CONCLUSÃO.
O presente trabalho buscou apresentar uma resposta à pergunta a que se propôs: como se pode ser compreender o papel desempenhado pelos assim chamados Tribunais Constitucionais dentro do Sistema do Direito?
Para tanto se iniciou por apresentar os conceitos principais que delineiam toda a teoria luhmanniana, bem como em explicar porque ela pode representar uma resposta adequada ao atual cenário em que se encontra a sociedade. Dito de outro modo: a Teoria dos Sistemas objetiva explicar e descrever como a sociedade passou a se estruturar após a sua entrada na modernidade, principalmente com o desenvolvimento da concepção de indivíduo, que muito mais complexa que as antigas dicotomias, por exemplo, a fixada entre gregos e bárbaros, que por si só davam conta de sintetizar todos os reflexos produzidos.
Hoje esse aumento de complexidade pode ser observado como um processo de diferenciação funcional da sociedade, que passou a reagir de modo diverso aos diferentes estímulos existentes. Direito, Política, Religião, etc. passam a constituir cada qual um sistema presente no interior da sociedade que busca dar respostas próprias a problemas que também lhe são bem próprios.
Inegável, portanto, o aumento de complexidade que se instalou no seio dessa sociedade. E assim, se pode observar a importância e atualidade do pensamento de Niklas Luhmann, pois para esse autor, como visto a complexidade não representa um obstáculo, mas constitui a própria condição de existência do sistema social. Como lembra Álvarez (2003:278) e Dario Rodriguez (2002:28-29) os sistemas surgem, justamente, como forma de redução dessa complexidade. Limitando o olhar para o interior do sistema que passa a ficar circunscrito em si, lendo tudo mais como seu ambiente e operando através de um código que lhe seja próprio.
Sistema é, então, um "conjunto de elementos inter-relacionados, cuja unidade é dada por suas interações e cujas propriedades são distintas da soma desses elementos" (CHAI, 2004:50). É a identificação de uma igualdade em uma diferença que projeta a distinção entre sistema e ambiente (ÁLVAREZ, 2003: 281), deste modo, o sistema se constitui e se conserva mediante a criação e recriação dessa diferença. Tal processo permite ao sistema desenvolver a autoreferência, isto é, "capacidade de estabelecer aquelas relações entre si ao mesmo tempo em que diferenciam essas relações das relações mantidas com seu ambiente" (CHAI, 2004:50), e que permitem o fechamento operacional do mesmo sistema.
O próximo conceito a ser compreendido é, então, o de operação. Esse termo foi definido como sendo acontecimentos, isto é, atualizações de possibilidades de sentido da comunicação que acontece no interior do sistema. Isso, porque Luhmann compreende os sistemas como fechados operacionalmente, ou seja, não há comunicação entre sistema e ambiente. O ambiente apenas funciona irritando o sistema, de modo que este interprete o elemento comunicativo externo à luz de sua própria linguagem.
O fechamento operacional traz, dessa forma, para o sistema a necessidade de autoregulação. Destarte, ele lança mão de um código próprio. O código é o elemento que ordena a totalidade do processo, em torno do qual os outros elementos gravitam e estabelecem configurações variáveis. Conforme Esteves (1993), o código é o elemento que permite as operações no interior do sistema, que produz informações e que identifica um ruído. Ele separa o que é sistema do ambiente e se forma através de um binarismo que faz com que o sistema funcione assimetricamente e, com isso, oculte os paradoxos existentes em seu interior, bem como as tautologias. Daí decorre seu caráter eminentemente funcional.
Também como destacado, que é o próprio sistema que produz seu código, o que remete a idéia de autopoiesis importada da teoria biológica de Maturana e Varela. Os sistemas são autopoiéticos, porque são capazes de produzir por si mesmos não somente suas estruturas, como também os elementos de que são compostos Álvarez (2003:304).
Em seguida, buscou-se responder a pergunta formulada por Álvarez (2003:293): como se configura o sistema e suas relações com o ambiente, se não são capazes de manter relações recíprocas? Para tanto, fez-se a necessário aclarar o que seja o conceito de acoplamento estrutural para a teoria dos sistemas e como ele funciona na relação entre sistema e ambiente.
Como afirmado por Luhmann (apud Álvarez, 2003:293), este conceito pressupõe que todo sistema autopoiético opera como um sistema que pode determinar sua as próprias operações somente através de suas próprias estruturas. É através do acoplamento estrutural que se permitirá uma convivência entre sistema e ambiente, sem que o sistema se veja agredido pelo ambiente, apenas irritado, e até mesmo ameaçado de existência. O acoplamento estrutural permite ainda o duplo efeito de inclusão e exclusão, além de concentrarem e selecionar as irritações do ambiente, o que gera o efeito paradoxal de torná-las imperceptíveis (ÁLVAREZ, 2003:294).
As irritações, por sua vez, surgem como uma confrontação na a ordem interna do sistema com os eventos externos. Dessa forma, pode-se afirmar que se trata sempre de uma autoirritação, pois o sistema encontra em si mesmo as causas da irritação e aprende com isso, quer para imputar a irritação ao ambiente e, com isso, tratá-la como casual, quer para buscar sua origem e eliminá-la (ÁLVAREZ, 2003:294).
Após tais considerações, o trabalho voltou seu olhar para o Sistema do Direito, para tentar explicar qual a semântica que os Tribunais constitucionais adquirem em seu interior. Mas para tanto, foi necessário aclarar o que a Teoria dos Sistemas entende por Constituição.
Pode-se afirmar que a função do direito está relacionada com expectativas, isto é, com a possibilidade de comunicação de expectativas de comportamento e, com isso, ao reconhecimento da comunicação. Ganha, então, relevância a questão da repetição, a fim de tentar estabilizar tal insegurança, pois uma vez que a comunicação necessita da figura do tempo para que, através da repetição, possibilite afirmações, reduz-se com isso a arbitrariedade na relação entre signo o significado (LUHMANN, 2002:187).
Mas, como visto, a relação tempo/estabilização de expectativas se dá por meio contrafático, o que mantém uma permanente contradição com o âmbito social, uma vez que nesse as conexões temporais normativas produzem novas oportunidades de consenso e dissenso, isto é, são situações nas quais a própria decisão deve tomar partido contra ou a favor de uma determinada expectativa (LUHMANN, 2002:187).
As conexões temporais, portanto, produzem tanto a conformidade quanto o desvio de condutas. Verifica-se, então, uma permanente tensão entre a dimensão temporal e a dimensão social, o que faz com que a norma fique sempre aberta para possibilidades de seu descumprimento. É por tudo que Luhmann irá afirma que uma das conseqüências mais importante da forma normativa e da função do direito é permitir sua diferenciação com o Sistema da Política (LUHMANN, 2002:207).
Mas isso não quer dizer que ambas se confundam, pois preexiste a diferenciação funcional entre direito e política. A política, distintamente do direito, faz uso do meio do poder, de modo que o poder político se articule como um poder indicativo superior que ameaça com seu caráter obrigatório.
Partindo de uma análise das Revoluções Norte-americana e Francesa, respectivamente, a sociologia, pelo prisma de uma Teoria dos Sistemas, passa a compreender a Constituição de maneira completamente diversa que faz o direito – no sentido que este a atribuí de fundamento ou vínculo último do direito. Como dirá Luhmann (1996:02), A constituição é uma reação à diferenciação entre direito e política, ou dito com uma ênfase ainda maior, à total separação de ambos os sistemas de funções e à conseqüente necessidade de uma religação entre eles. Ou seja, como dirá Corsi, trata-se de um:
"acoplamento estrutural de direito e política", entendendo-se esses como dois diferentes subsistemas da sociedade atual. Com essa formulação – muito abstrata, como sempre quando se trata da teoria dos sistemas – pretende-se descrever a situação na qual dois sistemas são completamente autônomos e, mediante uma estrutura comum (no caso, a Constituição), especificam, de modo extremamente circunscrito e seletivo, as possibilidades de "se irritarem" reciprocamente; no nosso caso, basta pensar na legislação como constante fator de irritação do Direito por parte da Política. Diversamente do que pode parecer à primeira vista, portanto, a invenção da Constituição é, sobretudo, uma reação à diferenciação (moderna) entre Direito e Política e uma tentativa de resolver (ou esconder!) os seus problemas: o problema da soberania popular e o problema da positivação (autodeterminação) do Direito (2001:172-173).
Todo o direito é posto, agora, em uma situação de problematicidade, de contingência, pois mesmo o legislador sendo capaz de criá-lo, não quer dizer que ele possa ser lícito. A Constituição passa a ser o vetor de ordenação do código direito/não-direito e, com isso atuando para a fundação da validade do direito. O direito pode produzir seu próprio elemento de distinção dos demais sistemas através da orientação de seu código binário específico - direito/não-direito. Assim, o recurso à positivação permite ao direito sua unidade e sua autofundação. Deste modo, a Constituição permite o fechamento do Sistema do Direito, mediante o seu reingresso no sistema.
Já com relação ao Sistema da Política, a necessidade de uma constituição é justificada à luz do problema da soberania caracteriza como a unidade do sistema a partir de um problema de decisão, ou seja, quais decisões podem ser vinculantes e quais não. Conforme Luhmann (1996:08):
No sistema político, mutatis mutandis, são reconhecíveis os problemas de autoreferenciabilidade que também irritam o sistema jurídico. Na fórmula da soberania se expressa uma tautologia: eu decido como decido. Se se acrescenta uma negação emerge um paradoxo: eu decido sem vínculos com efeitos vinculantes para todos inclusive também para mim mesmo a partir do momento em que faço parte do sistema: eu me vinculo e me desvinculo. Além do mais é evidente que esse "privilégio" só pode ser praticado em um lugar, ou seja, apenas em operações específicas. O sistema soberano requer o soberano - ainda que esse seja o "povo." No sistema, o decidir soberanamente é não apenas respeitado e dotado de poder de ação, mas também observado. Sob esse aspecto, a soberania define não mais o direito a um arbítrio incondicionado (o que no plano empírico seria dificilmente imaginável), mas apenas um indirizzo, uma diretriz, daí a regra: observa o observador que exerce a soberania no sistema.
É justamente a partir do acoplamento estrutural entre o Sistema do Direito e o Sistema da Política que se pode encontrar uma estabilidade de ambos os sistemas.
A partir do momento que o sistema político resolve com a Constituição os problemas de sua própria referenciabilidade, esse emprega, portanto, o direito. Esse emprego do direito só pode funcionar, no entanto, porque os sistemas não são congruentes, porque não se sobrepõem nem mesmo em uma medida mínima, mas, ao contrário, o sistema político pode se servir do sistema jurídico mediante heteroreferenciabilidade e, assim, mediante o recurso a um outro sistema funcional. O conceito de Estado, do mesmo modo, assinala a um só tempo uma organização e uma pessoa jurídica - segundo o sistema a partir do qual se o considera. Analogamente, a imensa amplitude do âmbito de aplicação que o poder político alcança com a dúplice codificação jurídica de todas as decisões políticas é condicionada pela nítida diferenciação dos sistemas (LUHMANN, 1996:10).
A partir dessa discussão, fica mais fácil compreender a importância do controle de constitucionalidade para o Sistema do Direito, que funciona como mecanismo de manutenção desse acoplamento estrutural e conseqüente fator de diferenciação entre o Sistema do Direito e o Sistema da Política.
Sob o prisma da Teoria dos Sistemas, tanto as concepções clássicas de Constituição defendidas por Hans Kelsen (1999) e Carl Schmitt (1996) se mostram insuficientes. De igual maneira a forma como ambos entendem que devesse se dar à proteção da Constituição, pela ação de um "guardião", que poderia ser um Tribunal ou o Chefe do Executivo, respectivamente.
Contudo, permanece a dúvida que permite atingir o objetivo especifico da presente monografia: sobre o que decidem esses Tribunais, para a Teoria dos sistemas?
