As Cláusulas de Desempenho no Brasil: Pluripartidarismo, Governabilidade e a EC nº 97/2017

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18/12/2017 às 16:47
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A Emenda Constitucional nº 97/2017 renovou o debate acerca da inclusão das cláusulas de desempenho no ordenamento jurídico pátrio. Assim, é necessário entender as sensíveis relações entre o pluripartidarismo, a democracia e a governabilidade.

1. INTRODUÇÃO

O cenário contemporâneo da política nacional evidencia inúmeras angústias, pois o descrédito generalizado acerca da democracia representativa acaba por mitigar o próprio modelo partidário. Quiçá em razão destes sentimentos, os cidadãos, atentos às nuances do poder e escandalizados pelos desdobramentos atuais, observam com justificável desconfiança quaisquer propostas de reforma política, pois, aparentemente, tudo resulta na manutenção de privilégios da classe político-partidária.

É neste contexto que fora promulgada a Emenda Constitucional nº 97/2017, a qual estabeleceu no art. 17, § 3º da CF/88 as cláusulas de desempenho para que as agremiações partidárias obtenham recursos oriundos do fundo partidário e direito de acesso gratuito ao rádio e televisão. Houve, assim, a renovação do debate acerca da inclusão das cláusulas de desempenho no ordenamento jurídico pátrio, na qual grandes temas estão no cerne dos questionamentos, entre eles: as sensíveis relações entre o pluripartidarismo, a democracia e a governabilidade.

Ora, é inquestionável a necessidade precípua da representatividade das minorias na vida política do Estado Democrático de Direito, razão pela qual se busca conciliar tal participação com a imprescindível criação de instrumentos jurídicos que regulem, direta ou indiretamente, a proliferação exacerbada das agremiações partidárias. Neste sentido, surgem ascláusulas de desempenho ou de barreira, consistentes em regras que vinculam o funcionamento parlamentar dos partidos ao seu desempenho eleitoral.

Diante destes questionamentos, o presente artigo busca demonstrar a essencialidade da inclusão das cláusulas de desempenho para fins da regular governabilidade da nação, desta forma, iremos tratar inicialmente acerca da relação intrínseca entre o pluripartidarismo e a democracia.

A elevada fragmentação partidária vem provocando o aumento vertiginoso do número de agremiações políticas em funcionamento no Brasil, razão pela qual é importante explicitar os requisitos legais e constitucionais para a criação dos partidos políticos, elucidando o tratamento dado pelo ordenamento jurídico.

O resgate histórico nos permite culminar com a análise das alterações do novel § 3º do art. 17 da CF/88, demonstrando as principais mudanças trazidas pelo dispositivo que implanta, expressamente, no texto constitucional a cláusula de desempenho para racionalizar o dispêndio dos gastos públicos com o fundo partidário.

Versar acerca das cláusulas de desempenho não se limita ao mero aspecto eleitoral, porque as mesmas alteram profundamente as relações entre os cidadãos e os seus representantes, atingindo os aspectos basilares da democracia indireta. Trata-se, portanto, de um tema de notória importância prática que atinge toda a sociedade e que merece o adequado tratamento pela ciência do Direito.


2. PLUPARTIDARISMO E DEMOCRACIA

A democracia representativa pressupõe a existência de mecanismos que admitam a participação popular na vida política da nação, permitindo a reverberação da vontade e anseios do povo no exercício do poder estatal. Nisto consiste o papel primordial dos partidos políticos no âmago dos regimes democráticos, qual seja: manifestar a vontade organizada, ideais e princípios de parcelas dos cidadãos, assim como legitimar o poder político-estatal, denotando a autenticidade do sistema representativo.

No berço da democracia na Atenas Clássica, dos séculos XV e XIV a.C., os cidadãos atuavam diretamente mediante a Assembleia do Povo, denominada de Eclésia, decidindo as questões políticas, embora os seus participantes na realidade concerniam apenas a uma pequena parcela da população. Todavia, é clarividente que o modelo de democracia direta ateniense é impraticável no mundo contemporâneo, por razões óbvias de organização e dificuldades na captação das vontades individuais de cada cidadão, bem como a percepção de todos seus anseios, num universo de milhões de indivíduos.

