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A intervenção americana e britânica no Iraque:

uma análise sobre a sua legalidade e efeitos nas relações internacionais

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06/03/2005 às 00:00
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3. LEGITIMA DEFESA DO ESTADO NA CARTA DAS NAÇÕES UNIDAS

Tanto o direito internacional costumeiro quanto o positivo consagram há muito o emprego da legítima defesa por parte do Estado. A doutrina chega a conferir à legitima defesa status de direito subjetivo natural do Estado enquanto recurso necessário a garantir outro direito maior, qual seja o da sua preservação.

Interpretações extensivas da legitima defesa consagradas pelo direito internacional costumeiro e pelo artigo 51 da Carta da ONU foram e são constantemente utilizados como justificativa para invasões e intervenções. Assim dispõe o artigo:

Art. 51 Nada na presente Carta prejudicará o direito inerente de legitima defesa individual ou coletiva, no caso de ocorrer um ataque armado contra um membro das Nações Unidas, até que o Conselho de Segurança tenha tomado as medidas necessárias para a manutenção da paz e da segurança internacionais. As medidas tomadas pelos membros no exercício desse direito de legítima defesa serão comunicadas imediatamente ao Conselho de Segurança e não deverão, de modo algum, atingir a autoridade e a responsabilidade que a presente Carta atribui ao Conselho para levar a efeito, em qualquer tempo, a ação que julgar necessária à manutenção ou ao restabelecimento da paz e da segurança internacionais.

Inovando o antigo tratamento dada à legítima defesa pelos usos e costumes, a Carta estabelece condições prévias para o seu exercício, além de não deixar dúvidas sobre sua provisoriedade, até que o Conselho de Segurança adote as medidas que lhe competem.

Da mesma forma que ocorre nos ordenamentos internos dos Estados, a legítima defesa é uma delegação da autoridade que legitimamente poderia empregar o uso da força, mas, que em determinada situação, não pode se fazer presente, havendo um perigo atual de dano a um determinado bem jurídico. Neste sentido, esclarece o penalista Damásio de Jesus que a concepção jurídica moderna do instituto da legítima defesa surge apenas quando, na linha de Max Webber, o Estado reclama para si a exclusividade do uso da força como meio de castigar a ofensa pública ou privada. [23] No âmbito internacional, a autoridade competente para empregar ou autorizar o uso da força é o Conselho de Segurança, que, em não podendo atuar prontamente em determinada situação, permite-se ao Estado utilizar a força em caráter provisório, devendo informar, imediatamente ao Conselho para que proceda na restauração da paz.

Não obstante a disposição do artigo 51 ser inquestionavelmente restritiva, qualquer interpretação das normas sobre este tema, por mais extensivas, devem ter por base dois elementos: a proporcionalidade e a iminência perigo de dano ou agressão a um bem jurídico. A proporcionalidade no Direito Internacional foi consagrada no clássico episódio do navio Caroline. Esta embarcação era utilizada por rebelados canadenses para o transporte de armamentos e combatentes voluntários a lutar pela independência. Ao ancorar em território americano, no Estado de Nova York, tropas britânicas, sob a alegação de legitima defesa contra atos de pirataria, incendiou e atirou o navio Caroline à deriva sobre as Cataratas do Niágara, vindo a falecer diversos tripulantes americanos. A coroa britânica defendia-se com base na legítima defesa preventiva contra atos de pirataria, ao passo que a argumentação americana ressaltava ser ilegal o excesso no exercício da legítima defesa, sendo inaceitável a desproporcionalidade entre o bem jurídico violado e o bem jurídico protegido. O caso Caroline deu subsídios para a corrente doutrinária que admitia a defesa preventiva como forma juridicamente aceitável. Westlake bem apresenta essa forma de pensamento clássico, ao afirmar que um Estado pode antecipar sua defesa contra um possível ataque de outro Estado. [24]

Com o advento da Carta da ONU contudo, em especial por força do artigo 51, não mais seria justificável a legitima defesa preventiva, posto que o artigo é expresso ao exigir um prévio ato de agressão. Quanto à agressão não cabia mais considerá-los meros atos políticos ou declarações hostis de chefes de Estado, posto que a Resolução 3.314 logrou defini-la. Mas a prática de alguns Estados e os usos e costumes, mesmo após a Conferência de São Francisco, tendem a flexibilizar o rigor do artigo, considerando legal não só a legitima defesa preventiva mas também sua irmã gêmea - a autoproteção.

