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A intervenção americana e britânica no Iraque:

uma análise sobre a sua legalidade e efeitos nas relações internacionais

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06/03/2005 às 00:00
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5. A LEGALIDADE DA INTERVENÇÃO NO IRAQUE

Toda a argumentação exaustivamente desenvolvida neste trabalho leva à conclusão pela inquestionável ilegalidade da empreitada militar anglo-americana. Para tal conclusão não se faz necessário um árduo esforço argumentativo, na medida que os próprios falcões americanos e pretensos senhores da nova ordem internacional, empossados em 2002, sempre manifestaram a idéia de que a lei e a vontade da comunidade internacional não impediria o uso da força. Donald Rumsfeld, secretário de defesa americano bem sentenciou a última palavra de seu governo – "os EUA irão ao Iraque com a ONU ou sem a ONU". Se a operação da OTAN na Yugoslávia em 1995 já padecia de ilegalidade por ter atuado sem a autorização do Conselho de Segurança, nos termos do capítulo VIII da Carta da ONU, a intervenção no Iraque foi ainda mais obtusa, tendo sequer sido lograda por alguma organização regional de segurança coletiva como a OTAN. Esta aliás, manteve-se, juntamente com o Conselho de Segurança, contra a intervenção nas condições propostas (ou impostas) pelos Estados Unidos.

A derrubada do governo de Saddam Hussein passou a ser uma obsessão do governo George W. Bush. Os motivos confessados ou não confessados são variados e de pouca relevância para este estudo. Importa, antes, examinar os mecanismos diplomáticos que foram escolhidos pelo governo americana, os quais, em hipótese alguma e em nenhuma circunstância, corresponderam a sequer uma busca de legitimação, mesmo que a posteriori. Ante a uma decisão baseada numa política de poder e na dissuasão militar efetiva com argumentos ultrapassados, as conseqüências da intervenção no Iraque passam pela erosão do sistema de segurança coletiva regulada pela ONU, pelo reflexo no sistema tradicional de alianças existentes na OTAN e pela alteração na ordem existente a partir da OCDE.

Em termos doutrinários, esclarece Celso de Albuquerque - Intervenção é a interferência, por um ou mais Estados nos assuntos internos ou externos de outro Estado soberano sem seu consentimento, tendo como fim alterar certo estado de coisas. [30] Apesar de alguns autores mencionarem os fatos ocorridos no Iraque a partir de março de 2003 sob o título de intervenção, o nomen iuris mais apropriado seria guerra (dado o conceito já esclarecido na introdução e ao longo do trabalho) [31] e a guerra, no sistema acordado na Carta de São Francisco, sem a interveniência do Conselho de Segurança é, ab initio, ilegal.

Não cabe rebater os poucos e falhos argumentos do governo americano e britânico pela existência de armas de destruição em massa no Iraque, pela viabilidade de uma intervenção humanitária naquele país ou resgatar o ultrapassado discurso sobre a possibilidade da legítima defesa preventiva. Sequer os governos destes países levaram a sério tais argumentos na busca de alguma legitimidade, sendo aqueles meros paliativos ao convencimento da opinião pública interna. Não só a intervenção propriamente dita, mas o tratamento aos presos civis e militares iraquianos com total desprezo à Convenção de Genebra e demais tratados de proteção dos direitos humanos, demonstram que, recentemente, não há maiores dificuldades em identificar atos ilegais do governo Bush e sua política externa frente às normas internacionais.

O certo é que o sistema de segurança coletivo evoluído ao longo de séculos e coroado em 1945 em São Francisco foi cortado pela raiz e, mesmo as opiniões mais idealistas reconhecem a redefinição ainda incerta do papel do Conselho de Segurança como legítimo guardião da atribuição de manter a paz e a ordem internacional.


6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O fim da União Soviética e da bipolaridade global inauguraram, no início da década de 90, um período de indefinição entre os teóricos das relações internacionais sobre a natureza da nova ordem. Para uma corrente internacionalista, a ênfase é dada à perda de importância das questões de segurança na agenda internacional com o fim da guerra fria. Nesta grandeza, a interdependência entre os Estados e os novos atores como ONG’s, Organizações Internacionais, empresas multinacionais e transnacionais denota uma multipolaridade de blocos econômicos, onde Japão, Estados Unidos e União Européia emergem como os atores dominantes no campo econômico. Questões de âmbito global como terrorismo, tráfico de drogas e pessoas, meio ambiente, comércio internacional, saúde, desigualdade e mesmo a segurança passam a ser tratadas por organizações multilaterais. No mundo globalizado e interdependente, os Estados deixam de ser inimigos que se ameaçam com guerras, transformando-se em democracias e passando a competir comercialmente por meio de suas empresas privadas.

