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Irã-Contras: quando o governo americano drogou seu povo

27/12/2017 às 00:14
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Crítica ao filme Freeway Crack in The System, que relembra escândalo Irã-Contras, em que Reagan trocou ocultamente armas com xiitas iranianos e cartéis colombianos para supressão de forças sandinistas, mediante autorização de entrada de cocaína nos EUA.

Assim como em partida de futebol, todos creem possuir opiniões infalíveis sobre o tema das drogas. Sem titubear, indicam-se vilões e mocinhos num jogo complexo que mata crescentemente, a cada ano, centenas de milhares de pessoas no mundo. Por isso, criminalizar ou descriminalizar o uso de substâncias; liberar e regulamentar produção, comércio e consumo; lidar com o fenômeno como questão prioritária de segurança, de saúde pública ou mesmo rega-lo à esfera da individualidade, reconhecendo o caráter cultural-recreativo, religioso e medicinal para certas drogas, tudo são conjecturas que somente serão adequadamente realizadas, se igualmente bem compreendidas as circunstâncias que levam ao trânsito quase desimpedido dessas substâncias no meio. O documentário “Freeway Crack in The System” , de Marc Levin, disponível na Netflix, ajuda nesta reflexão.

O filme aborda a geopolítica das drogas através dos relatos de Freeway Rick Ross, lendário traficante das décadas de 80 e 90, que, antes de cumprir 20 anos de prisão em regime fechado, dominou o controle da distribuição de cocaína e crack em quase todo território dos EUA, a partir das comunidades afro-americanas dos arredores de Los Angeles.

O documentário reúne ex-traficantes, antigos integrantes da DEA (sessão antidroga do Departamento de Justiça estadunidense), parlamentares dos EUA que endossaram, mas hoje condenam, o endurecimento das leis de drogas. Soma, ainda, contribuições do jornalista investigativo Gary Webb, vencedor do Prêmio Pulitzer de 1990, “suicidado” na esteira das denúncias ora reavivadas, sobre ocorrência de relações clandestinas entre o governo Ronald Reagan, xiitas iranianos, sicários anti-sandinistas e traficantes latino-americanos, no escândalo que ficou conhecido como Irã-Contras. Em síntese, a trama consistia em articulação engendrada nos finais da guerra fria para impedir o avanço iraquiano no oriente médio e revoluções socialistas na América Central. Via Israel, às escondidas dos órgãos internacionais de segurança e do congresso dos EUA, armas norte-americanas eram levadas ao golfo pérsico e vultosos financiamentos retornavam de lá direcionados a organizações contra-revolucionárias. Aportes expressivos também eram efetivados por cartéis colombianos de cocaína, que recebiam, em troca, permissão do governo dos EUA para desovar ali sua majestosa produção.

Paralelamente à crítica às relações promíscuas do governo estadunidense com o narcotráfico, o documentário expõe as incoerências da já comprovadamente fracassada “política de guerra às drogas”. Revela como são consolidadas as ligações estreitas entre consumidores e distribuidores primários, gangues insipientes e poderosas facções armadas, questionando, outrossim, acerca dos efeitos colaterais práticos de se optar por usar a tática institucional de combate ao terror com mais violência e terror. No ápice, condena a criminalização e o encarceramento em massa da população negra, chamando a atenção para o gravíssimo problema da estigmatização de um público que, no momento inicial do drama, era compreendido como injustiçado histórico, carente de direitos civis, estando em pleno processo tendencial de empoderamento político (sob a condução de destacadas lideranças do movimento), e que, doravante, passou a ser generalizadamente identificado como de periculosidade social.

No fim, a certeza de que elaborar conceitos sobre drogas a partir de premissas equivocadas, ignorando interesses geopolíticos, cifras bilionárias e disputas de poder, reduzindo a dimensão do problema ao crivo médio do cotidiano, é o que o mais pode querer o “status quo” para continuar soberano sobre o comércio universal, devorando unilateralmente os proveitos econômicos da indiscutivelmente enraizada rede adjacente de violência. Vale conferir, são apenas 1h:43min de revelações.

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Sobre o autor
Marcelo Uchôa

Advogado. Professor Doutor de Direito da Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Ex Secretário Especial de Políticas sobre Drogas do Ceará (Adjunto e Titular interino). Ex Coordenador Especial de Direitos Humanos do Governo do Ceará.

Informações sobre o texto

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