Assim, vivemos numa partidocracia, a democracia partidária que permite captar a pretensão popular por meio de representantes eleitos, integrantes de uma agremiação partidária, as quais consistem em canais de assimilação da opinião pública e catalisação das aspirações surgidas no meio social, conforme leciona o ilustre doutrinador José Jairo Gomes (2017, p.70).

Os partidos políticos possuem personalidade jurídica de direito privado, podendo ser conceituadas como um:

grupo de indivíduos que se associam, estavelmente, em torno de um objetivo determinado, que é assumir e permanecer no poder ou, pelo menos, influenciar suas decisões e, ipso facto, pôr em prática uma determinada ideologia político-administrativa. (ALVES, 2017, p. 179).

Com base neste conceito, podemos inferir que os partidos políticos apresentam os seguintes elementos: associação de indivíduos, vinculação à determinada ideologia política, intuito de influir e permanecer no poder. Os aspectos constitutivos dos partidos políticos os distinguem dos conhecidos grupos de interesses, os quais realizam lobby junto ao governo e agentes públicos, já que estes não apresentam a organização, caráter ideológico e estabilidade próprios dos partidos políticos.

Neste contexto, cumpre esclarecer que a nossa Carta Magna adota o modelo de democracia indireta, representativa, porém mitigando-a através de instrumentos de democracia direta, tais como o plebiscito, referendo e a ação popular, nos termos do art. 1º, Parágrafo Único c/c art. 14, incisos I, II e II da CF/88. Ademais, a exigência da filiação partidária como condição de elegibilidade, como reza o art. 14, § 3º, inciso V da CF/88, vedando expressamente as candidaturas avulsas, em que pese à polêmica doutrinária e jurisprudencial acerca deste tema, evidencia que o sistema constitucional estabelece a imprescindibilidade dos partidos políticos para o exercício da soberania popular.

Embora a importância precípua dos partidos políticos encontre-se incrustada na Constituição Federal, no que concerne ao contexto fático das disputas eleitorais e na dialética das relações de poder no Estado brasileiro, é possível verificar que na atualidade, nos dizeres da professora Nathalia Masson:

a tradição partidária encontra-se enfraquecida, seja em razão dos desmedido personalismo que domina a vida política e a existência dos próprios partidos, seja pelo marcante regionalismo que tem orientado a sua formação. (MASSON, 2017, p. 384).

O descrédito do sistema partidário implica que a própria democracia representativa perpassa momentos de fragilidade, já que o mundo contemporâneo está marcado pela crise de representação, onde a atuação dos políticos, detentores de mandatos eletivos, muitas vezes apresenta-se desvinculada dos interesses coletivos. Assim, os inúmeros escândalos que diuturnamente assolam o país, explorados à exaustão pelos diversos meios de comunicação, resultam numa perigosa demonização da própria política.

Todavia, a política é essencial para a vida em sociedade, é nela que repousa a forma civilizada de resolução dos conflitos entre os diversos ideais e posicionamentos, onde podemos conciliar o debate e orientar os esforços na busca pelo aperfeiçoamento da máquina pública.

Como instrumento essencial à convivência e tomada de decisões no Estado Democrático de Direito, os partidos políticos consistem em meios para a percepção da vontade popular, razão pela qual é primordial o pluripartidarismo como forma de abranger as diversidades de pensamentos, prestigiando as minorias. Neste viés, a nossa Lex Fundamentals consignou o pluralismo político como fundamento do Estado brasileiro (art. 1º, inc. V da CF/88) e o pluripartidarismo como um basilar direito político do cidadão (art. 17, caput, da CF/88), preceito revestido de intangibilidade, já que se trata de um direito fundamental caracterizado como cláusula pétrea, nos moldes do art. 60, § 4º da CF/88.

Torna-se evidente que o pluripartidarismo, ou até mesmo o bipartidarismo, é imprescindível para a adequada existência da democracia, haja vista que ao longo da história imperou a inadmissibilidade da pluralidade partidária nas diversas ditaduras, cujo unipartidarismo, muitas vezes autodenominado de democrático pelos governos totalitários, instrumentalizou o poder incontestável de certos grupos políticos.

