RESUMO: O presente trabalho objetiva promover uma exposição analítica acerca do controle social informal exercido por facções criminosas em bairros de periferia da cidade de Fortaleza. Para tal, foram abordados conceitos que reverberam a origem deste dispositivo sociológico, de modo a fundamentar tais teses tomando por base estudos de cunho criminológico acoplados no âmbito da chamada Escola de Chicago, escola americana surgida no século XX e caracterizada por abordar acerca de teorias criminológicas embasadas em perspectivas predominantemente sociológicas, em contraposição às teorias que a antecederam, as quais buscavam explicar o fenômeno da criminalidade sob o aspecto biopsicológico dos indivíduos executores de tais práticas. Foram analisadas, neste sentido, as perspectivas que compõem a realidade vivenciada por moradores de áreas periféricas da capital cearense, de modo a expor as características principais da estrutura sociológica promovida pelas facções no âmbito comunitário bem como suas consequências, positivas e negativas.
Palavras-chave: Facções; Âmbito Comunitário; Escola de Chicago; Controle Social Informal;
INTRODUÇÃO
Ao elaborar teorias diferenciadas acerca do fenômeno do crime, a Escola de Chicago ganhou renome em meio à comunidade científica, uma vez que, através de metodologia e abordagem inovadoras, buscou avaliar a prática delituosa sob o prisma da sociologia, deixando de lado o pensamento até então predominante de que as respostas para a compreensão do ato criminoso estariam diretamente relacionadas à estrutura biopsicológica dos praticantes, considerando tal execução como manifestações patológicas. Considerando fatores exógenos, referentes ao convívio social e o desenvolvimentos das relações interpessoais entre habitantes de uma mesma comunidade, busca-se compreender o porquê da ocorrência de práticas delitivas bem como elaborar teses que expliquem a coesão social. Os estudos realizados pela escola de Chicago formaram o que a doutrina chama de Teoria da Ecologia Criminal, ou Teoria da Desorganização Social.
A formação das cidades é um dos fatores primordiais para o entendimento no que se refere às relações estabelecidas entre os cidadãos no decorrer da formação das organizações comunitárias humanas. Na Idade Média, por exemplo, as cidades possuíam características bem específicas, enfatizadas, dentre outros aspectos, pela presença de muralhas. Tal construção reflete não somente uma estratégia arquitetônica de defesa contra possíveis ameaças externas, mas evidencia, também, o sentimento de proteção agregado pelos concidadãos. Ao fim deste modelo de construção, as cidades passaram a ter delimitações um tanto descontroladas, crescendo em tamanho e em importância; entretanto, é característica ainda a noção de pertencimento, ainda que radicalmente modificado. Em um primeiro momento, os elos propiciados pela comunidade impulsionam e fomentam um sentimento de coletividade, no sentido de empatia, caracterizado, por exemplo, pelo bom relacionamento entre vizinhos. Os indivíduos se sentem como força agregadora e colaboram entre si, tendo como fim o bem comum, exercendo, sob a ótica comunitária, uma espécie de controle social informal, caracterizado pela prestação de favores entre os membros da comunidade, por exemplo, quando um vizinho solicita ao outro que “olhe” sua casa enquanto se ausenta.
Entretanto, à medida que as cidades crescem e a sociedade se desenvolve, criam-se abismos entre os indivíduos, que passam a lidar com a colaboração comunitária não mais em prol de um bem comum, mas tendo em vista particularidades subjetivas, suas inclinações pessoais. Nessa perspectiva, acaba-se por criar aglomerações particulares e peculiares dentro de uma mesma cidade, fato este que posteriormente fomentaria não só o distanciamento entre os cidadãos, mas também futuros problemas de aceitação entre estes grupos, ou mesmo, rivalidades.
Atualmente, por mais que seja notório o afastamento substancial entre os indivíduos residentes em grandes cidades, ainda é possível observar relações de afetividade e ajuda mútua entre moradores de um mesmo bairro, sobretudo em áreas periféricas. Deste modo, pode-se afirmar que existe, ainda, um controle social informal em relação à convivência comunitária, propiciado pelo elo de proximidade e parceria entre os indivíduos.
Acompanhando as mudanças no que tange ao crescimento urbano e ao desenvolvimento das relações sociais, observa-se, dentre outras coisas, o crescimento dos índices de criminalidade nas cidades. Fomentados pela má estrutura estatal, corroborada pela ineficaz atuação governamental no que tange à salvaguarda e execução de direito fundamentais, assegurados em âmbito constitucional, o crime se evidencia em face de problemas situados à base da estrutura social. Falta de assistência educacional, má distribuição de renda, alta taxa de desemprego, baixa qualidade de serviços públicos básicos e segurança deficiente podem ser elencadas como causas possíveis de impulso às práticas delitivas. Indivíduos desprovidos de oportunidades e de qualidade de vida encontram na prática criminosa um “refúgio” da realidade, optando por direcionar-se a caminhos desviantes do correto padrão social.
