A exigência de certificação ISO em licitações

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17/12/2017 às 10:36
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Este trabalho tem por objetivo analisar, sob o viés do Direito Administrativo Global – DAG, a exigência de certificação emitida pela ISO – International Organization for Standardization – em licitações.

Sumário: 1.  Introdução – 2. A ISO – International Organization for Standardization – 3. Como são criados os padrões ISO e são emitidas as certificações – 4. As regras de licitação e as exigências de habilitação – 5. A Jurisprudência acerca das certificações ISO – 6. Conclusão.


1 Introdução

Num mundo cada vez mais globalizado e dinâmico, é percebida a crescente influência de organismos internacionais não governamentais, como é o caso da ISO – International Organization for Standardization – no estabelecimento de regras e padrões. No entanto, tais entidades nem sempre possuem, para a definição de suas regras e padrões, mecanismos relevantes de governança global, como a transparência, a participação dos interessados e a accountability.

Tal deficiência é ainda mais grave quando a Administração pública, em suas licitações para compras e para prestação de serviços, exige dos interessados a obediência às normas definidas por organismos internacionais não governamentais.

Assim, o objetivo deste artigo e, por conseguinte, a sua problemática, é analisar a exigência de certificação emitida pela ISO em licitações e perquirir quais as consequências de tal decisão da Administração nos certames licitatórios.

Para responder a tal indagação, será necessário expor: i) o que é a ISO; ii) como são criados os padrões ISO e emitida a respectiva certificação; iii) as regras de licitação e as exigências de habilitação; iv) a jurisprudência acerca das certificações ISO.

Ressalte-se que o presente trabalho não se tem a pretensão de esgotar o assunto, mas sim trazer maior luz ao tema, apontando os principais pontos controvertidos, trazendo a problemática para a óptica do Direito Administrativo Global – DAG.


2 A ISO – International Organization for Standardization

A ISO é uma organização internacional não governamental que tem por objetivo criar padronizações para processos, produtos e serviços. Tais padrões são aceitos em diversos países e, muitas vezes, tornam-se uma exigência por conta da prática de mercado. Segundo o site da própria organização:

ISO is an independent, non-governmental international organization with a membership of 161 national standards bodies. Through its members, it brings together experts to share knowledge and develop voluntary, consensus-based, market relevant International Standards that support innovation and provide solutions to global challenges.

A respeito dos membros que integram a ISO, por sua vez, é exposto, no sítio da organização, que:

We are a network of national standards bodies. Our members are the foremost standards organizations in their countries and there is only one member per country. Each member represents ISO in its country. Individuals or companies cannot become ISO members.

There are three member categories. Each enjoys a different level of access and influence over the ISO system. This helps us to be inclusive while also recognizing the different needs and capacity of each national standards body.

- Full members (or member bodies) influence ISO standards development and strategy by participating and voting in ISO technical and policy meetings. Full members sell and adopt ISO International Standards nationally.

- Correspondent members observe the development of ISO standards and strategy by attending ISO technical and policy meetings as observers. Correspondent members can sell and adopt ISO International Standards nationally.

- Subscriber members keep up to date on ISO’s work but cannot participate in it. They do not sell or adopt ISO International Standards nationally.

Diante de tais informações, é possível extrair que a ISO é uma rede ampla, distribuída em diversos países, composta por organismos nacionais de normatização. Não participam empresas ou pessoas individualmente, o que confere uma certa imparcialidade à organização, por não cuidar, ao menos explicitamente, de interesses particulares.

Chazournes (2009) explica que, nos últimos sessenta anos, não há dúvida de que o papel e a capacidade das organizações internacionais para a realização de operações têm evoluído muito. Seus objetivos têm se expandido na mesma proporção. As operações de campo têm igualmente aumentado. Tornou-se cada vez mais necessário que as organizações internacionais recorram a mecanismos legais inovadores, capazes de cumprir as novas tarefas que lhes foram atribuídas. Enquanto isso, no cenário mundial, aparece um grande número de intervenientes não estatais com o desiderato de realizar tarefas que eram tradicionalmente de autoridades estatais e organizações intergovernamentais. Em face dos desafios colocados, dentro dessas relações jurídicas complexas, numerosos princípios administrativos surgiram como instrumentos para adaptar o sistema internacional clássico de estados e organizações intergovernamentais para as exigências contemporâneas.