Entre as diversas nações unipartidárias destacam-se os atuais: Partido Comunista de Cuba (desde 1959), Partido Comunista da China (desde 1949), o Partido dos Trabalhadores da Coréia do Norte (desde 1948), Partido Baath da Síria (desde 1963), Partido Popular Revolucionário do Laos (desde 1975), bem como o antigo Partido Comunista da União Soviética (com existência entre 1922 e 1990). Constata-se que as violações aos direitos individuais e políticos ocorreram de forma acintosa nos países acima citados, o que denota a inadequação do rígido modelo do unipartidarismo na atual conjuntura democrática dos Estados.

Nesse diapasão, sendo o unipartidarismo, inequivocamente, um modelo inadequado para o exercício da soberania popular, afinal todas as demandas e ideais sociais não podem ser condensadas em um único partido político, também é imperativo considerar que a proliferação exacerbada de partidos políticos dificulta a governabilidade e consiste numa desvirtuação do sistema.

Diante da aferição da necessidade de aperfeiçoamento do pluripartidarismo, a criação das cláusulas de barreira ou desempenho emerge como uma polêmica estratégia para a limitação dos gastos estatais com partidos que não possuem representatividade junto ao povo, conforme será demonstrado neste artigo.


3. A CRIAÇÃO E AUMENTO VERTIGINOSO DOS PARTIDOS POLÍTICOS NO BRASIL.

Ab initio, cumpre salientar os aspectos legais para a criação dos partidos políticos no Brasil, destacando as exigências primordiais para a regular atuação do partido nas disputas eleitorais.

A liberdade de organização, criação, incorporação, fusão e extinção dos partidos políticos fora garantida pela Carta Magna (art. 14, caput), porém é cediço que nenhuma liberdade é absoluta no Estado Democrático de Direito, desta forma, é vedado a formação de agremiações que consistam em organização paramilitar (art. 17, inciso II, § 4º da CF/88).

Deste modo, a criação das agremiações partidárias inicia-se com a aquisição da sua personalidade jurídica mediante registro junto ao Cartório de Registro Civil das Pessoas Jurídicas da Capital Federal (art. 8º da LOPP).

Posteriormente, a agremiação deve submeter o seu estatuto ao registro no Tribunal Superior Eleitoral (art. 17, § 3º da CF/88), demonstrando o preenchimento dos seguintes preceitos, nos moldes do art. 17 da CF/88, vejamos:

a) Caráter nacional, comprovada, no período de dois anos, o apoio de eleitores não filiados a partidos políticos, concernente a pelo menos 0,5% dos votos na última eleição geral da Câmara dos Deputados, distribuídos por um terço, ou mais, dos Estados, com um mínimo de 0,1% do eleitorado de cada um deles (art. 7º, § 1º da Lei 9.096/95);

b) Proibição de recebimento de recursos financeiros de entidade ou governo estrangeiros ou de subordinação a estes, sedimentando o nacionalismo e ausência de interesses estrangeiros incutidos no partido em vias de registro;

c) Prestação de contas à justiça eleitoral, concernentes às contas partidárias através de escrituração contábil (art. 30 da Lei nº 9.096/95), sob pena de multa de até 20% no caso de desaprovação total ou parcial, impondo a devolução da importância irregular, bem como a prestação das contas de campanhas eleitorais, até 180 dias após a diplomação (Lei nº 9.504/97, art. 32, caput e parágrafo único).

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d) Funcionamento parlamentar de acordo com a lei, as agremiações partidárias, para fins de atuação nos órgãos legislativos, devem constituir suas lideranças de acordo com o estatuto do partido mediante a formação de uma bancada, das disposições regimentais e respectivas cláusulas, além das demais disposições legais (art. 12 da Lei nº 9.096/95). Neste ponto fora prevista pelo art. 13 da LOPP a cláusula de barreira ou desempenho estipulando exigências para que o partido obtenha funcionamento parlamentar, aquisição de recursos do fundo partidário e direito de antena. Entretanto, o STF quando do julgamento conjunto das ADI 1.351-3 e 1354-8, em 07/12/2006, declarou a inconstitucionalidade do dispositivo em tela, o que será pormenorizado e discutido neste trabalho.