Uma posição tradicional de cunho neo-realista, por sua vez, reza pela permanência do dilema da segurança mesmo no mundo interdependente. Autores desta corrente consideram ter o fim da guerra-fria inaugurado um período de sólida hegemonia americana pela inexistência de uma nova União Soviética que pudesse ameaçá-la. A questão da segurança é ainda tratada com prioridade, sob a manta de high politic, ao passo que as demais questões teriam uma importância subsidiária.

A política externa americana, a partir do governo George W. Bush, parece refletir esta segunda posição com um radicalismo dos tempos de Clausewitz. Inimigos sem rosto são criados para resgatar o dilema da segurança e a imposição pela força e ameaça são os meios adequados para se atingir às finalidades e "interesses" da nação. Trata-se de uma política externa completamente anacrônica, posto que as teorias realistas das relações internacionais foram desenvolvidas e inspiraram as práticas de estadistas do porte de Nixon em um período onde a guerra era iminente. Da mesma forma entende Bresser Pereira:

Ao propor a guerra contra o Iraque, da mesma forma que antes, ao denunciar o acordo de Kyoto, ou ao recusar a jurisdição do Tribunal Penal Internacional, Bush e os falcões nacionalistas que o rodeiam, divididos em dois grupos, os neoconservadores da Costa Leste e os cristãos messiânicos da Costa Centro-Sul, revelam-se governantes incapazes de compreender a natureza do tempo em que vivem. Transformam os Estados Unidos em um gigante fora do tempo, que age como se estivesse no século XIX. [32]

Durante a guerra fria o conflito era de fato uma possibilidade cotidiana e as questões de segurança eram primordiais na agenda internacional. Já na década de 70 a segurança passa a ombrear com outras áreas temáticas. O diálogo leste-oeste, por exemplo, aos poucos cede espaço norte-sul, além de outras novidades na agenda internacional.

A intervenção no Iraque, obviamente, altera o seguimento que vinha sendo dado às relações internacionais. Mas afirmar que período a se seguir será de unilateralismo é pouco consistente. As empreitadas militares promovidas e ainda a serem promovidas pelos EUA não demonstram de maneira alguma sua hegemonia, tal como quer os adeptos da corrente neo-realista. O elevadíssimo déficit público e na balança de pagamentos dos Estados Unidos, a perda do valor do dólar frente ao euro, a incapacidade em conter o terrorismo, o desmantelamento de antigas alianças e o surgimento de novas potências econômicas como a Índia e a China são mais determinantes para o futuro da posição americana no sistema internacional que qualquer invasão de países castigados por anos de embargo econômico ou a deposição de tiranos no mundo árabe.

Talvez a mudança mais significativa que pode-se, desde já, ser apontada seja a quebra em definitivo do regime de segurança coletivo que vinha padecendo muito antes da guerra do golfo. O Conselho de Segurança ainda é o órgão legalmente instituído com a exclusividade no uso da força no âmbito internacional, mas a prática dos Estados há muito destoam com as leis e o Direito Internacional, pois na lição de Kelsen, a norma está no plano do dever ser. Esta inconformidade porém gera um inconveniente muito mais político que jurídico. O fato de os EUA e demais Estados constantemente desrespeitarem as disposições da Carta das Nações Unidas não tornam tais atos legais, legítimos, ou mesmo morais.