O autor suso mencionado (Chazournes, 2009) comenta, outrossim, que um número cada vez maior de necessidades e demandas ultrapassam as atribuições dos órgãos tradicionais, seja em termos de objetivos, técnicos ou financeiros, o que ocasiona a criação de outros entes globais ou um maior leque de atribuições e tarefas para os já estabelecidos. Destaca que o crescimento da importância dos atores não estatais e os benefícios para as organizações internacionais podem derivar da colaboração entre eles. A participação de todos os agentes interessados e preocupados em determinada causa aumenta a representatividade, legitimidade e eficácia dos entes envolvidos.

É nesse cenário que atua a ISO, regulamentando e padronizando processos, produtos e serviços, atividade esta que deveria ser, a princípio, realizada por um ente estatal doméstico e não por um organismos não governamental internacional.

Relevante pontuar, também, que há apenas um membro da ISO por país, sendo tal membro o representante da aludida entidade no âmbito doméstico. A Associação Brasileira de Normas Técnicas – ABNT, aliás, é membro da ISO no Brasil, na condição de membro fundador.

Por sua vez, é observável que não há uma igualdade plena entre todos os membros, pois há distinções na forma de participação, possuindo direito a voto apenas os membros efetivos.

O leque de padrões proposto pela ISO é bastante amplo e numeroso, com a emissão de certificações em produtos bancários, serviços diversos, adequação das práticas a proteção do meio ambiente, dentre outros. A título exemplificativo, veja-se alguns tipos de certificados que podem ser emitidos pela ISO:

ISO 9000 Quality management

ISO 14000 Environmental management

ISO 3166 Country codes

ISO 26000 Social responsibility

ISO 50001 Energy management

ISO 31000 Risk management

ISO 22000 Food safety management

ISO 27001 Information security management

ISO 45001 Occupational health and safety

ISO 37001 Anti-bribery management systems

ISO 13485 Medical devices

Os padrões mais conhecidos no Brasil são a ISO 9000, voltada para gestão da qualidade, e a ISO 14000, voltada para a gestão do meio ambiente.

No mercado empresarial, uma empresa que detém uma certificação ISO 9001 consegue maior credibilidade perante os stakeholders, por ter a sua gestão aderente as normas ditadas por aquela entidade não governamental. De igual forma, há uma maior aceitação de seus produtos e serviços, no mercado interno e externo, quando possuem o selo de qualidade ISO.

Desta forma, percebe-se que a influência da ISO em ditar regras, com amplitude internacional, é bastante grande e penetra em diversos setores, ao arrepio de um controle direto de órgãos governamentais.

De outra senda, mesmo sem um controle direto do Estado nacional, pode-se argumentar que a unificação da padronização, a nível global, é salutar, pois viabiliza maior interação entre países diversos, sem discrepâncias nos métodos e qualidade dos produtos e serviços ofertados, principalmente num mercado multicêntrico globalizado.

Heilmann (2011) argumenta que quanto mais acelerada se tornou a busca de um mercado livre, sem fronteiras, mais se viu afetado o conteúdo do direito na ordem internacional por questões de interesses estatais e da mobilidade de bens, serviços e de pessoas exigindo cada vez mais a atuação administrativa dos distintos países.

Nessa linha, uma padronização emitida por um organismos não governamental internacional, como a ISO, facilita esse mercado livre supracitado e a mobilidade de bens e serviços, na medida em que uniformiza e iguala a produção para todos os países, de maneira indistinta.

Farias (2011) igualmente, ao tratar dos efeitos da crise financeira de 2008 e dos mecanismos para evitar que se repita, defende que deve existir uma normatividade espontânea através de mecanismos internacionais sem fins lucrativos para criar padrões internacionais a serem seguidos ainda que sem serem vinculantes do ponto de vista estritamente legal.

Ele (FARIAS, 2011) propõe, ainda, uma desjuridificação do mercado, com estratégias como permitir que as partes e atores sociais e econômicos tentem definir, de maneira consensual, o conteúdo das normas, afastando a legislação ordinariamente simples para tratar de questões técnicas complexas. Propõe inverter a lógica de hierarquia entre o direito positivo e o mercado, possibilitando que a lei se torne mais funcional a sociedade e a economia, com um apelo mais pragmático.

É exatamente isso que acontece no caso da ISO. É o mercado, desvinculado diretamente dos Estados e da sua respectiva legislação, que impulsiona a criação dos padrões que devem ser seguidos, com o apoio de especialistas do setor interessado.

Por conta de tais fatores, faz-se necessário verificar como tais padrões são criados e como são emitidos os certificados de tal organismo internacional não governamental que influi em diversos setores da sociedade.