O Tribunal Superior Eleitoral julga o requerimento de registro dos partidos conforme a observância de todos os requisitos legais e constitucionais, somente após ser admitido e perfectibilizado o registro é que a agremiação partidária obtém: a) o direito de participação no processo eleitoral, podendo participar das eleições, desde que o registro no TSE tenha sido realizado até um ano antes do pleito e tenha sido constituído órgão de direção do partido na circunscrição, conforme seu estatuto, até a data da convenção partidária (art. 4º da Lei nº 9.504/97); b) recebimento dos recursos do Fundo Partidário; c) direito de acesso gratuito ao rádio e à televisão e d) direito ao uso, com exclusividade, da denominação, da sigla e de símbolos, sendo proibida a utilização, por outra entidade partidária, de variações que induzam o eleitor ao erro ou confusão (art. 2º, § 3º da Lei nº 9.096/95).

Insta salientar que o recebimento dos recursos do fundo partidário e o direito de acesso gratuito ao rádio e à televisão, após a publicação da EC nº 97/2017, passará a ser concedido apenas aos partidos políticos que cumprirem as condições estabelecidas pela cláusula de desempenho prevista pelo art. 17, § 3º da CF/88, conforme as regras de transição estabelecidas pela respectiva Emenda, o que será detalhado neste trabalho.

Como se vê, para a efetiva criação e atuação parlamentar dos partidos políticos, é imprescindível a observância de diversas formalidades e preenchimento de requisitos legais e constitucionais, em que pese todas as exigências formais, é observada na atualidade o aumento vertiginoso do número de agremiações políticas e requerimentos de registros junto ao TSE.

Atualmente, 35 (trinta e cinco) partidos políticos já foram devidamente registrados no TSE, todavia, mais 69 (sessenta e nove) partidos estão em formação com pedidos de registro protocolados, o que pode resultar em cerca de 104 (cento e quatro) partidos políticos atuando no Brasil em meados de 2020, conforme projeção do Desembargador José Ricardo Porto[1] do TRE-PB.

Ora, causa certa perplexidade verificarmos algumas denominações de certos partidos que pleiteiam o seu registro junto ao TSE, destacando-se partidos como: PNC (Partido Nacional Corinthiano) e oPIRATAS (Partido Pirata do Brasil), entre outros. Diante deste cenário, questiona-se a necessidade pragmática da existência de tamanha fragmentação partidária, haja vista que muitos dos ideais abarcados pelos partidos em vias de registro, já se encontram, sobremaneira, inseridos nas demandas de partidos que já atuam no cenário nacional.

Ademais, é cediço que a fragmentação exacerbada de partidos políticos constitui numa séria inconsistência do exercício do Poder Estatal, porque a governabilidade é frontalmente ameaçada pelo desarrazoado número de partidos. Neste sentido, manifesta-se José Jairo Gomes ao aduzir:

O excesso de partidos políticos provoca instabilidade no poder, haja vista que fragmenta em demasia as forças políticas, impedindo a formação de maiorias sólidas e consistentes. Não contando com maioria no Parlamento, o governante é impelido a realizar inúmeros acordos – muitos deles inconfessáveis – para manter a governabilidade e a estabilidade política, de maneira a implantar as medidas e as políticas públicas entendidas como necessárias ou adequadas ao país. A história recente do Brasil revela a verdade dessa assertiva. Impende encontrar um ponto de equilíbrio, no qual a representação das minorias seja assegurada, mas também seja garantida a solidez das maiorias e, pois, a governabilidade. (GOMES, 2017, p. 151).

Conforme destacado pelo ilustre doutrinador, a ampliação em demasia da quantidade de partidos políticos dificulta a reunião de forças expressivas e uníssonas para a realização de imprescindíveis projetos políticos, bem como a consolidação de políticas públicas. A fragmentação torna onerosa a governabilidade, cujos grupos de interesses e partidos exigem enormes sacrifícios pelo Executivo, muitos deles dissonantes dos princípios republicanos, para fins do regular exercício do poder, o que provoca, notoriamente,instabilidade política e entraves ao desenvolvimento nacional.

Destarte, somos partidários da necessidade de instrumentos jurídicos aptos para obstar a fragmentação partidária exacerbada, mantendo a coerência interna nas regras de criação partidária, sempre em observância aos preceitos da democracia e governabilidade. Desta forma, o estabelecimento das cláusulas de desempenho ou de barreira é essencial para a manutenção do sistema eleitoral, desde que, manejados conforme o equilíbrio entre os direitos das minorias e a eficácia do exercício do poder público.

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Sobre o autor
Wendenberg de Aquino Santana

Advogado inscrito na OAB/PB sob nº 26.742, Bacharel em Direito pela Universidade Estadual da Paraíba - UEPB.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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