Autoproteção, (self help ou self preservation), ao contrário da legítima defesa, não está sujeita a qualquer condição ou requisito, senão ao risco à segurança que o próprio Estado avalia estar sujeito. Seu exercício não requer que o adversário tenha cometido um prévio ato ilegal, injusto ou de agressão. [25]

Estados acusados de agressão não raras vezes buscavam mesclar os conceitos de legitima defesa preventiva e autoproteção. O caso do Canal de Corfu em 1956, é ilustrativo, onde a Inglaterra invadiu o Egito de Mustafá Kemal, alegando a necessidade de defender seus nacionais em território estrangeiro. Em sua argumentação, o governo britânico insistiu na legalidade de seu ato, alegando que o artigo 51 não havia revogado a interpretação do direito costumeiro sobre a ampla legítima defesa, consagrada no caso Caroline. Naquela mesma ocasião, a jurisprudência internacional fraquejou ao retroagir décadas de avanço no tratamento da matéria. A decisão adotada pela CIJ denotava a possibilidade do recurso à legítima defesa preventiva em nome de "direitos ofendidos", sem que tenha ocorrido uma agressão inicial. Contudo não há dúvida de que a decisão foi influenciada pela falta de conceituação deste termo, que só seria dada em 1974 pela Resolução 3.314 da Assembléia Geral. Mesmo com a dubiedade sobre a definição de agressão, canhestra foi a decisão, posto que o artigo 51 é bastante claro ao referir-se à necessidade de um prévio "ataque armado", o que não fora levado a feito pelo Egito. Ademais, tal decisão, não revoga ou sequer enfraquece o rigor do art. 51, pois, nos termos do artigo 59 da Corte Internacional de Justiça, a decisão da Corte não tem força vinculativa senão para as partes em litígio e em relação a esse caso concreto.

A ilegalidade da legítima defesa preventiva é evidente, com fulcro nos artigos 2.3, 2.4, 24, 33.1 e 51 da Carta das Nações Unidas e na Resolução 3.314. Outrossim, em 1981, o Conselho de Segurança e a Assembléia Geral, na discussão sobre a destruição do reator nuclear iraquiano por mísseis de Israel, consideraram ilegal o uso preventivo da força.

Enfim, somente é considerado legal a legítima defesa fundada em prévio ataque armado. Esta máxima, a princípio, cria o inconveniente estratégico e a injustiça de permitir ao agressor as vantagens do primeiro ataque, onde os exemplos da bitz krieg na Polônia e o bombardeio de Pearl Harbour são salutares. Contudo, o espírito das Nações Unidas é justamente consagrar a paz como princípio elementar, preferido, inclusive, ao princípio da justiça. A busca pela justiça a qualquer preço foi amenizada com a condenação de suas crias - o justum bellum e o ius ad bellum - incapazes de evitar as catástrofes da guerra em gerações passadas. A paz seria a justiça em si mesma, pois pouparia as gerações futuras do flagelo da guerra.


4. AS RESOLUÇÕES DO CONSELHO DE SEGURANÇA SOBRE A QUESTÃO IRAQUIANA E A INTERVENÇÃO AMERICANA

Ao todo, 65 Resoluções do Conselho de Segurança referem-se à questão iraquiana desde a primeira guerra do golfo em 1990, tratando tanto de questões militares quanto humanitárias. Obviamente, a proposta deste trabalho não viabiliza o debate sobre cada Resolução em separado, mesmo porque a maior parte possui conteúdo apenas programático e procedimental como prorrogação dos mandatos da operação de peace keeping criada (UNIKOM), entre outras. De tal forma, apenas as consideradas mais relevantes serão esmiuçadas.

A Resolução 687 de 3 de abril de 1991 detalhou os termos do cessar-fogo da primeira guerra do golfo, através da demarcação da fronteira entre Iraque e Kwait. Tal Resolução impôs a Saddam Hussein a renúncia incondicional à qualquer espécie de programa ou armamentos de destruição em massa (biológicos, químicos ou nucleares), inclusive a exigência da destruição de mísseis balísticos com alcance superior a 150 km e os respectivos silos de armazenamento.

Um sistema de inspeção através de uma Comissão especializada das Nações Unidas se encarregou de verificar o desarmamento iraquiano, o qual deveria se completar até agosto de 1991. Anos mais tarde, várias Manifestações do Conselho censuraram o governo iraquiano pelo descumprimento e violações à Resolução 687, sendo, as principais, a de número 707 de augusto de 1991, e a 1.205 de novembro de 1998. Um embargo econômico com o rompimento das relações comerciais foi imposto ao Iraque como represália aos atos de ilegalidade e como uma maneira de forçá-lo a cumprir as referidas Resoluções.

Em 1995, França, China e Rússia obtiveram do Conselho um levantamento do embargo contra o Iraque, por meio de um programa administrado pelo mesmo, "Alimentos para a Paz", com a retomada das exportações de petróleo para aqueles países, por razões de interesse humanitário (Resolução 986 de 1995). Tal proposta seria boicotada pelos americanos e ingleses que, apoiados em uma interpretação extensiva das Resoluções anteriores deram continuidade aos raids aéreos a partir de 1998, sem sequer informar o Conselho de Segurança.

Em reunião das casas legislativas do Congresso americano em outubro de 1998, foi passada a autorização para uma intervenção no Iraque com o fito de remover Saddam Hussein do poder e promover a emergência de um governo democrático. As causas principais de tal autorização foram apontadas como sendo os crimes de guerra cometidos no confronto com o Irã, a ocupação do Kwait, a malograda tentativa de abater o avião em que se encontrava o presidente George H. Bush em 1993 por mísseis iraquianos, a repressão ao povo curdo ao norte e aos chiitas ao sul do Iraque, a violação à exigência do desarmamento e a inexistência de democracia. Dias mais tarde e, sem os auspícios do Conselho de Segurança, EUA e Grã-Bretanha bombardearam parte do território iraquiano na chamada Operação Raposa do Deserto. Naquela ocasião, a operação foi contestada no Conselho pela Rússia, sob a alegação de que os dois países não tinham o direito de agir de maneira autônoma em nome da ONU ou assumir a função de polícia do mundo. Para o Kremlin, as Resoluções que autorizaram o uso da força em 1990 não se estendiam no tempo, sendo mister uma nova Resolução autorizando tal feito.

Os limitados bombardeios de 1998 deram lugar a um projeto audacioso e mais amplo do presidente George W. Bush de restabelecer a "ordem" no Oriente Médio. Os ataques terroristas de 11 de setembro ungiram a agressiva política externa dos novos falcões da América, anunciando uma nova era nas relações internacionais.

Nos momentos prévios à intervenção anglo-americana, estava claro que o Conselho de Segurança, induzido pela posição de três de seus membros permanentes (França, Rússia e China) e a maior parte dos não permanentes, não havia se disposto a autorizar uma empreitada militar americana contra o Iraque. As Resoluções dos últimos meses de 2002, principalmente a 1.441, não só desautorizavam o uso da força como instituía a United Nations Monitoring Verification and Inspection Comission (UNIMOVIC), sob a direção de Hans Blix, para inspecionar e buscar provas sobre a existência de armas de destruição em massa. Em 3 de dezembro de 2002, o Conselho passa a Resolução 1.454, pela qual são aprovados os relatórios parciais da UNIMOVIC, na verdade, sem terem eles concluído por uma afirmação de posse ou presença no Iraque, dos armamentos químicos e biológicos alegados pela coalizão anglo-americana. Insatisfeitos, os EUA exigem do Conselho uma segunda manifestação autorizando a intervenção, o qual não ocorre. Na mesma Resolução 1.454, os membros da UNIMOVIC apresentariam, por insistência dos EUA, novos procedimentos de verificação e a conseqüente solicitação de maior prazo para a conclusão de sua tarefa. Entretanto, os trabalhos da Comissão continuaram apenas por um breve período, tendo a Casa Branca anunciado a guerra.

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Em março de 2003, quando os EUA e a Inglaterra finalmente lançaram armas contra o Iraque, os dois governos alegaram o não cumprimento por Saddam Hussein a certas Resoluções do Conselho na primeira guerra do golfo e a continuidade da autoridade concedida por tais Resoluções para utilizar a força para o restabelecimento da ordem no Golfo Pérsico. John Negroponte, embaixador americano na ONU, assentou a posição americana nos seguintes termos:

As ações levadas a cabo são autorizadas nos termos das vigentes Resoluções do Conselho, incluindo suas Resoluções 678 (1990) e 687 (1991). A Resolução 687 impôs uma série de obrigações que foram condições para o cessar fogo. Tem-se longamente reconhecido e entendido que uma brecha material destas obrigações remove a base do cessar fogo e restabelece a autoridade para se utilizar a força nos termos da Resolução 678. Esta tem sido a base do uso da força pela coalizão no passado e tem sido aceita pelo Conselho, como evidência, por exemplo, pelo anúncio público do Secretário Geral em Janeiro de 1993, atestando que a brecha material iraquiana em relação à Resolução 687 permite a partipação da coalizão como um mandato do Conselho para o uso da força de acordo com a Resolução 678. (26)- (27)

O argumento de que antigas Resoluções do Conselho de Segurança conferem uma contínua autoridade para o uso da força em diferentes situações e doze anos após suas aprovações é, no mínimo, inconsistente. A Resolução 678 de 29 de Novembro de 1990 autoriza os Estados colaboradores com o governo do Kwait a utilizarem os meios necessários para restabelecer a paz e a ordem na região, mas, ao contrário do que se verificou com a intervenção, não autoriza a retomada da guerra e da desordem no Oriente Médio.

A Resolução 1.441 aprovada por unanimidade em 8 de novembro de 2002 tem sido objeto de divergentes interpretações. Seu texto contém crassas ambigüidades e imprecisões, especialmente sua referência às sérias conseqüências caso o Iraque falhar em colaborar. Apesar de tal Resolução ter condenado a situação de incumprimento iraquiano às exigências da Resolução 687 (como inúmeras outras já haviam feito), não há qualquer autorização expressa ou tácita para o uso da força como conseqüência.

A grande questão a ser discutida para esclarecer a incompatibilidade da intervenção com as manifestações do Conselho de Segurança é a natureza da autorização ao uso da força contra o Iraque pela Resolução 678 de 1990. Trata-se de uma delegação limitada a um determinado contexto de invasão o Iraque a um país vizinho ou uma delegação contínua? E, ainda que se considere uma delegação contínua do direito ao uso da força para "restabelecer a ordem", outras questões devem ser esclarecidas:

Se houve uma contituidade de autoridade de 1991 a 2003, quem se investiu desta autoridade? (…) Se o Conselho de Segurança autoriza certos Estados-membros a executar uma tarefa, mas, posteriormente estes são incapazes de concordar com a ação, a autorização original subsiste? As presentes posições do Conselho, as quais em Março de 2003 foi, na maior parte, contra o uso da força, revoga suas autorizações anteriores? [28]- [29]

Outro ponto essencial está em que a resolução 678 referia-se aos Estados membros em cooperação com o governo do Kwait em 1991, que na época eram em número de trinta. Em 2003, os Estados participantes da nova intervenção são distintos, apesar de os dois principais participantes (EUA e Inglaterra) terem permanecido. No final das contas, apesar de posições, nem sempre imparciais, de alguns teóricos a favor da interpretação extensiva da Resolução 678, a parte majoritária estabelece limites evidentes à autorização concedida às tropas que libertaram o Kwait em 1990. Não se trata apenas de uma incompatibilidade temporal de doze anos separando a primeira da segunda guerra do golfo. Talvez o ponto fundamental está em que o Conselho de Segurança manifestou-se através de várias outras Resoluções mais recentes como a 1441, no sentido de buscar solucionar pacificamente as controvérsias na região. Mas, para os Estados Unidos, a ação militar foi convertida como primeiro instrumento da política exterior em lugar de ser seu último recurso, como consagra a norma e a lógica das relações internacionais.

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Sobre o autor
Daniel Lopes Cerqueira

bacharel em Direito pela UFMG, bacharel em Relações Internacionais pela PUC Minas

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CERQUEIRA, Daniel Lopes. A intervenção americana e britânica no Iraque:: uma análise sobre a sua legalidade e efeitos nas relações internacionais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 606, 6 mar. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6339. Acesso em: 29 mar. 2024.

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