Posições céticas e alardeantes como a do ilustre jornalista Paulo Francis, o qual na década de oitenta já afirmava que ninguém sério leva as Nações Unidas à sério, são verdadeiras tagarelices. O critério moral e legal ainda é, e sempre serão o da conformidade dos atos dos Estados com as normas internacionais que, em se tratando de segurança coletiva, estão dispostas na Carta de São Francisco. Mesmo que a política externa americana paute-se na força em detrimento do Direito Internacional, a sociedade civil internacional e doméstica não raciocina como Maquiavel e os falcões de Bush e muitas vezes exigem que os atos políticos sejam também morais. Não resta dúvida, portanto, que, por mais desacreditada que seja o Conselho de Segurança e as Nações Unidas como um todo no exercício de suas finalidades, vale a posição do embaixador Antônio de Aguiar Patriota, de que as Nações Unidas não constituem uma garantia de paz mundial. Por isso mesmo, deve-se preservá-la e trabalhar pelo seu fortalecimento. Os custos de manutenção da Organização são mínimos em comparação com os riscos que correríamos na eventualidade de seu desaparecimento.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRESSER, Luiz Carlos Pereira. O gigante fora do tempo: a guerra do Iraque e o sistema global. Revista Política Externa, 2003, vol. 12, nº 1.

CERVO, Amado Luiz. Hegemonia coletiva e equilíbrio: a construção do mundo liberal (1815-1871). Relações Internacionais - dois séculos de História, vol. 1. Brasília: IBRI, 2001.

DAMASIO, Jesus E. de. Direito Penal – parte geral. Vol. 1, 23ª ed. São Paulo: Saraiva, 1999

HUCK, Hermes Marcelo. Da guerra justa à guerra econômica. São Paulo: Saraiva, 1996.

HOBSBAWM, Eric Jonh. A Era do Capital, 5ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

HOBSBAWM, Eric Jonh. A Era dos Extremos, 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

MELLO, Celso C. de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público. Rio de Janeiro: Renovar, 1992.

NYE, Joseph S. Jr. and SMITH, Roger K. After the Storm – lessons from the gulf war. Maryland: Madison Books, 1992.

RANGEL, Vicente Marota. Direito e relações internacionais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 3ª ed. 1988.

ROBERTS, Adam. Law and the use of force after Iraq. In: Survival, verão de 2003, vol. 45, nº 45

SCHACHTER, Oscar. In defense of international rules on the use of force. In: University of Chicago Law Review, 1986, vol. 53.

SILVA, Roberto Luiz. Direito Internacional Público Resumido. Belo Horizonte: Inédita, 1999.

SOARES, Guido Fernando Silva, Legitimidade de uma guerra preventiva em pleno 2003? Revista Política Externa, 2003, vol. 12, nº 1.


NOTAS

1SILVA, Roberto Luiz. Direito Internacional Público Resumido. Belo Horizonte: Inédita, 1999, p. 417.

2 A consolidação do Direito Internacional Público como disciplina e corpo normativo autônomo e sistematizado se dá basicamente nos séculos XVI e XVII, com a consolidação do Estado como organização político-jurídica em substituição aos feudos. Neste sentido, o Tratado de Westfália de 1648 estabeleceu verdadeiro divisor de águas no tratamento desta disciplina e na configuração da ordem internacional. Destarte, sua denominação mais correta nos períodos anteriores ao século XVII é a expressa por Hugo Grócio, qual seja o direito das gentes, claramente influenciado pelo ius gentium romano.

3 SILVA, Roberto Luiz. Direito Internacional Público Resumido. Belo Horizonte: Inédita, 1999, p. 19.

4 HUCK, Hermes Marcelo. Da guerra justa à guerra econômica. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 27.

5 SILVA, Roberto Luiz. Direito Internacional Público Resumido. Belo Horizonte: Inédita, 1999, p. 21.

6 HUCK, Hermes Marcelo. Da guerra justa à guerra econômica. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 30 a 36.

7 HUCK, Hermes Marcelo. Da guerra justa à guerra econômica. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 33.

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8 SOARES, Guido Fernando Silva, Legitimidade de uma guerra preventiva em pleno 2003? Revista Política Externa, 2003, vol. 12, nº 1, p. 9.

9 CERVO, Amado Luiz. Hegemonia coletiva e equilíbrio: a construção do mundo liberal (1815-1871). Relações Internacionais - dois séculos de História, vol. 1. Brasília: IBRI, 2001, p. 66

10 De 1815 a 1870, raras foram as guerras de grandes proporções entre Estados europeus, com exceção da Guerra da Criméia (Inglaterra e França contra a Rússia) em 1953, as guerras pela independência na Bélgica e Grécia, e os movimentos revolucionários de 1820, 1830 e 1848 em boa parte dos Estados europeus, os quais, apesar de terem surtido efeitos transnacionais, estavam longe de configurar um conflito entre Estados soberanos.

