O que será de nós diante de tudo isto?

20/12/2017 às 14:05
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Somente avançaremos com uma reforma no espírito do brasileiro.

            As crises institucionais e de cunho político, social e jurídica atravessadas no Brasil, contemporaneamente, reclamam inúmeras reflexões.

            É preciso pensar, a ausência de instrução mínima, de educação e de cultura têm levado a imensa maioria dos indivíduos que aqui habitam a ficar fragilizada perante as suas eventuais emoções, paixões e desejos face à ética neoliberal?

            Ao mesmo tempo em que temos, normativamente dizendo, postas previsões constitucionais de normas abstratas como dignidade da pessoa humana, liberdade, igualdade, pluralismo político, entre outras, a contemplação de tudo o que necessitamos para nos desenvolver indo além das conquistas dos Estados Liberal e Social em busca das felicidades coletiva e individual, assistimos à construção, no Brasil, de uma sociedade de canalhas, manipuladores, cínicos, egocêntricos e perversos, cuja vaidade se confunde com o ideal de felicidade?

            Em que medida a ética neoliberal tem deturpado e impedido a consecução real do Estado Democrático de Direito no cenário brasileiro, o qual possibilita a efetivação da democracia?

            Proponho, nesse quadrante, uma análise que perpasse três paradigmas, a fim de se buscar uma mediania à lá Aristóteles (2006) tanto do ponto de vista da felicidade coletiva, quanto da felicidade individual. Tratam-se do constitucional (como não poderia deixar de ser), do ético e do compreensivo. 

            Da perspectiva constitucional, gosto muito de uma passagem de Luís Roberto Barroso (2015) quando trabalha a ideia de que o Direito, enquanto norma jurídica positivada, oferece possibilidade de que o beneficiário da previsão normativa a faça atuar em seu favor, inclusive por meio de recurso à coação estatal. Normas jurídicas, segundo o Ministro do Supremo Tribunal Federal, e, especialmente, as normas constitucionais, tutelam bens jurídicos socialmente relevantes e interesses individuais.

            Assim, conforme Barroso (2015), um direito subjetivo constitucional confere a seu titular a faculdade de invocar a norma constitucional para assegurar-lhe a realização da situação jurídica nela contemplada e por ora não entregue. Via de regra, na vida social, as normas jurídicas são espontaneamente observadas e os direitos subjetivos delas decorrentes realizam-se por um processo natural e simples. Portanto, as normas jurídicas teriam, por si mesmas, uma eficácia racional ou intelectual, por tutelarem, em regra, valores que têm ascendência no espírito das pessoas.

            É bem verdade, como lembrou Daniel Sarmento (2010), as ordens jurídicas baseiam-se, de maneira explicita, ou não, em alguma ideia sobre o ser, o humano. Porém, tanto do ponto de vista da felicidade coletiva, quanto da individual, encontramo-nos, no Brasil, diante do chamado estado de coisas inconstitucional, devido à ineficácia social de normas protetivas a direitos ligados às suas consecuções.

            Sabe-se, não há o devido respeito às normas consagradoras de direitos que demandem ações estatais afirmativas como saúde, educação, cultura e trabalho adequados, bem como àquelas ligadas a questões muito intimas e atreladas ao respeito às crenças e religiões, à sexualidade e à eutanásia e seus desmembramentos, entre outros.

            É fato, algumas circunstancias tem impedido que sejamos livres e iguais, o que ocasiona, fatalmente, uma falência político-jurídica de convivência social. Quando me referi ao devido preparo educacional e cultural, o fiz tendo em mente variadas facetas do comportamento humano avistadas no Estado brasileiro.

            Como Sarmento (2010) lembrou, desenvolvendo Sérgio Buarque de Holanda, o Brasil é marcado como aquele país detentor do povo cordial, e isso tem aspectos positivos e negativos. Do primeiro, são reconhecidos seu calor humano, a simpatia e a generosidade. Quanto à última (generosidade), se mostra bastante questionável do meu ponto de vista. Estou mais propenso à existência de uma conveniência oportunista. Bom, do segundo, há uma imensa dificuldade no sentido de cumprir e exigir o cumprimento de normas gerais e impessoais de conduta, preferindo-se o famoso “jeitinho” brasileiro.

            Essas constatações, aliadas ao atual estágio da ética neoliberal e à ausência de referenciais densos educacionais, culturais e, acima de tudo, éticos, podem revelar valiosa sugestão para que todos entendamos melhor os problemas por nós enfrentados, os quais obstam a efetivação da felicidade em âmbito coletivo e individual.

