A exigência de certificação ISO em licitações

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17/12/2017 às 10:36
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4 As regras de licitação e as exigências de habilitação

Destaca-se que o certame é a regra nas contratações no âmbito da Administração Pública. De acordo com a Constituição Federal, artigo 37, inciso XXI, a Administração Pública Direta e Indireta deve licitar se pretender contratar com terceiros. O mencionado dispositivo preceitua o seguinte:

XXI – ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.

Na mesma esteira, o art. 3º da Lei de Licitações, nº 8.666/93, dispõe que a “licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia, a seleção da proposta mais vantajosa para a administração”, dentre outros princípios.

Assim sendo, a regra é que o maior número de interessados participem da licitação, apresentando suas propostas para fornecer um produto ou prestar um determinado serviço.

De igual forma, as exigências, segundo o comando constitucional, relativas à qualificação técnica e econômica, somente são permitidas quando indispensáveis para a garantia da execução contratual.

Assim, qualquer empecilho ou dificuldade desarrazoada para a participação no certame de possíveis interessados, pode ser entendido como uma restrição à competitividade e, por consequência, ofensa ao princípio da isonomia e, também, ao art. 3º, inciso I, da Lei de Licitações, que veda a inclusão, nos atos convocatórios de certames licitatórios, de cláusulas impertinentes ou irrelevantes.

Isso não quer dizer que, quando for necessário estabelecer requisitos mínimos de participação no certame, com vistas à garantia a perfeita execução do contrato, a Administração Pública não possa fazê-lo. A esse respeito, Meirelles (1998, p. 239) argumenta:

Todavia não configura atentado ao princípio da igualdade aos licitantes o estabelecimento de requisitos mínimos de participação, no edital ou convite, porque a Administração pode e deve fixá-los, sempre que necessário à garantia da execução do contrato, à segurança e perfeição da obra ou serviço, à regularidade do fornecimento ou ao atendimento de qualquer outro interesse público.

Mais ainda: uma exigência descabida, que não seja indispensável para a execução contratual, pode ser entendida, inclusive, inconstitucional.

A corroborar com tal entendimento, Di Pietro (2014) pontua que exigências “que não são indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações, contribuem para tornar o procedimento da licitação ainda mais formalista e burocrático, desvirtuando os objetivos da licitação e infringindo o inciso XXI do artigo 37 da Constituição”.

Por conta disso, a Lei de Licitações discrimina quais os documentos são necessários para que eventual interessado possa se habilitar, no quesito qualificação técnica.

O art. 30 da Lei nº 8.666/93 elenca a documentação necessária para que a empresa comprove a sua qualificação técnica:

Art. 30.  A documentação relativa à qualificação técnica limitar-se-á a:

I - registro ou inscrição na entidade profissional competente;

II - comprovação de aptidão para desempenho de atividade pertinente e compatível em características, quantidades e prazos com o objeto da licitação, e indicação das instalações e do aparelhamento e do pessoal técnico adequados e disponíveis para a realização do objeto da licitação, bem como da qualificação de cada um dos membros da equipe técnica que se responsabilizará pelos trabalhos;

III - comprovação, fornecida pelo órgão licitante, de que recebeu os documentos, e, quando exigido, de que tomou conhecimento de todas as informações e das condições locais para o cumprimento das obrigações objeto da licitação;

IV - prova de atendimento de requisitos previstos em lei especial, quando for o caso.

§ 1º A comprovação de aptidão referida no inciso II do "caput" deste artigo, no caso das licitações pertinentes a obras e serviços, será feita por atestados fornecidos por pessoas jurídicas de direito público ou privado, devidamente registrados nas entidades profissionais competentes, limitadas as exigências a:

I - capacitação técnico-profissional: comprovação do licitante de possuir em seu quadro permanente, na data prevista para entrega da proposta, profissional de nível superior ou outro devidamente reconhecido pela entidade competente, detentor de atestado de responsabilidade técnica por execução de obra ou serviço de características semelhantes, limitadas estas exclusivamente às parcelas de maior relevância e valor significativo do objeto da licitação, vedadas as exigências de quantidades mínimas ou prazos máximos;

§ 2º As parcelas de maior relevância técnica e de valor significativo, mencionadas no parágrafo anterior, serão definidas no instrumento convocatório. (Redação dada pela Lei nº 8.883, de 1994)

§ 3º Será sempre admitida a comprovação de aptidão através de certidões ou atestados de obras ou serviços similares de complexidade tecnológica e operacional equivalente ou superior.