11 SOARES, Guido Fernando Silva, Legitimidade de uma guerra preventiva em pleno 2003? Revista Política Externa, 2003, vol. 12, nº 1, p. 10.

12 HOBSBAWM, Eric Jonh. A Era do Capital, 5ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 114.

13 HOBSBAWM, Eric Jonh. A Era dos Extremos, 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 51

14 O objetivo de representar universalmente a sociedade internacional não se completou pela não adesão de importantes países, principalmente os Estados Unidos.

15 RANGEL, Vicente Marota. Direito e relações internacionais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 3ª ed. 1988, p. 98.

16 SOARES, Guido Fernando Silva, Legitimidade de uma guerra preventiva em pleno 2003? Revista Política Externa, 2003, vol. 12, nº 1, p. 12.

17 Cabe aqui lembrar que foi no período entre-guerras que se deu a primeira tentativa de responsabilizar um chefe de Estado pelos crimes cometidos em guerra, qual seja o Kaiser Guilherme II pelos crimes cometidos na Primeira Guerra Mundial.

18 SCHACHTER, Oscar. In defense of international rules on the use of force. In: University of Chicago Law Review, vol. 53, 1986, p. 126.

19 SOARES, Guido Fernando Silva, Legitimidade de uma guerra preventiva em pleno 2003? Revista Política Externa, 2003, vol. 12, nº 1, p. 15.

20 HUCK, Hermes Marcelo. Da guerra justa à guerra econômica. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 146.

21 Tome-se como exemplo as intervenções em El Salvador, Nicarágua, Panamá, Chile, Vietnã, Coréia e Irã.

22 Tome-se como exemplo as intervenções na Alemanha Oriental, Hungria, Checoslováquia e Afeganistão.

23 DAMASIO, Jesus E. de. Direito Penal – parte geral. Vol. 1, 23ª ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 381.

24 BROWNLIE, Ian. International law and the use of force by states. Oxford, ed. Clarendon Press, 1963, p. 256. Apud: HUCK, Hermes Marcel. Da guerra justa à guerra econômica. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 177.

25 HUCK, Hermes Marcelo. Da guerra justa à guerra econômica. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 185.

26 Carta datada de 20 de Março de 2003 do Representante dos Estados Unidos nas Nações Unidas endereçada ao Presidente do Conselho de Segurança.

27The actions being taken are authorized under existing Council Resolutions, including its resolutions 678 (1990) and 687 (1991). Resolution 687 imposed a series of obligations, that were conditions of the ceasefire established under it. It has been long recognized and understood that a material breach of these obligations removes the basis of the ceasefire and revives the authority to use force under resolutions 678. This has been the basis for coalition use force in the past and has been accepted by the Council, as evidenced, for example, by the Secretary-General’s public announcement in January 1993 following Iraq’s material breach of resoltion 687apply the coalition participation as a mandate from the Council to use force according to resolution 678 (tradução livre).

28 ROBERTS, Adam. Law and the use of force after Iraq. In: Survival, verão de 2003, vol. 45, nº 45, p. 43.

29If there was continuity of authority from 1990 to 2003, in whom was that authority vested? (...) If the Council authorises certain member states to undertake a task, but is then unable to agree on follow-up action, does the original authorization still stand? Do the current views of the Council, wich in March 2003 were, for the most part, against the use of force, trump its past authorisations? (tradução livre)

30 MELLO, Celso C. de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público. Rio de Janeiro: Renovar, 1992, p. 391.

31Guerra é a luta armada entre Estados desejada ao menos por um deles e empreendida tendo em vista um interesse nacional.

32 BRESSER, Luiz Carlos Pereira. O gigante fora do tempo: a guerra do Iraque e o sistema global. Revista Política Externa, 2003, vol. 12, nº 1.

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Sobre o autor
Daniel Lopes Cerqueira

bacharel em Direito pela UFMG, bacharel em Relações Internacionais pela PUC Minas

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CERQUEIRA, Daniel Lopes. A intervenção americana e britânica no Iraque:: uma análise sobre a sua legalidade e efeitos nas relações internacionais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 606, 6 mar. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6339. Acesso em: 22 nov. 2024.

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