3 Como são criados os padrões iso e são emitidas as certificações

É relevante destacar que a definição de um determinado padrão pode ocasionar um aumento do custo de produção de um determinado bem ao, por exemplo, impedir determinada utilização de insumo na fabricação, por afetar supostamente o meio ambiente, ou, ao invés disso, exigir determinado insumo, mais sofisticado e mais caro.

Berman (2012) argumenta, analisando as regras emanadas do ICH – International Conference on Harmonisation of Technical Requirements for Registration of Pharmaceuticals for Human Use – outra entidade que cuida de padronização, no ramo de medicamentos, que, nos países em desenvolvimento, os padrões da ICH afetam até a produção de medicamentos genéricos, aumentando os seus custos. A adoção de tais padrões  pode ocasionar efeitos adversos na disponibilidade de medicamentos nos países em desenvolvimento. O risco de não produzir os medicamentos para a população seria muito mais gravoso do que não seguir as normas da ICH.

Ele (BERMAN, 2012) critica que tais padrões, emitidos pelo ICH, apesar de, inicialmente estejam voltados para os EUA, Japão e União Europeia, hoje são padrões globais que utilizam procedimentos desnecessariamente caros, para a produção dos medicamentos, mas que não trazem garantia de benefícios para a saúde pública. Grandes companhias absorvem tais custos facilmente, ao contrário das pequenas indústrias. Isso pode levar, assim, a uma restrição da competitividade.

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Assim, um agente transnacional externo, sem obediência ao regramento nacional, pode ocasionar um impacto direto na economia de um determinado país, mesmo que não haja uma legislação disciplinando a matéria. Isso ocorre tanto no caso do ICH como no caso da ISO.

Mendes (2011) aponta que a participação de pessoas singulares ou coletivas na elaboração de normas globais tem sido largamente percebida, demonstrando que o direito internacional global vem, cada vez mais, interferindo nas condutas privadas de âmbito global.

Isso é percebido nos casos em que os padrões ISO são exigidos. Mesmo que exista padrões nacionais, divergentes e por vezes mais baratos do que padrão ISO, que garantam plenamente uma qualidade de um produto, por exemplo, o INMETRO, a aceitação do padrão ISO é muito maior, mormente no mercado internacional, que pode, até mesmo, rejeitar produtos nacionais não aderente as práticas da ISO, mesmo que estejam de acordo com os padrões nacionais.

Ao desenvolver um standard, segundo a ISO, é realizado uma reunião de um comitê técnico, formado por experts na área que se pretende estabelecer o padrão, em que se discute e negocia um rascunho de padronização.

Após a definição do padrão internacional desejável, tal rascunho (draft) é disponibilizado para os membros para que comentem o trabalho realizado pelos experts e para que votem.

Se a votação for unânime, o padrão ISO é estabelecido. Do contrário, o rascunho volta para a equipe técnica para a realização de ajustes requeridos e propostos.

A ISO segue os seguintes princípios para o desenvolvimento dos seus padrões:

1. ISO standards respond to a need in the market

2. ISO standards are based on global expert opinion

3. ISO standards are developed through a multi-stakeholder process

4. ISO standards are based on a consensus

Seguindo tais princípios, os padrões ISO observam as necessidades do mercado, permitindo a participação de experts de diversas áreas do mundo para que contribuam no rascunho de padronização. Segundo a ISO, os comitês técnicos não possuem apenas especialistas da indústria, mas também associação de consumidores, ONGs, universidades e governo.

É tal comitê misto, composto de diversas partes interessadas, é que formula o rascunho que será posto para a votação.

No entanto, no estágio de aprovação, apenas os membros com direito a voto participam, sendo necessário uma votação qualificada para que o padrão seja aceito: é necessário a aprovação por uma maioria de dois terços.

De igual forma, nas diretrizes da ISO, é previsto a possibilidade de revisão das normas já publicadas.

Desta forma, percebe-se que, as diretrizes propostas para o estabelecimento de padrões pela ISO, ao menos formalmente, estão aderentes aos mecanismos do Direito Administrativo Global, como a transparência, a participação dos interessados, a accountability, tomada de decisão democrática e a possibilidade de revisão das decisões tomadas.

Kingsbury e Krisch (2012) explicam que tais mecanismos estão emergindo, no âmbito de entidades internacionais, para melhorar a accountability no processo de tomada de decisões de regulação global. Explicita também que tanto no ambiente interno como internacional são similares, com a busca pela transparência, participação e revisão como elementos centrais de todos os mecanismos regulatórios.