§ 4º Nas licitações para fornecimento de bens, a comprovação de aptidão, quando for o caso, será feita através de atestados fornecidos por pessoa jurídica de direito público ou privado.

§ 5º É vedada a exigência de comprovação de atividade ou de aptidão com limitações de tempo ou de época ou ainda em locais específicos, ou quaisquer outras não previstas nesta Lei, que inibam a participação na licitação.

§ 6º As exigências mínimas relativas a instalações de canteiros, máquinas, equipamentos e pessoal técnico especializado, considerados essenciais para o cumprimento do objeto da licitação, serão atendidas mediante a apresentação de relação explícita e da declaração formal da sua disponibilidade, sob as penas cabíveis, vedada as exigências de propriedade e de localização prévia.

Percebe-se que a Lei elenca exaustivamente qual a documentação poderá ser demandada do fornecedor interessado em participar da licitação, numerus clausus, não deixando margem a outras exigências, com vistas a evitar, como dito alhures, a restrição a competição e a criação de exigências, por vezes, dispensáveis

Assim, como requisito para a habilitação técnica, percebe-se que não há espaço para a exigência de que o fornecedor tenha, ou o seu produto esteja, certificado pela ISO ou por qualquer outra entidade de padronização.

Pode-se até cogitar atribuir uma pontuação extra no julgamento das propostas, que é uma fase posterior, a um produto ou a um serviço que possua o selo de qualidade ISO, mas não se deve impedir que outros fornecedores, com produtos e serviços que podem ter a mesma qualidade e utilidade, apesar da inexistência de prévia certificação de qualidade, participarem do certame.

Até porque determinado produto ou serviço pode ter qualidade sem a certificação ISO e ter um custo menor para a sua disponibilização, o que vai ao encontro do princípio da vantajosidade e da economicidade para a Administração Pública.

Em todo caso, causa certa estranheza a exigência de um padrão internacional, por mais bem conceituado que seja e que siga mecanismos de transparência e controle, pela Administração Pública, eis que tal padrão, como visto anteriormente, não se subordina, ao menos diretamente, ao crivo da legalidade do ordenamento jurídico doméstico.

Justen Filho (2014, p. 625) explica:

Tem-se cogitado da exigência da certificação ISO (em suas diversas variantes) como requisito de habilitação. O tema envolve grande risco de vício. A certificação ISO retrata uma certa concepção de excelência no cumprimento de rotinas e técnicas. Isso não significa que tal concepção seja necessária ou adequada à execução de um certo contrato administrativo.  Ou seja, muitos dos requisitos indispensáveis à aludida certificação podem ser desnecessários à execução satisfatória do objeto contratual. Por outro lado, é perfeitamente imaginável que a natureza de um contrato específico comporte certas peculiaridades de que a certificação não cogita. Em suma, há um enorme risco de que a exigência da certificação ISO represente uma indevida restrição ao direito de participar da licitação.

E complementa o referido doutrinador (JUSTEN FILHO, 2014, p. 625):

O essencial não é a certificação formal, mas o preenchimento dos requisitos necessários à satisfação dos interesses colocados sob a tutela do Estado. Se o sujeito preenche os requisitos, mas não dispõe da certificação, não pode ser impedido de participar do certame.

Dentro desse espeque, após a exposição da legislação que trata do tema, é relevante observar como andas a jurisprudência pátria a esse respeito.


