36 Ele lhes disse: "Mas agora, se vocês têm bolsa, levem-na, e também o saco de viagem;
e, se não têm espada, vendam a sua capa e comprem uma.
37 Está escrito: 'E ele foi contado com os transgressores'; e eu digo que isso precisa cumprir-se em mim. Sim, o que está escrito a meu respeito está para se cumprir".
38 Os discípulos disseram: "Vê, Senhor, aqui estão duas espadas".
"É o suficiente!", respondeu ele.
Lucas: 22
Porém, não é somente isso. É pior, é atávico, messiânico. Mas também é mitológico: como expiação penal do crime inexplicável. No mito não precisamos de provas, o empirismo é prova rigorosa exigida apenas em ciência. No mito bastam fortes indícios.
Acreditamos em rastros judiciais, tanto quanto alguém acreditava no Estado de Direito – e como um aborígene punha sua fé num Totem. