O acesso a água na cidade de Manaus:

uma questão de injustiça ambiental

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2 O PREÇO DE SE MORAR “MAL” E “LONGE”

A descrição das formas de ocupação e apropriação do espaço urbano foi promovida pela Escola de Chicago, que se dedicaram a estudar os princípios teóricos da ecologia vegetal e animal às comunidades humanas, procurando explicar o uso seletivo que os grupos humanos fazem das cidades.

Ao estudar os efeitos da imigração na cidade de Chicago, Howard Park verificou que a cidade funcionava como um organismo vivo, onde cada indivíduo possuía uma história e que quem melhor se adaptasse ao estilo de vida urbano conseguiria habitar as melhores áreas desse espaço.

Essas áreas surgiam naturalmente a partir da segregação e seleção de determinados grupos de pessoas, no caso os recém-chegados, que tenderiam a ocupar as zonas mais desfavorecidas da cidade e a segregação residencial se dava por meio da diferenciação econômica, ou seja, o espaço urbano seria produzido e controlado de acordo com os interesses das classes altas (MAILLO, 2010).

Até meados da década de 1970, os espaços urbanos e aglomerados estavam limitados às zonas administrativas Sul, Centro-Sul, Oeste e Centro-Oeste. Após a criação da Zona Franca de Manaus, a cidade recebeu forte migração, e outras áreas e novos bairros na cidade foram surgindo, sendo que alguns através de ocupações irregulares, como é o caso do bairro Coroado, que ocupou parte da área verde pertencente à UFAM - Universidade Federal do Amazonas (TORQUATO, SILVA FILHO,2016).

Segundo Oliveira (2007) as ocupações são estratégias que os segmentos populares encontram para ter acesso à moradia a partir da organização de “invasões” em lotes urbanos vazios. Elas se caracterizam-se por serem ações rápidas, normalmente tem-se a notícia de que uma invasão está em andamento através das informações repassadas na boca a boca, ou da troca mensagens de celular entre familiares e amigos, que rapidamente se dirigem até o local, o que implica no acesso imediato ao lote, possibilitando a construção contínua da moradia:

De acordo com a moradora Luciana Marques, 27, ocupante de um barraco localizado na rua Itapevi, comunidade Vista Alegre, bairro Santa Etelvina, Zona Norte, moradores ocupam o local há pouco mais de um ano. “Uns amigos me chamaram para morar aqui e estamos desde o ano passado. Nunca ninguém veio retirar a gente e não iremos mais sair daqui”, disse. (EM TEMPO, 2017)

Podemos sintetizar as invasões ou ocupações irregulares de terra como habitações localizadas em locais impróprios para moradia, como por exemplo em áreas de preservação ambiental, colocando em risco fatores ambientais como fauna e flora, bem como contribuindo para com a contaminação dos solos.

Em 2016, até o mês de outubro, a Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semmas) contabilizou 42 focos de ocupação irregular de terras, isso somente na capital. As áreas de preservação permanente (APPs) são as mais visadas pelos invasores, por estarem situadas nas proximidades de igarapés e corpos d’água e serem públicas. Também foram registradas ocupações em encostas e áreas de riscos, principalmente as localizadas nas Zonas Norte e Leste (EM TEMPO, 2017).

Esse tipo de formação de núcleo urbano, que cresce rapidamente para regiões periféricas, caracteriza um fenômeno demográfico que ocorre desde a década de 1970, tendo como principal precursor a Zona Franca e, consequentemente, o crescimento econômico e de oferta de empregos, ou, como prefere Ribeiro Filho, a explosão da periferia popular tem como causa a desestruturação do mundo ribeirinho-florestal na Amazônia em decorrência da implantação do modelo Zona Franca (2014, p. 19).

De acordo com Oliveira, boa parte do espaço urbano de Manaus foi fruto de ocupações. No período entre 2002 e 2004, surgiram, em Manaus, 54 novas ocupações e, desse total, 40 se consolidaram, transformando-se em bairros com carência de infraestrutura urbana de o todo tipo. A consequência disto foi que o número de bairros, reconhecidos ou não pela Prefeitura, quase dobrou a partir de 2002, passando de 60 para 110 bairros (OLIVEIRA; COSTA,2007).

A singularidade que encontramos nos deslocamentos intra-periféricos dos migrantes em Manaus está na fixação de sua moradia atual na periferia distante. (...) alguns aspectos devem ser considerados sobre a periferização do migrante. As causas fundamentais foram à aquisição da casa própria, o aluguel e a aquisição do terreno. O acesso à moradia própria é alcançado basicamente em bairros, loteamentos e ocupações distantes e isto se explica devido a sua baixa renda familiar e ao alto preço da terra na periferia imediata e intermediária. Ao se mudarem para novas áreas, afastadas do núcleo central, essa população influencia no processo de transformação quanto ao uso do solo urbano, tais como a descentralização, invasão e sucessão e segregação residencial (RIBEIRO FILHO, 2013, p. 10).