            Mario Sergio Cortella (s.d.), em diálogo com Clóvis de Barros Filho sobre a ideia da ética como instrução, fomenta tratar-se a mesma de uma natureza exemplar, aspecto que, principalmente, algumas famílias, empresas e maior parte da mídia esquecem. Ou seja, como a nossa formação, dentro de uma sociedade e cultura, se dá a partir daquilo que temos como espelhamento de conduta, crianças e jovens, em grande medida, se formam eticamente a partir daquilo que observam como conduta prática correta do pai e da mãe, avô, avó, tio, tia etc., e, mais tarde, a partir da convivência com os amigos, no trabalho, bem como dos referencias passados pela mídia escrita e falada. Interroguemo-nos, nesse horizonte, qual discurso as crianças e jovens em geral têm assistido em suas casas e nesses demais locais? Nos parece, em regra, o narcísico-consumista.

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            Ao que tudo indica, como José Luiz Quadros de Magalhães (2010) já havia salientado, a representação do mundo é fundamental para a manutenção das relações sociais, pois representar é significar. Logo, quem tem poder domina os processos de construção dos significados dos significantes, possuindo a capacidade de construir o senso comum, seja em casa, no trabalho, na mídia, ou noutro lugar. Sob essa perspectiva, estariam os idealistas dos significantes do consumo construindo significados aptos a, adotando os dizeres de Bourdieu (2010), alocar na consciência coletiva símbolos a serviço da dominação, contribuindo para a integração real da classe dominante e uma integração fictícia da sociedade em seu conjunto, desmobilizando as classes dominadas.

            Percebamos assim, o processo de compreensão do mundo encontra-se maculado para uma imensa maioria, a qual tem se deparado com um único referencial de vida, aquele voltado ao gozo imediato, o qual encontra-se atrelado ao ter, ao possuir, ao consumir, seja a coisa (objeto) ou a pessoa (enquanto objeto). As pessoas, reitero, em regra, pelo que vejo, dormem e acordam com esse objetivo.

            Tenho que a consecução das felicidades coletiva e individual somente serão conquistadas a partir de uma hermenêutica constitucional que faça valer os conceitos homogêneos e heterogêneos legítimos da nossa sociedade, sendo o primeiro passo para tanto, uma reconstrução do processo de compreensão existencial e de mundo contemporâneos, no qual o giro hermenêutico se apresenta como ferramenta essencial, apresentando-se as teorias de Martin Heidegger e Hans-Georg Gadamer muito contundentes para a proposta.

            O primeiro, Heidegger (1988), com o seu Dasein, ou ser-aí - ser-no-mundo, trabalhou a ideia de que as condições e possibilidades existenciais da pessoa se manifestam a partir das escolhas que se dariam a partir dos fenômenos historicamente situados. Ou seja, conforme Pereira (2007), as ocorrências mundanas são compreendidas, pode-se dizer, com base nos fatos (fenômenos) enquanto tais e não do subjetivismo humano.

            Indo além, o segundo, Gadamer (1998), sustentou que a compreensão da verdade depende sempre de uma situação hermenêutica, do giro hermenêutico, que reivindica uma troca entre o compreender histórico e o modo ser da pessoa. Ou seja, todos nós temos pré-compreensões do mundo, as quais foram construídas por nossos conceitos filosóficos, sociológicos, políticos, econômicos etc., até então acumulados. Entretanto, quando nos deparamos com os fenômenos historicamente situados, deveremos procurar compreendê-los a partir desses e não sob as arestas das nossas preconcepções sobre o mundo posto, pois cada fenômeno tem algo a revelar sobre si, o que só poderá ser escancarado e, logo, descoberto, com essa troca de perspectiva.    

            Em outras palavras, e para finalizar, sou da opinião que somente avançaremos no sentido de obtermos uma leitura ideal do mundo contemporâneo e a consequente conquista das felicidades coletiva e individual, com uma reforma no espírito do brasileiro nos termos hermenêuticos propostos, pois se isso não ocorrer, prosseguiremos como estamos, donde encontramos pessoas extremamente individualistas e voltadas à satisfação pessoal, negando a existência do outro e dos seus direitos.  

Referências

ARISTOTELES. Ética a Nicômaco. Trad. de Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2006.

BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: Os conceitos Fundamentais e a Construção do Novo Modelo. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Trad. de Fernando Tomaz. 14. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.

CORTELLA, Mario Sergio; BARROS FILHO, Clóvis de. Ética e vergonha na cara. Le livros. DPG Editora e Papirus Editora.

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 2. ed. Petrópolis, 1998.

HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Trad. de Márcia de Sá Cavalcanti. Petrópolis: Vozes, 1998.

MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. A busca do real. Postado em: 28 junho 2010 no blog José Luiz Quadros de Magalhães. Disponível em: <http://joseluizquadrosdemagalhaes.blogspot.com.br/>. Acesso em 13 maio. 2011.

PEREIRA, Rodolfo Viana. Hermenêutica filosófica e constitucional. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.

SARMENTO, Daniel. Livres e iguais: estudos de direito constitucional. 2ª tiragem. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

  

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Sobre o autor
Hugo Garcez Duarte

Mestre em Direito.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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