Mendes (2011) entende que os mecanismos e procedimentos de participação assegurados por organismos internacionais têm sido interpretados por muitos atores como um meio de aumentar a legitimidade democrática, responsabilidade, transparência e visibilidade na tomada de decisão por organismos internacionais, compensando, assim, a falta de estruturas democráticas adequadas a nível global. Sem dúvida, vários mecanismos de participação estão sendo colocados em prática por várias organizações internacionais, como a ISO.

Apesar de não existir um controle direto de entes governamentais, regulando as suas ações por meio de Leis domésticas, as diretrizes estabelecidas pela própria ISO para a criação de padrões são relevantes, bem diferente de decisões tomadas “às escuras”, em que os interessados não tomam conhecimento prévio e nem tem a oportunidade de expressar suas opiniões acerca das regras a serem estabelecidas.

Cabe ponderar que tais mecanismos, no entanto, não afastam a possibilidade de entidades mais poderosas, como os grandes empresários e países mais desenvolvidos, ainda que não participem diretamente como membros, terem mais influência e direcionar as regras de padronização da ISO, para atendimento de seus interesses particulares, como restringir a competição ou a entrada de países menos desenvolvidos em determinado ramo de negócio.

Por sua vez, na maioria dos padrões, é proposto um período de implementação nas entidades interessadas em aderir aos padrões ISO, com vistas a possibilitar a entidade interessada em obter a certificação ISO se adaptar as suas exigências. Após a adaptação e adequação ao padrão estabelecido, um auditor certificador independente procederá a verificação se os procedimentos e técnicas utilizadas estão condizentes com a norma.

Se tudo estiver de acordo com os parâmetros estabelecidos pela ISO, o certificado é emitido para a entidade requerente.

Destarte, percebe-se que, como toda proposta de padronização, a ISO não tem por objetivo a harmonização da regulamentação vigente, nacional e internacional, mas sim suplantá-las, através da imposição de uma regulamentação própria, muitas vezes estranha da nacional. Não há, portanto, espaço para flexibilização e adequação do padrão ISO as peculiaridades locais.

Cabe ponderar, entretanto, que padrão ISO é facultativo, não obrigatório, mas, mesmo assim, acaba por influir em diversos ramos.

No setor privado, tais certificações são relevantes e influem significativamente para a reputação da entidade que está em conformidade com os ditames da ISO, inclusive a nível internacional.

Nessa seara, ao aderir aos parâmetros da ISO, a questão reputacional é muito relevante, pois quem adere ao padrão ISO, é mais bem visto diante dos stakeholders, nacionais e internacionais, pois possui um indicativo que age de acordo com as regras internacionais estabelecidas e possui, a priori, qualidade na sua gestão, produtos e serviços.

Deve-se pontuar, também, que, de acordo com o conceito de Direito Administrativo Global, exposto por Kingsbury e Krisch (2012), há questões que perpassam pela constatação de que várias questões administrativas e regulatórias veem ocorrendo em nível global e não local. Como exemplo, diversas normatizações e decisões de âmbito internacional, como as decisões do conselho de segurança da ONU ou normas emanadas do Banco Mundial.

Heilmann (2011), por sua vez, corrobora com tal entendimento ao afirmar que diante de uma intensificação do poderio de instituições internacionais (como OMS, Banco Mundial, FMI, etc.), a estrutura estatal acabou sofrendo uma crise, sendo perceptível, uma desestruturação do estado social, interno, dando margem a uma estrutura internacional com vários players interagindo em prol de uma estrutura globalizada, com forte tendência notadamente ocidental.

Assim, não é possível ignorar que o mundo está se tornando, cada vez mais, internacionalmente regulado, não apenas por meio de tratados e regras internacionais formalmente emanadas dos estados, mas, muitas vezes, por regulamentações privadas de âmbito internacional.

Entretanto, no momento em que a Administração Pública requer, como conditio sine qua non, para o seu fornecedor certificado ISO em uma licitação, pode existir consequências no certame que merecem ser verificadas e analisadas.

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Sobre o autor
Alexandre Santos Sampaio

Advogado. Mestre em Direito pela Uniceub - Centro Universitário de Brasília. Especialista em Direito Público pela Associação Educacional Unyahna. Especialista em Direito Civil pela Universidade Federal da Bahia. Bacharel em Direito pela Universidade Católica do Salvador. Bacharel em Administração pela Universidade do Estado da Bahia.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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