Desse modo, há uma expansão horizontal da cidade e, por conseguinte a incapacidade de suprir com rede de abastecimento de água, essas novas ocupações urbanas, sobretudo as que se localizam nas zonas Norte e Leste, que enfrentam dificuldades para implementação de serviços básicos, como redes de água e esgotos (GIATTI e CUTOLO, 2012, p. 01).

Segundo um documento disponibilizado no sítio da Manaus Ambiental, o consumo de água de uma habitação regular gira em torno de 20 mil litros mês, já o consumo de uma habitação irregular chega a 100 mil litros mês, citando como exemplo uma invasão denominada de Portelinha, localizada no bairro no São José II, na zona leste. Lá teria sido feita uma média do gasto de água de 700 litros por habitante ao dia e 90 mil litros por habitação ao mês (MANAUS AMBIENTAL, 2017).

2.1 O acesso à infraestrutura urbana refletido no local de moradia

Oliveira adverte que é extremamente importante procurar entender a cidade a partir da produção da moradia, pois é aí que podemos associar os vários campos de análise urbana, de maneira especial quando verificamos que os atuais problemas da sociedade parecem ser cada vez mais articulados como problemas de natureza espacial, visto que eles são explicitados pelas desigualdades socioespaciais (2007).

A água potável é um direito fundamental, pois diz respeito, entre outros, ao direito à saúde e o seu abastecimento está ligado aos serviços de esgoto sanitário, sendo competência do Município a vigilância acerca da potabilidade da água.

Contudo, o que se verifica é que as políticas públicas do setor de saneamento básico nem sempre alcançam o seu objetivo prioritário, ou seja, a universalização do acesso à água, da elevação da sua qualidade, bem como dispor de tarifas e taxas acessíveis a população (OLIVEIRA, 2007, p. 20).

Qual será o motivo para as zonas periféricas da cidade, em especial a Norte e Oeste, sofrerem com o abastecimento irregular de água potável, isso sem mencionar na falta no tratamento do esgoto? Será que realmente procedem todas justificativas apresentadas pela Manaus Ambiental?

É claro que existem as situações descritas pela concessionária, mas a tamanha dificuldade em universalizar o serviço, ao menos manter a sua regularidade em zonas específicas da cidade traz à tona duas possíveis explicações.

A primeira explicação está no fato da distribuição dos equipamentos de infraestrutura de abastecimento de água estar relacionada a critérios de diferenciação sócio espacial. Para Gomes o território é definido pelo acesso diferencial do qual ele é o objeto, pela hierarquia social da qual é a representado e de como o poder alcançado por esta ordem social é exercido dentro deste território. Ele conclui seu raciocínio afirmando que a cidadania não é somente uma representação dos indivíduos dentro do Estado nacional, mas, sem dúvida, um fenômeno muito mais complexo que incide no quadro da dinâmica territorial cotidiana da sociedade (GOMES, 2002, p. 139).

Bourdieu, em O Poder Simbólico, determina que, dentro das interações da vida cotidiana, identidades sociais são construídas. Assim, os atores sociais assumem determinados papeis, de dominantes ou dominados. Então quando os dominados nas relações simbólicas entram na luta em estado isolado, como por exemplo moramos mal e por isso estamos sujeitos a sofrer os mais diversos tipos de privação, eles não têm outra escolha a não ser a da aceitação, que pode ser resignada ou provocante, submissa ou revoltada) da definição dominante da sua identidade (BOURDIEU, 2012 p.124).

Mas, o que seria morar “mal”? Viver em bairros populares e distantes do Centro da cidade podem estabelecer situações de adversidade. A má qualidade residencial, os custos de moradia desproporcionais, os efeitos de vizinhança, o transporte coletivo e a distância entre a moradia e o emprego e as moradias em situação irregular.

 Para Torres (2003), a falta de políticas sociais, no caso a falta delas, contribuem para a ocorrência da segregação residencial. Esse tipo de segregação se dá devido a fatores econômicos, aliados a incapacidade do Estado em suprir as demandas de uma população vulnerável.

Segundo Villaça (2014), existem dois modelos de segregação: a voluntária, que corre quando o indivíduo reside em um local específico por sua própria iniciativa, e a involuntária, que, devido a forças externas, alheias a sua vontade, ele era obrigado a habitar ou sair de determinados espaços. A segregação residencial ou segregação espacial urbana acontece quando as classes sociais se concentram geograficamente em regiões ou bairros diferentes de uma cidade.

Um dos fatores que contribuem para essa demarcação do território, segundo Marques (2000), seria a seletividade hierárquica das políticas sociais, que consiste em uma cultura arraigada dentro da burocracia estatal, de que, por exemplo, determinados bairros ou zonas de uma cidade, recebam prioritariamente a implantação de melhorias, criação ou construção de equipamentos urbanos de melhor qualidade em detrimento das áreas mais periféricas.


3 ESPOLIAÇÃO URBANA: O QUE A ÁGUA TEM A VER COM ISSO?

 Quase sem exceção, as grandes corporações mercadoras da água, não conseguiram cumprir suas promessas de melhora, e além disso, aumentaram as tarifas da água a níveis que superam as possibilidades dos lares pobres (BALANYÁ et al, 2007 p.19). Desse modo, temos como segunda explicação para a dificuldade da Manaus Ambiental universalizar o acesso de água as Zonas Norte e Leste da cidade a teoria da espoliação urbana.           