5 A jurisprudência acerca das certificações ISO

O Tribunal de Contas da União – TCU, no Acórdão n.º 1085/2011-Plenário, sedimentou entendimento de que a exigência em licitações, na fase habilitatória, de certificação ISO é ilegal, não encontrando amparo na legislação, in casu, no já mencionado art. 30 da Lei nº 8.666/93:

As certificações nacionais correspondentes à família 9000 da ISO se referem, em linhas gerais, a critérios para implantação de sistemas de garantia da qualidade. Para obtê-los, a empresa deveria demonstrar a adequação de seus procedimentos de fabricação aos padrões estabelecidos na norma, o que garantiria, ao menos em tese, que os produtos oriundos dessa empresa tenham sempre as mesmas características. Todavia, isso não garante que eles tenham qualidade superior aos de uma empresa que não seja certificada. Além do que, obter a certificação ISO é faculdade das empresas – não há lei que a indique como condição para exercício de qualquer atividade. Restritiva, portanto, a exigência desse predicado como condição para qualificação em licitações, pois afastar os participantes não certificados reduz a possibilidade de alcance da melhor proposta para a Administração, sem que haja justificativa razoável para tanto.

A jurisprudência do TCU nesse sentido é farta como nos Acórdãos nº 512/2009, nº 2.521/2008, nº 173/2006 e nº 2.138/2005, todos Plenário.

Na mesma senda, o TCU manifestou-se no Acórdão nº 1526/2002 – Plenário, de Relatoria do Ministro Ubiratan Aguiar:

Os requisitos técnicos devem ser especificados de acordo com as normas da CNEN, não dos Certificados da série ISO 9000. Há que ser comprovada a capacidade de produzir bens e serviços que atendam às normas de segurança exigidas para o tipo de atividade desenvolvida, as quais devem ser de inteiro conhecimento da própria Eletronuclear. Há que se buscar a qualidade real do produto, não certificações que podem auxiliar a garantir essa qualidade, mas não garantem que outros que não a possuem não tenham a capacidade para atender ao interesse público.

Entretanto, aquele órgão de controle tem admitido tal exigência numa fase posterior, qual seja, na classificatória das propostas ofertadas, momento em que se pode comprovar a qualidade dos produtos e serviços sem restrição à competitividade.

É relevante ressaltar que a habilitação é uma fase inicial, voltada para verificar se o licitante é apto para participar, ou não, da disputa. Já na fase classificatória, o licitante já está habilitado e apresentou sua proposta, sendo eventual exigência de certificação direcionada para verificar as características e o preço do produto ou serviço ofertado, não constituindo a exigência, nesta fase, desta forma, um óbice à competição.

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Percebe-se que, apesar de no nascedouro da disputa ser incabível a exigência do padrão ISO, por restringir a participação de interessados, nada obsta que, na classificação, seja demandado a certificação, com o intuito de se aferir a qualidade do produto ou serviço ofertado na licitação.

À guisa de exemplo, no Acórdão nº 3380/2013 – Plenário, de relatoria do então Ministro Valmir Campelo, foi decidido que a exigência da certificação ISO 9001 do fabricante do equipamento licitado, na fase de habilitação dos competidores, não encontra guarida legal.

Por conta disso, o TCU decidiu por notificar a entidade envolvida da impropriedade verificada no instrumento convocatório, alertando que a reincidência dos envolvidos em casos da espécie poderá ensejar a aplicação de multa.

Não obstante a constatação da irregularidade pelo órgão de controle, foi decidido que não cabia a aplicação de multa aos envolvidos neste caso, pois não ficou caracterizada a culpabilidade das partes, nem tampouco prejuízo ao erário, razão pela qual a simples notificação ao ente público seria suficiente para evitar novos equívocos da espécie.

Tal entendimento nos parece razoável e adequado ao caso apresentado, pois, apesar de a exigência editalícia estar em desacordo com a Lei e com a jurisprudência do próprio TCU, a aplicação de uma penalidade seria desproporcional, mormente por não ter sido comprovado prejuízo ao erário.

Ademais, parece que o gestor da entidade pretendeu incluir a exigência de certificação ISO para garantir a qualidade do produto ofertado na licitação, o que vai ao encontro da eficiência e da busca pela proposta mais vantajosa.

Isso demonstra que os padrões emitidos pelo ISO, uma entidade estrangeira e não governamental, ao arrepio da legislação pátria, acabam por influenciar, não apenas o setor privado, mas também a própria Administração Pública interna.