A prática criminosa vem se desenvolvendo e se “aperfeiçoando” ao longo dos anos. A prova disto se dá em face do surgimento das organizações criminosas, que têm exercido forte influência tanto em comunidades situadas por todo o País, como também nos próprios presídios e penitenciárias. Trata-se de diferentes aglomerados de indivíduos imersos em práticas criminosas de todos os tipos, que exercem disputas entre si, em busca, dentre outras coisas, do monopólio sobre o tráfico de entorpecentes. Sobre as consequências desencadeadas pela efetivação e ampliação da influência exercida pelas facções criminosas será pautado o desenvolvimento do presente artigo.
2. SURGIMENTO E DESENVOLVIMENTO DAS FACÇÕES CRIMINOSAS
O Brasil possui uma das maiores populações carcerárias de todo o mundo, ficando atrás apenas dos Estados Unidos, da Rússia e da China. Tal situação se dá em decorrência do precário desenvolvimento de políticas públicas estruturais, no que tange a medidas reformuladoras do sistema penal. Em face disto, são evidenciadas políticas tão somente repressivas, que corroboram, dentre outras coisas, o problema da superlotação dos presídios e penitenciárias e, consequentemente, a defasagem da estrutura física e logística desses institutos, uma vez que não possuem suporte para abrigar tamanha demanda.
Dentre os tipos mais cometidos no País, estão os crimes contra a propriedade e o tráfico de entorpecentes. Os índices de criminalidade alcançam resultados exorbitantes, uma vez que, como já salientado, as políticas públicas desenvolvidas pelo poder estatal são absolutamente ineficazes. Deste modo, a falta de controle governamental reflete como consequência um intenso domínio de organizações criminosas. Trata-se, portanto, de formações de grupos compostos por indivíduos inseridos na vida ilícita, geralmente sob o comando de criminosos não só reincidentes, mas também conhecidos por suas práticas delitivas, unidos com o objetivo de articular ações criminosas em determinadas localidades. As facções buscam controlar a logística do crime nas cidades, geralmente tendo como finalidade principal o monopólio do tráfico de drogas.
As facções criminosas surgem, portanto, a partir da aglomeração de pessoas com histórico criminal, que visam atingir fins econômicos. O tráfico de entorpecentes e armas, os resultados de ações contra o patrimônio (roubo, furto, estelionato), assim como os demais crimes planejados e executados por estas organizações, são tidas como práticas extremamente lucrativas e com mercado consumidor garantido, tanto no âmbito nacional como internacional. Nessa perspectiva, as facções desenvolvem um sistema próprio de ação, fato que tem fomentado intensas disputas entre as várias organizações já conhecidas e consolidadas em todo território nacional. Disseminando-se entre vários estados do País, as facções tendem a alocar-se geralmente nas áreas de periferia das cidades, onde exercem controle sobre a comunidade, ditando regras de conduta, proibindo certas ações e relações, de modo a executar, de fato, domínio sobre a área em questão.
No entanto, não é somente nas comunidades que as facções promovem controle. É sabido que os presídios e penitenciárias atualmente funcionam como “escritórios” do crime organizado, uma vez que os grupos lá se originam e, embora encarcerados, os indivíduos componentes controlam as ações executadas do lado de fora das instituições. A prova disto é que nas penitenciárias é comum alocar os internos de acordo com as facções a que pertencem, pois nelas existem áreas específicas destinadas às diferentes facções. Esta foi uma medida de curtíssimo prazo tomada pelo órgão estatal para intervir nos conflitos violentos travados entre as facções rivais dentro das próprias instituições, as quais promovem consequências sangrentas à população carcerária. Os indivíduos que à priori não pertencem a nenhuma facção, ainda assim, são obrigados a se “filiarem” a alguma dentro da prisão, pois não há espaço suficiente para separar os presos de forma correta devido à superlotação. Uma vez inseridos no contexto da facção, dificilmente será possível serem revertidas as consequências adquiridas por meio dessa convivência, de modo que os internos tendem a transformar de modo ainda mais negativo sua personalidade, fazendo com que o sistema penal, em contraposição ao seu propósito de corrigir condutas delitivas, funcione como uma fábrica de criminosos.
3. O CONTROLE SOCIAL EXERCIDO PELAS FACÇÕES CRIMINOSAS NO ÂMBITO COMUNITÁRIO
Conforme citado anteriormente, o campo de atuação das facções criminosas é vasto, evidenciando-se tanto nas instituições privativas de liberdade como em diversas cidades brasileiras, sobretudo nas áreas periféricas. Antes de tudo, as facções mapeiam a cidade e estabelecem rotas e divisões territoriais específicas, que servem de limite para suas ações, sendo vedadas práticas delitivas em áreas dominadas por outra facção. Ao se alocarem nas comunidades, as organizações passam a exercer uma forma de controle social informal sobre os indivíduos residentes nessas áreas, de modo a regrar a vida e convivência dos concidadãos. Este controle social informal difere daquele proposto pela Escola de Chicago em alguns aspectos. Trata-se, pois, de outra espécie de controle social, no qual as facções criminosas passam a exercer informalmente as funções estatais, sobretudo no sentido de controlar a “segurança” das áreas nas quais atuam. A seguir, serão analisadas as perspectivas e a realidade vivenciada por moradores de comunidades dominadas pela ação de facções criminosas na cidade de Fortaleza, capital do estado do Ceará.