[...] espoliação urbana é o somatório de extorsões que se opera através da inexistência ou precariedade de serviços de consumo coletivo que se apresentam como socialmente necessários em relação aos níveis de subsistência e que agudizam ainda mais a dilapidação que se realiza no âmbito das relações de trabalho (KOWARICK,1983, p. 59).

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A espoliação urbana se traduz na distinção, na desigualdade ao qual determinados atores sociais sofrem dentro da sociedade, cujo desenvolvimento provoca, gera as mais diversas formas variadas de exclusão social.

Kovarick pontua que as exclusões e privações as quais o trabalhador é submetido podem parecer pontuais ou casuais, mas na verdade são contínuas. Elas ocorrem em relação a moradia, transporte, luz, água, enfim, tudo aquilo que é primordial para a vida nas grandes metrópoles.

Segundo Kovarick, a espoliação urbana se constitui como uma espécie de mais valia absoluta urbana e fundamenta uma forma de controle social que apoiada numa representação da ordem, inspeciona a vida privada das pessoas enquanto transeuntes e moradores (2000, p. 16).

A espoliação urbana possui relação direta com a acumulação do capital e com o grau de pauperismo dela resultante, cujos padrões cotidianos da vida urbana podem piorar ou melhorar em razão dos que os moradores consigam obter do poder público em termos de serviços e equipamentos coletivos, subsídios à habitação ou a facilidades de acesso à terra (provida de infraestrutura).

 Esses processos normalmente variam de acordo com as conjunturas políticas do momento, podendo não ter relação direta com conquistas conseguidas na esfera as relações de trabalho (Kowarick, 2000, p.23)

Aliada à espoliação urbana, esses atores vivem em vulnerabilidade social e econômica, onde não tem acesso ou são incapazes de usar, de usufruir os bens e comodidades construídas pela sociedade. Em termos coletivos, pode ser identificado com uma situação de exploração ou desigualdade, fato que está em confronto direto com o conceito de dignidade humana (SOCZEK, 2008, p.20)

A água não pode ser substituída por outra coisa, e possuir água tratada nas torneiras de casa não pode ser considerado um privilégio de poucos. Petrella diz que ter água não é uma questão de escolha e exatamente por não ser substituída faz dela um bem social e comum, fundamental à vida.

 Justamente por isso é que ela não pode ser subordinada a um único princípio setorial de regulamentação, legitimação e valorização; ela se enquadra nos princípios do funcionamento da sociedade como um todo. (PETRELLA, 2002, p. 84).

Ao estudar a desigualdade de acesso a serviços de saneamento nos municípios brasileiros, utilizando a seletividade hierárquica das políticas como uma das variáveis, Saiani et al (2003), apontaram que, mesmo se não fossem cobradas tarifas, o simples custo de ligação as redes de abastecimento de água podem inviabilizar o acesso dos mais pobres aos serviços.

Saiani reforça também que o indivíduo, independentemente da capacidade de pagamento e da cobrança, ou não, pelos serviços, opta pelo acesso se for capaz de apreciar os benefícios que podem ser gerados. É claro que ter água não é uma opção, é uma necessidade.

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Sobre os autores
Erivaldo Cavalcanti

Avaliador ad hoc do Ministério da Educação/INEP, Doutor em Desenvolvimento Sustentável (Ciência socioambiental) pela Universidade Federal do Pará, possui Mestrado em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco e Pós-graduação lato sensu em Ensino de História pela Universidade Federal Rural de Pernambuco. Atualmente é pesquisador líder do Diretório de Grupos de Pesquisas do CNPq em Direito de águas, Professor dos Programas de Mestrado em Direito Ambiental e de Segurança Pública da UEA - Universidade do Estado do Amazonas e Membro e avaliador do CONPEDI - Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Direito, do Conselho Científico e do banco de especialistas da ABRADE - Associação Brasileira de Direito Educacional e Associado da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Parecerista da Revista de Estudos Jurídicos da Universidade Estadual Paulista - UNESP, do Brazilian Journal of Law, da Revista de Informação Legislativa do Senado Federal e da Revista da Academia Brasileira de Direito Constitucional. É editor da Revista de Direito Ambiental da Amazônia "Hiléia".

Carla Torquato

Professora e advogada,pesquisadora do CNPQ no grupo do pesquisa GEDA -Grupo de Estudos em Direito de Águas, da Universidade do Estado do Amazonas e associada ao CONPEDI - Conselho Nacional de Pesquisa e Pós Graduação em Direito e a Waterlat-Gobacit - Rede internacional de pesquisas sobre águas.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Artigo aceito para publicação, sob o título O ACESSO A ÁGUA EM MANAUS: UMA QUESTÃO DE MORADIA E SELETIVIDADE, no XXVI Congresso Nacional do CONPEDI (Conselho Nacional em Pesquisa e Pós-graduação em Direito) ocorrido na cidade de São Luiz do Maranhão em novembro/2017

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