Segundo Luhmann,
La decisión tiene siempre que ver con una alternativa: uno o más senderos elegibles – los que, a su vez, contienen situaciones, acontecimientos y también subsecuentes decisiones que resultan de esa primera decisión. Por consiguiente las decisiones subsecuentes no se podrían realizar sin una primera. Estas decisiones subsiguientes son previsibles dentro de márgenes muy restringidos, y si se trata de una pluralidad de decisiones son, en definitiva, imprevisibles. Sin embargo, la decisión misma no es un componente de la alternativa: no es uno de los senderos. Por eso hay que suponer que la decisión es el tercio excluso de la alternativa de a alternativa. Es la diferencia que constituye la alternativa, o con más precisión: es la unidad de esta diferencia (LUHMANN, 2002:369-370).
Com isso, a Teoria dos Sistemas nos remete a um paradoxo, que somente ganha contornos cognoscíveis a partir de um ponto cego, que atua como elemento que rompe com essa assimetria. Tal ponto cego será a dimensão temporal que o direito apresenta.
Como esto es posible, entonces se puede utilizar el presente como momento de la decisión: solidificar lo ya-no-cambiable (con relación al pasado) y lo todavía-cambiante (con relación al futuro) para introducir en el mundo (que es simultáneo) la forma de una alternativa. (...) Con este comportamiento selectivo se puede construir una alternativa que, por su parte, permite aprehender la situación como situación de decisión. Una decisión de lleva a cabo tan sólo si se temporaliza de esa manera. Por lo demás queda al libre albedrío experimentar el presente del mundo tal como se muestra (LUHMANN, 2002:370-371).
Sob essa luz, a decisão passa a operar, no presente, dentro de sua própria construção, não estando presa ao passado, mas lançando pretensões de determinar o futuro, considerando, para tanto, as conseqüências advindas dessas decisões.
Assim, tal colocação acaba por nos conduzir "à questão de sabermos se os efeitos do direito podem ser considerados como critérios para a determinação do próprio direito: em outras palavras, se o direito pode ser orientado por suas conseqüências" (MAGALHÃES, 1999:444). É por isso que
todo sistema de função necessita de um nível decisório dotado de uma elevada capacidade de agregação, que possa ser referência para um grande número de decisões, não obstante os detalhes de cada caso. Em se tratando do sistema do direito, este nível mais abstrato vai ser constituído, em parte, pela dogmática jurídica (através de seus conceitos e de suas teorias) e, em parte, no interior da casuística relativa aos princípios derivados da jurisprudência dos tribunais superiores (MAGALHÃES, 1999:445).
Mas os tribunais somente podem decidir com base no código jurídico – direito/não-direito – abandonando qualquer enfoque moralista, político ou utilitarista, isto é orientado ao benefício econômico da sociedade (LUHMANN, 2002:380). É, por isso, que decisões sobre a Constituição ganham relevo para o Sistema do Direito, pois fornecem duas importantes conseqüências. Uma é reafirmar que Constituição traz em si uma garantia procedimental (CATTONI DE OLIVEIRA, 2000:130), sobre o modo como se deverão estruturar as decisões, sem contudo, afirmar quem ela irá favorecer, o autor ou o réu.
Outra conseqüência é o fato de que as decisões, por serem frutos das próprias questões e controvérsias decidas pelos Tribunais, transformam-se em referência para a interpretação do próprio código em decisões subseqüentes, permitindo, de tal sorte, uma certa margem de previsibilidade, que contribuí na redução da complexidade do sistema e reafirma a função do direito, como elemento de estabilização de expectativa de comportamento.
Assim, torna-se fácil compreender o porquê do Judiciário ocupar o centro do Sistema do Direito, como afirma Luhmann (2002:383) e permite que se vislumbre que o Tribunal Constitucional, em todo caso, se apresenta como o núcleo desse sistema. Assim, sua atividade não é de proteção da Constituição, mas o de fornecimento de decisões a partir do código direito/não-direito, que além de interpretar o próprio código, fornecem referenciais para as decisões posteriores e atuam como instância primária da diferenciação do direito e do seu ambiente.