) dos acórdãos proferidos em sede de remessa necessária eram reformados em prol da Fazenda Pública, enquanto os demais, correspondentes a 94,21% (noventa e quatro vírgula vinte e um por cento), serviram apenas para confirmar o teor da sentença. Não obstante o âmbito reduzido da pesquisa, é possível aferir, empiricamente, a pouca utilidade prática do instituto.

Apoiado no pensamento desenvolvido por Marc Galanter, Koehler (2016) enumera as vantagens de um litigante habitual, tal como a Fazenda Pública, que endossariam a ausência de pertinência para a manutenção do instituto da remessa necessária, verbo ad verbum:

 

(1) a experiência com a lei permite um melhor planejamento para o litígio; (2) ele possui economia de escala devido ao grande número de casos; (3) possui oportunidades de desenvolver relações informais com membros da instituição decisora; (4) pode distribuir o risco da litigância entre mais casos; e (5) pode utilizar estratégias em casos particulares para assegurar uma postura mais favorável em casos futuros.

 

Ademais dos benefícios decorrentes da litigância habitual, Koehler (2016) arrola outras vantagens da Fazenda Pública, ipsis litteris:

 

1) goza de isenção de custas; 2) está protegida por enorme teia burocrática; 3) dispõe de orçamento volumoso; 4) dispõe de funcionários de carreira remunerados para sua defesa em juízo, selecionados mediante rigoroso e concorrido concurso público; 5) dispõe de funcionários de carreira para lhes prover assessoria técnica; 6) tem acesso mais fácil a informações que comumente se encontram dentro de suas próprias repartições; 7) no aspecto cultural e político, seus procuradores gozam de status mais elevado do que a maioria dos advogados particulares, o que lhes garante maior mobilidade diante dos magistrados e das instâncias decisórias; 8) acompanha o fluxo burocrático do poder (seus defensores estão mais conectados com as instabilidades e decisões do governo); 9) pagamento mediante precatório e a impenhorabilidade dos seus bens; 10) a comunicação entre os diversos órgãos públicos é feita por malote já estabelecido, funcional e constante; 11) cada órgão do governo lida com grande quantidade de litígios sobre a mesma matéria.

 

No mesmo sentido, Talamini (2016) afirma que, no cenário atual, o instituto da remessa necessária se revela anacrônico, conforme a seguinte transcrição:

 

[...] A lei reserva-o basicamente para sentenças proferidas contra a Fazenda Pública. No entanto, hoje, os entes da Administração Pública são defendidos por procuradorias organizadas, competentes e idôneas. Há regras claras norteando o modo como os procuradores públicos devem atuar — prevendo inclusive procedimentos específicos para a dispensa de interposição de recurso por motivos justificáveis e responsabilização de quem deixa injustificadamente de recorrer. A previsão da remessa implica uma inexplicável desconfiança na correta atuação desses órgãos e mecanismos. Além disso, como não há mais um legítimo fundamento que justifique esse tratamento diferenciado em favor da Administração Pública, é difícil defender a compatibilidade da remessa necessária como o princípio constitucional da isonomia (no entanto — destaque-se — o STF jamais reputou tal instituto inconstitucional).

 

Por fim, Gomes e Martins (2010) arrematam: "nem todo interesse que o Estado defende judicialmente reveste-se da natureza do interesse público" e que este se encontra presente em todos os valores consagrados constitucionalmente, "o que autoriza dizer que é do interesse público tanto a justiça quando celeridade procedimental e a eficiência, ou efetividade, do processo ou provimentos judiciais". Além disso, forçar um novo julgamento, independentemente da manifestação da insatisfação das partes, prolonga indevidamente a lide, retira a eficácia da decisão proferida e prejudica a efetividade dos processos, em primeiro grau de jurisdição, indo de encontro à celeridade processual.

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Gomes e Martins (2010) consideram ainda que as demais prerrogativas processuais são suficientes para suprir as deficiências decorrentes do desaparelhamento estatal e que eventual injustiça do julgamento em primeiro grau de jurisdição não pode ser presumida somente pelo fato de ser contrário aos interesses do Estado, tampouco que em toda e qualquer situação a Fazenda Pública seja hipossuficiente em relação ao particular, porquanto a Fazenda, composta por um quadro profissional altamente qualificado para atuar em sua defesa, pode voluntariamente assentir com a justeza da decisão e, quando houver a ocorrência de vícios graves, valer-se dos meios de impugnação que o ordenamento lhe dispõe, como a ação rescisória.

