Capa da publicação O Direito nas tragédias da Grécia Clássica
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As marcas jurídicas nos textos das tragédias helênicas.

Um exame histórico-conceitual

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4 Édipo Rei, de Sófocles: investigação e culpa

A tragédia Édipo Rei (430 a.C.) é para muitos a obra paradigmática do que foi a Tragédia grega. Nela se encontra “aquele aspecto do trágico de Sófocles, em que o ser humano se vê entregue a forças irracionais, sendo por elas impelido à desgraça e ao horror” (LESKY, 1996, p. 180). Não surpreende então que boa parte da peça centre-se na busca do assassino de Laio encampada por Édipo que envolve “tanto a ação legal particular (pois segundo a lei ática era o indivíduo, e não o Estado, quem processava por assassinato) como uma ação político-legal pública (pois o homem assassinado era rei de Tebas)” (KNOX, 1998, p.68). O que faz de Édipo Rei também uma peça de investigação policial – mais de um autor considerou o texto de Sófocles como o texto fundador do gênero policial na literatura – e, portanto, não é de se estranhar o recurso a terminologia jurídica presente nos debates entre os personagens. Exemplo disso pode ser aferido no seguinte diálogo, presente em Édipo Rei (vv. 95-102), no qual Creon (Creonte) comunica a Édipo o parecer de Apolo acerca da praga que atingia Tebas:

CREON: Escutarás tal qual ouvi do deus [Apolo].

Sem circunlóquio, Foibos, pleniluz,

Mandou-nos expulsar o miasma. Aqui

Cresceu, e há de crescer, se não ceifado.

ÉDIPO: Como nos depuramos? Qual desgraça?

CREON: Caçar o réu, pagar com morte o morto:

que escarcéu faz na polis este sangue!

ÉDIPO: Quem teve o azar da sorte, o deus o indica?

“Indicar” ou “informar” – mênyei – é um termo técnico dos tribunais referente a “uma denúncia apresentada perante a assembléia ateniense no que dizia respeito a crimes passados que o informante considerava dignos de investigação, mas que não podia ele próprio levar a juízo, uma vez que não era um cidadão” (KNOX, 1998, p. 69). No caso, o não-cidadão era o deus Apolo[9], que via o Oráculo de Delfos, trazia uma informação vital para o caso do assassinato de Laio: a identidade do criminoso. Esse seria apenas um exemplo dentre outros das marcas da linguagem jurídica no texto do Édipo Rei: o estabelecimento de uma comissão de investigação, recompensa e imunidade relativa a um denunciante envolvido no crime, procedimentos processuais idênticos ao de um processo meramente legal (KNOX, 1998, p. 70-91).


5  As Troianas, Eurípedes: a retórica dos tribunais no palco

Em 415 a.C. estréia em Atenas As Troianas, de Eurípedes, quase imediatamente após a sangrenta conquista de Melos[10] pelas forças da Liga de Delos. Na peça, Eurípides apresenta a situação calamitosa das mulheres troianas após a conquista da cidade pelos exércitos aqueus. A interpretação generalizada é que a peça é a condenação da guerra pelo ponto de vista de suas vítimas. É neste cenário, na versão de Eurípides para o ciclo troiano, que Menelau e Helena se reencontram. O ímpeto do rei espartano, incentivado por dez anos de guerra e pelas palavras da rainha troiana Hécuba, é matar a fugitiva. Contudo, ela pede a oportunidade de se defender:

HELENA: Talvez a mim – se bem ou mal eu parecer falar –

Não retrucarás que me julgas inimiga.

Mas eu, àquilo do que tu, creio, discutindo,

Me acusarás, responderei pondo em face

às tuas, minhas – e tuas – acusações.

Primeiro, essa [Hécuba] gerou as origens dos males,

Paris tendo gerado: depois, o velho [Príamo]

destruiu Tróia e a mim, ao não matar o bebê,

acre imitação de um tição – Alexandre, então.

A partir daí, o restante escuta como é.

Aquele julgou um triplo jugo de três deusas:

Bem o dom de Palas para Alexandre era

despovoar a Hélade, comandando frígios;

Hera jurou que sobre a Ásia e os limites da Europa

Paris, se a escolhesse, teria a soberania;

Cípris, com minha aparência se estonteando,

prometeu dá-la, se ultrapassasse as deusas

em beleza. Observa minha fala seguinte:

Cípris vence as deusas, e minhas bodas nisso

serviram à Hélade: nem dominados por bárbaros,

nem pego em armas, nem sob tirania.

No que a Hélade foi afortunada, eu fui destruída,

Vendida pela formusura, reprochada

Por quem deveria coroar minha cabeça. [...]

Castiga a deusa e sê mais poderoso que Zeus,

o qual tem domínio sobre os outros numes,

mas daquela é escravo: assim compreende-me.

[...] se pretendes dominar

os deuses, aspirar a isso é estúpido de tua parte (vv. 914-937; 948-950; 964-965)

A obra de Eurípedes, pródiga em contradições e influências das mais diversas, já foi ajustada às mais variadas interpretações: racionalismo extremado, defensor da religiosidade tradicional, manipulador de efeitos cênicos patéticos. Quem mais, na literatura clássica, faria “Hécuba raciocinar em termos de natureza e de lei quando o terror e a piedade por seus grandes infortúnios começavam justamente a nos arrancar lágrimas” (CASSIN, 1990, p.38). Não nos cabe aqui entrar nessa querela secular, mas apenas mostrar que o mundo dos tribunais atenienses também forneceu técnicas e conceitos para os diálogos presentes nas peças de Eurípedes, como a defesa de Helena acima transcrita evidencia. Nela fica clara a utilização da retórica jurídica na linguagem poética da tragédia. Para Werner Jaeger (2001, p.402) “a disputa retórica tornava-se cada vez mais um dos principais atrativos do teatro”. As contendas entre a ama e Fedra no Hipólito e entre Penteu e Dioniso nas Bacantes, além do já citado debate entre Hécuba e Helena nas Troianas, seriam exemplos de “artimanhas e sofismas desta sutileza retórica”, que fariam “um deliberado alarde de advocacia, e a sua verbosidade desperta nos contemporâneos ao mesmo tempo admiração e repugnância” (JAEGER, 2001, p. 402).

Helena, em sua autodefesa, tenta convencer a todos que a culpa, e a conseqüente responsabilidade pela Guerra de Tróia, não é sua e sim do poder de Cípris – a deusa Afrodite. Numa época em que surgiam os primeiros passos em direção a uma subjetividade que rompia com a tradição arcaica que ainda impregna as tragédias de Ésquilo e Sófocles, Helena tenta objetivar no poder de Cípris uma culpa que seus acusadores consideram subjetiva. Em outras palavras, o motor de suas ações não foi elaborada em sua consciência subjetiva, individual, e sim por um fator externo – a vontade não-humana de um nume. Por mais que em Sófocles a culpa de Édipo seja impulsionada por suas ações, o herói trágico ainda “é ‘culpado’ no sentido da maldição que pesa sobre eles, mas são ‘inocentes’ para nossa concepção subjetivista” (JAEGER, 2001, p. 403).  No lugar de personagens monolíticos do ponto de vista psicológico, com motivações claras, Eurípedes nos oferece indivíduos que padecem de uma psique dilacerada entre ditames racionais e emocionais: “Temos a noção e a percepção do que é honesto, mas não pomos em prática” (Hipólito, vv. 380-381) afirma Fedra, em consonância com Medeia que diz “Sim, percebo a perversidade que me atreverei a praticar, mas a paixão se sobrepõe às minhas decisões” (Medeia, vv. 214-216). O emergir dessa ligação necessária entre um eu responsável e minhas ações acabou por “esfumaçar as fronteiras entre culpabilidade e inocência” nos tribunais áticos segundo Jaeger (2001, p. 403).


6 A título de encerramento

Os dois exemplos acima citados servem como ilustração de como o discurso jurídico era utilizado no contexto trágico e cênico da tragédia grega. Tais exemplos não esgotam de modo algum tal fenômeno que não se limita ao que foi apresentado. O conflito entre Direito Natural e Direito Positivo na Antígona de Sófocles é um dentre outros exemplos que poderiam corroborar a tese aqui defendida. 

O pensamento e práticas jurídicas que surgem nas tragédias não são parâmetros estáticos e sim algo que, assim como a sociedade grega da século V a,C., estava problematizando uma série de valores tradicionais daquele contexto. Se a cidade pensa e reflete – e sente – a si mesma no espetáculo trágico, as dinâmicas e contradições inerentes a pólis são inerentes às tragédias. Em uma cidade no qual a vida nos tribunais faz parte do cotidiano, a intersecção entre o trágico e o jurídico mais que uma circunstância fortuita se mostra como inelutável.


7 Referências bibliográficas

ARISTÓTELES. Ética à Nicômaco. Brasília: EdUnB, 1985.

CASSIN, B. Ensaios sofísticos. São Paulo: Siciliano, 1990.

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Notas

[1] SERRA, 2008, p. 13-66.

[2] Sobre a noção de ágon entre os gregos cf. Kieslowski, 2005.

[3] Uma leitourgía é o financiamento de algum serviço público (religioso e militar, dentre outros) que partia de algum dos cidadãos ricos de Atenas. Cf. GABRIELSEN, 2010.

[4] O campo semântico de DIKH compreende desde “costumes”, “uso”, até “lei” e “direito”, passando por “processo particular movido por um indivíduo contra outro”. Cf. LIDDEL; SCOTT, p. 202 e 203.

[5] Sobre o caráter social e exteriorizado da psicologia do grego no período arcaico, Dodds (2002, p. 41) afirma que “foi uma infelicidade para os gregos que a idéia de justiça cósmica – que representava um avanço com relação à noção anterior de poderes divinos puramente arbitrários,e que conferiu uma sanção para a nova moralidade cívica – acabasse sendo associada à concepção primitiva da família, pois isso implicou que o peso do sentimento religioso e da lei decorrente bloqueasse a emergência de uma verdadeira visão de indivíduo, concebido como uma pessoa com direitos e responsabilidades próprios”.

[6]

[7] Cf. o modelo acabado desse paradigma da subjetividade que é construído no livro II de O Livre-Arbítrio de Santo Agostinho (1995).

[8] O problema também é tratado pela filosofia, desde o intelectualismo ético socrático até o tratamento dado por Aristóteles ao fenômeno da akrasia no Livro VII da Ética à Nicômaco (1985).

[9] Esse curioso dado, Apolo – um deus – ser considerado um estrangeiro, algo de difícil entendimento para nossa mentalidade cristã e universalista, pode ser compreendido a partir de algumas observações de Marcel Detienne sobre a relação entre a vida das póleis e os deuses: “Os deuses não se prendem à esfera do acessório ou do supérfulo. Fazem parte do essencial ao cotidiano [...] não se deveria concluir, apressadamente, que em última instância a cidade grega se encontra de fato sob a dominação dos deuses. Ao contrário, a prática das assembléias [...] levaria a pensar que, de certa maneira, as potestades divinas estão sujeitas às decisões da comunidade dos homens” (DETIENNE; SISSA, 1990, p. 233).

[10] Melos foi invadida em 416 a.C. pela Liga de Delos liderada por Atenas como parte da guerra destes contra a Liga do Peloponeso, encabeçada por Esparta. 

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Sobre o autor
Anderson Cleiton Fernandes Leite

Possui bacharelado e licenciatura em História pela Universidade de Brasília (2003) e mestrado stricto senso em Filosofia pela mesma instituição (2007). Concluiu, em 2010, curso de especialização lato sensu em Docência Superior: Metodologia e Práticas Aplicadas ao Ensino Superior (Centro Universitário Euro-Americano. Atualmente é professor do curso de Direito do Centro Universitário Unieuro.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LEITE, Anderson Cleiton Fernandes. As marcas jurídicas nos textos das tragédias helênicas.: Um exame histórico-conceitual. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5302, 6 jan. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/63184. Acesso em: 23 abr. 2024.

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