Inversão de cláusula penal em contrato de incorporação imobiliária

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Ao julgar o recurso representativo da controvérsia, objeto do Tema nº 971 dos julgamentos submetidos ao rito dos recursos repetitivos, o STJ precisará levar consideração o valor das parcelas pagas pelo consumidor e não o valor integral do contrato.

Segundo Orlando Gomes, “o contrato de incorporação imobiliária é sinalagmático, simplesmente consensual, oneroso, formal e de execução diferida”. A respeito das obrigações das partes subscritoras desse tipo de contrato, o doutrinador baiano também esclarece:

“Origina obrigações correlatas, cumprindo ao incorporador, fundamentalmente, em contraprestação do preço a cujo pagamento se obriga a outra parte, satisfazer a obrigação de resultado consistente na entrega da unidade autônoma construída. Entre as duas obrigações há dependência recíproca” (1).

Para Carlos Mário Velloso Filho, o contrato de promessa de compra e venda firmado entre o incorporador imobiliário e o promissário comprador “possui duas finalidades. Primeira: transmitir os direitos aquisitivos do futuro bem; segunda: captar os recursos necessários à construção” (2).

Assim, nessa espécie de contrato, o incorporador compromete-se a empreender, construir e entregar o imóvel. O comprador, a pagar as parcelas do preço do negócio.

Eventual atraso do promissário comprador em relação ao pagamento das parcelas do preço do bem geralmente é penalizado com multa moratória de 2% sobre o valor da parcela inadimplida, juros legais de 1% ao mês pro rata die e correção monetária, considerando-se sempre o valor da parcela inadimplida. Nesse particular, a penalidade para o consumidor em atraso tem amparo no próprio Código de Defesa do Consumidor, art. 52, § 1º.

De igual modo, o contrato de promessa de compra e venda também costuma prever incidência de multa fixada a título de cláusula penal (Código Civil, 408 e seguintes) para a hipótese de atraso da incorporadora em relação à data prevista para a entrega do imóvel, excluindo-se o prazo de tolerância previsto pelo artigo 48, § 2º, da Lei 4.591/64, tolerância esta amplamente aceita pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.

No entanto, é possível que no contrato de promessa de compra e venda firmado à luz da Lei 4.591/64 não conste sanção contra a incorporadora em atraso em relação à entrega do empreendimento.

Nessas situações, quando provocado, o Poder Judiciário tem adotado a prática de aplicar em desfavor da incorporadora em mora a mesma penalidade prevista para a hipótese de atraso do consumidor quanto ao pagamento das parcelas do preço do imóvel.

Trata-se da chamada inversão de cláusula penal, que consiste em penalizar a incorporadora, fazendo incidir em seu desfavor a mesma multa de 2% e também juros mensais de 1%, sobre o valor do contrato, frise-se. Para tanto, os magistrados costumam invocar o “princípio da simetria” e/ou da “equivalência contratual”.

É inegável a necessidade de se penalizar a incorporadora impontual, ou, dito de outro modo, de se compensar o consumidor ante o atraso injustificado, ainda mais levando-se em conta a prorrogação de prazo de entrega prevista pela cláusula de tolerância.

É nesse contexto que a questão  inversão de cláusula penal se encontra pendente de julgamento na Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça, desde o mês de abril do corrente ano de 2017, pelo rito dos artigos 1.036 e seguintes do Código de Processo Civil, com vistas a debater a “possibilidade ou não de inversão, em desfavor da construtora (fornecedor), da cláusula penal estipulada exclusivamente para o adquirente (consumidor), nos casos de inadimplemento da construtora em virtude de atraso na entrega de imóvel em construção objeto de contrato ou de promessa de compra e venda”.

A proposta de afetação realizada pelo Ministro Luís Felipe Salomão selecionou como representativo da referida controvérsia o REsp 1614721/DF, com a seguinte ementa:

“ProAfR no RECURSO ESPECIAL Nº 1.614.721 - DF (2016/0187952-6)

PROPOSTA DE AFETAÇÃO. RECURSO ESPECIAL. RITO DOS RECURSOS ESPECIAIS REPETITIVOS. COMPRA E VENDA DE IMÓVEIS NA PLANTA. ATRASO NA ENTREGA DO IMÓVEL. CONTROVÉRSIA ACERCA DA POSSIBILIDADE DE INVERSÃO, A FAVOR DO CONSUMIDOR, DA CLÁUSULA PENAL.