3.1. ATUAÇÃO DAS FACÇÕES SOB A ÓTICA DE MORADORES DAS ÁREAS DE DOMÍNIO
A partir de breves entrevistas realizadas com moradores de comunidades dominadas pela ação de facções criminosas, foi possível compreender a estrutura da atuação dos grupos bem como os mecanismos utilizados para exercer influência sobre habitantes das áreas em questão e a política coercitiva pregada no âmbito de controle criminal.
Na cidade de Fortaleza, existem em torno de quatro facções criminosas atuantes nos bairros, em áreas específicas, conforme definido em acordo formulado entre as mesmas. Assim, como dito anteriormente, é estritamente proibido ultrapassar os limites territoriais conhecidos, ou seja, as organizações agem soberanamente nas áreas cabíveis às suas atuações antecipadamente definidas.
Conforme relatos, uma das principais consequências decorrentes da atuação das facções é que as comunidades passam a restringir-se cada vez mais, haja vista que os líderes determinam que em algumas áreas vizinhas não pode haver circulação de pessoas da comunidade que dominam, bem como o inverso: moradores de áreas cujo domínio é efetuado por outros grupos criminosos não podem adentrar na área rival. A desobediência a esta determinação é punida por meio de roubos, torturas ou mesmo execuções direcionadas à população da comunidade “infratora”. A partir daí, iniciam-se verdadeiros combates entre facções inimigas, fatos que culminam em resultados extremamente violentos e sangrentos, que afligem, sobretudo, moradores que nenhuma relação têm com as organizações criminosas. Este tipo de acontecimento é recorrente, muito embora haja um forte aparato policial presente nas comunidades, fazendo vistorias, buscas, abordagens ou mesmo apreensões e prisões. Em algumas localidades há sedes de policiamento fixo, mas em tantas outras a atuação da polícia se dá somente ao ser convocada. Ainda nesse viés, os moradores asseveram que são orientados a não buscarem atendimento policial em caso de ocorrências dentro das comunidades, pois as facções tomam pra si a função de resolver conflitos internos, através de meios alternativos próprios.
Os moradores das áreas em questão encontram-se em situação difícil, uma vez que têm sua rotina controlada. Dentre os sentimentos nutridos, estão apreensão, tensão e principalmente medo. Medo, sobretudo, de ser alvo de retaliações promovidas pelas facções rivais em face de algum desentendimento. A circulação pelos moradores dentro da própria comunidade é limitada, o que corrobora o enfraquecimento das relações de afinidade entre vizinhos, muito embora ainda subsista alguma coesão.
Entretanto, a comunidade, embora imersa em uma situação notória e negativamente complexa, consegue elencar pontos positivos em relação ao controle social exercido pelas facções. Os grupos proíbem, por exemplo, que ocorram roubos aos moradores da própria comunidade. Àqueles integrantes que descumprem tal determinação são destinadas sanções bem específicas para que não voltem a fazê-lo. Além disso, os líderes proíbem, também, a ocorrência de outras ações mais simplórias, como o ato de jogar lixo em determinados locais. Nota-se, em vista disso, que ocorrem articulações de cunho político e que as facções possuem, de fato, uma estrutura de atuação organizada, na medida do circunstancialmente possível.
4. CONCLUSÃO
Em vista do exposto, é possível evidenciar uma análise acerca do surgimento e desenvolvimento do fenômeno criminológico das facções, organizações formadas por indivíduos executores de condutas criminosas, que exercem profundo controle social dentro do mundo ilícito, aplicados em prisões, em penitenciárias e em áreas suburbanas das cidades brasileiras.
O controle social informal ao qual são submetidos os moradores de áreas periféricas da cidade de Fortaleza, localidade na qual foi promovido o presente estudo, evidencia uma realidade extremamente complexa, que por mais que tenha se associado à rotina dos habitantes e que, de algum modo, promova benefícios à comunidade, precisa receber a adequada atenção estatal.
É notório que a perpetuação de atuações criminosas promovidas por estes grupos é um grave problema da estrutura pública à qual o País está submetido e que deve ser combatido através de medidas políticas pensadas a longo prazo, uma vez que o problema maior situa-se no alicerce do sistema penal brasileiro.
A atuação optada pelo Estado, para o combate às facções criminosas, é puramente repressiva, na qual são executadas medidas reconhecidamente fadadas ao fracasso. A intensificação do policiamento em nada adianta, uma vez que o problema em questão é estrutural e político. A atuação repressiva policial serve, apenas, como medida temporária, de curto prazo, que corrobora em prisões e, consequentemente, na superlotação dos presídios e penitenciárias e que não resolve o problema, mas, ao contrário, fomenta seu agravamento. Em face disto, é preciso atentar-se para a execução de reformas básicas em todo o sistema penal e carcerário, de modo a efetivar o propósito original destas ferramentas: corrigir os indivíduos praticantes de condutas desviantes e, posteriormente, reinseri-los no convívio social. A associação entre sanção e educação seria uma medida interessante, ao se falar em reforma sistêmica do direito penal.