Em outro caso, no Acórdão nº 2995/2013 – Plenário, de relatoria, igualmente, do então Ministro Valmir Campelo, tratou-se do certificado ISO 14001, que versa sobre o sistema de gestão ambiental.

Num pregão, foi exigido a apresentação de certificação ISO, ou similar, para comprovar a origem e qualidade da madeira utilizada. Isso de maneira exclusiva, sem dar margem a outros meios de prova que o produto atende aos requisitos do edital.

A decisão foi fundamentada com base na Instrução Normativa (IN) nº 1 do Ministério do Planejamento - MPOG, que trata sobre os critérios de sustentabilidade ambiental na aquisição de bens, bem como na legislação ambiental que trata do tema, apontando que as exigências ambientais não podem frustrar a competitividade da licitação e de que, além de certificados, é admitida qualquer outra prova que ateste que o produto atende aos requisitos de qualidade do instrumento convocatório.

Entretanto, o ministro entendeu que não estava comprovada restrição à competitividade, apesar da exigência de habilitação ser apenas por meio de certificado ISO, ou similar, em desacordo, portanto, com a mencionada instrução:

25.     Perante a vasta legislação ambiental vigente, em especial a que disciplina o correto manejo florestal, entendo que as empresas moveleiras, em sua maioria, possuem condições de atender a tal exigência, uma vez que a procedência legal da madeira é situação sine qua non para produzirem, sob pena de serem punidas nos termos da lei.

27.     Soma-se a isso, o fato de a Administração não poder ignorar a nova redação dada pela Lei nº 12.349/2010, ao art. 3º da Lei de Licitações, que coloca a sustentabilidade como parte do problema a ser considerado nas contratações públicas.

28.     Sobre essa obrigação, julgo que ao exigir “atestado de certificação ambiental quanto à madeira utilizada”, a UFCG, na condição de consumidor final, cumpre seu papel na busca do uso sustentável das florestas brasileiras; ao mesmo tempo em que contribui, diretamente, com a Política Nacional do Meio Ambiente, no que concerne “à compatibilização do desenvolvimento econômico-social com a preservação da qualidade do meio ambiente e do equilíbrio ecológico” (art. 4º, inciso I, da Lei 6.938, de agosto de 1981).

29.     A propósito, considero que, nesse aspecto, a administração pública pode contribuir fortemente para a preservação do meio ambiente. Com influência expressiva na economia nacional, as compras governamentais mostram-se importantes indutores da política ambiental brasileira.

30.     Assim, avalio que, considerando o rigor da legislação ambiental vigente, para o correto manejo florestal no Brasil, e ante as informações trazidas aos autos, a exigência ora questionada não foi fator decisivo para a restrição a competitividade do certame.

Neste ponto, percebe-se que há uma afirmação despida de qualquer fundamento, sendo uma ilação de que as empresas devem ter o certificado, por conta do rigor da legislação. Ademais, o entendimento exarado é contrário a própria instrução mencionada na decisão, que diz que as exigências de natureza ambiental não podem frustrar a competitividade do certame.

Assim sendo, os argumentos lançados na decisão são frágeis, com silogismo comprometido, em razão de uma falta de fatos robustos para ampará-lo.

Apesar disso, ficou demonstrado no Acórdão que a certificação não é um documento exclusivo e obrigatório, podendo ser comprovada a qualidade, de acordo com a IN nº 1 do MPOG, por qualquer meio idôneo.

Ficou demonstrado, portanto, ante a jurisprudência do órgão de controle citado, que os padrões ISO acabam por influenciar as contratações públicas, com a exigência do mesmo em certames. Ainda que não possa a sua exigência na habilitação técnica, é possível a sua imposição no julgamento das propostas.

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Sobre o autor
Alexandre Santos Sampaio

Advogado. Mestre em Direito pela Uniceub - Centro Universitário de Brasília. Especialista em Direito Público pela Associação Educacional Unyahna. Especialista em Direito Civil pela Universidade Federal da Bahia. Bacharel em Direito pela Universidade Católica do Salvador. Bacharel em Administração pela Universidade do Estado da Bahia.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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