1. Delimitação da controvérsia: Definir acerca da possibilidade ou não de inversão, em desfavor da construtora (fornecedor), da cláusula penal estipulada exclusivamente para o adquirente (consumidor), nos casos de inadimplemento em virtude de atraso na entrega de imóvel em construção objeto de contrato ou de promessa de compra e venda.

2. RECURSO ESPECIAL AFETADO AO RITO DO ART. 1.036 CPC/2015.”

Objeto do Tema nº 971 dos julgamentos submetidos ao rito dos recursos repetitivos, a referida proposta de afetação gerou a determinação de suspensão nacional de todos os processos pendentes, individuais ou coletivos (Art. 1.037, II, CPC), que tratem da mesma questão.

Decorre do exposto que só estarão sujeitos à suspensão decorrente da proposta de afetação aqui ora em foco os processos onde os contratos sub judice não contenham cláusula penal fixada em desfavor da própria incorporadora (fornecedora) para a hipótese de atraso em relação à data pactuada para a entrega do imóvel.

Necessário, portanto, trazer ao debate questões suscitadas pela prática judicial de inversão pura e simples da cláusula penal prevista contra o consumidor.

Invocar o princípio da “equivalência contratual ou simetria” para justificar a inversão da cláusula penal parece não guardar simetria alguma com a cláusula invertida, uma vez que amplia sobremaneira a base de cálculo, deixando de considerar que o consumidor em atraso pagará multa e juros sobre o valor da parcela mensal inadimplida, e não pelo valor do contrato.

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Ou seja, a inversão automática da cláusula penal termina por não considerar nem o valor da parcela inadimplida e nem mesmo o valor efetivamente pago pela parte consumidora ao longo do contrato, adotando como base o valor integral deste, ensejando enriquecimento sem causa da parte consumidora, franco desequilíbrio à avença, e comprometendo, inclusive, o fundo monetário comum necessário à conclusão da construção do empreendimento. A abusividade às avessas é evidente e não esqueçamos que o Código de Defesa do Consumidor também busca o equilíbrio da relação consumerista em si e não só do sujeito consumidor.

A discussão a ser travada pelo Superior Tribunal de Justiça deverá levar em conta esse aspecto, de modo a que pela  inversão da cláusula penal não se perca de vista o risco de a equivalência invocada restar comprometida, se, em vez de considerar, por exemplo,  o  valor das parcelas efetivamente pagas ao longo do contrato, adotar-se como base de cálculo o valor integral deste.

Por fim, vale destacar que se o contrato em julgamento contiver cláusula que penalize a incorporadora em razão de atraso, o processo não estará enquadrado na delimitação objeto do Tema nº 971 acima referido, que, como visto, está reservada a julgamento de contratos com cláusula penal estipulada exclusivamente para o adquirente do imóvel.

O destaque é importante porque em muitas situações os juízes terminam por aplicar, em desfavor da incorporadora impontual, a inversão da cláusula penal e cumula-la com a penalidade existente em regramento contratual específico para a hipótese de atraso da promitente vendedora.

Sem medo da insistência na conclusão, enquanto o julgamento do recurso representativo da controvérsia objeto do Tema 971 dos julgamentos submetidos ao rito dos recursos repetitivos não for concluído, importa que os tribunais percebam que, existindo regramento contratual específico para a hipótese de mora da incorporadora, sabidamente pela hipótese de atraso em relação à data prevista para entrega do imóvel, esta não pode ser penalizada com a inversão da cláusula penal estipulada a hipótese de mora do promissório comprador.


Referências

01 Gomes, Orlando. Contratos – 5. ed. Rio: Forense, 1975, p. 546.  

02 https://www.conjur.com.br/2017-jul-02/carlos-velloso-filho-direitos-clientes-incorporacao-imobiliaria

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Sobre o autor
Iuri Vasconcelos Barros de Brito

Advogado. Sócio do escritório Rodrigues & Vasconcelos Advogados. Mestre em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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