Por derradeiro, impende comentar que a comissão de juristas responsável pelo Código de Processo Civil de 2015 chegou a propor a extinção do instituto, no entanto foi vencida pela forte resistência dos representantes da Fazenda Pública.

 


8 CONCLUSÃO

Sob o enfoque processual, verifica-se que a remessa necessária representa verdadeira ofensa ao princípio constitucional da isonomia por conceber tratamento especial à Fazenda em Juízo e colocá-la em situação de vantagem em relação ao particular. A sua manutenção, sob a justificativa de proteção do interesse público e da suposta hipossuficiência da Fazenda, não encontra amparo constitucional em virtude da posição de superioridade técnica desta decorrente da sua litigância habitual.

A concessão de mais um privilégio à Fazenda fere a isonomia processual e a paridade de armas entre os litigantes, além de constituir óbice à realização dos princípios da efetividade e da duração razoável do processo.

Reforça-se ainda que as normais processuais devem retirar da Constituição seu fundamento de validade, o que inviabiliza a criação de institutos que violam direitos e garantias constitucionalmente assegurados.

Demais disso, as prerrogativas processuais não podem ser utilizadas como subterfúgios para o não acatamento de decisões judiciais, bem como não podem servir de gravame ao particular a fim de procrastinar a satisfação do seu direito pelo simples fato de litigar contra o Estado.

Nessa vereda, a remessa necessária se revela instrumento inadequado e desnecessário à proteção do interesse público, visto que as entidades beneficiadas pelo instituto apresentam meios de defesa suficientes para lhes garantir o manejo de recursos, devendo, portanto, ser excluída do sistema processual brasileiro.

 


REFERÊNCIAS

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DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil: meios de impugnação às decisões judiciais e processo nos tribunais. 13. ed. Salvador: Jus Podivm, 2016. v. 3.

DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil. 07. ed. Salvador: Jus Podivm, 2009. v. 3.

GALDINO, Flávio. Introdução à Teoria dos Custos dos Direitos: direitos não nascem em árvores. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.

GOMES, Magno Federici; MARTINS, Márcia Azevedo. A Inconstitucionalidade do Artigo 475 do Código de Processo Civil: violação aos princípios da isonomia, proporcionalidade e efetividade do procedimento. Revista Eletrônica de Direito Processual, Rio de Janeiro, v. VI, ano 4, p. 428-474, jul./dez. 2010.

KOEHLER, Frederico Augusto Leopoldino. A Remessa Necessária no Projeto do Novo Código de Processo Civil. Disponível em: <https://www.academia.edu/10847714/A_remessa_necess%C3%A1ria_no_projeto_do_novo_C%C3%B3digo_de_Processo_Civil>. Acesso em: 04 dez. 2016.

MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

MORAIZ, Breno Ferreira.  A Aplicação do Princípio do Juiz Natural e a Garantia ao Duplo Grau de Jurisdição. A competência pela prerrogativa da função e a sua cessação: autos do processo permanecem no órgão que detém a competência originária. Revista Thesis Juris, São Paulo, v. 2, n. 2, p. 454-472, jul./dez. 2013. Disponível em: <http://www.revistartj.org.br/ojs/index.php/rtj/article/view/86>. Acesso em: 04 dez. 2016.

NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil. 8. ed. Salvador: Jus Podivm, 2016.

TALAMINI, Eduardo. Remessa Necessária (reexame necessário). Revista de Direito Administrativo Contemporâneo. v. 24, ano 4, p. 129-145, São Paulo: Ed. RT, maio/jun. 2016.

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Sobre os autores
Alex Penha do Amaral

Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Federal do Amazonas.

Luiza Veneranda Pereira Batista

Delegada de Polícia do estado de Goiás. Especialista em Direito Constitucional. Especialista em Direito Processual Civil. Especialista em Direito Processual Penal. Especialista em Criminologia. Formada em Direito pela Universidade Federal do Amazonas.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AMARAL, Alex Penha ; BATISTA, Luiza Veneranda Pereira. Pela extinção da remessa necessária. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5312, 16 jan. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/62891. Acesso em: 26 abr. 2024.

Mais informações

Trabalho referente ao Curso de Pós-graduação "lato sensu" em Direito Processual Civil da Universidade Federal do Amazonas.

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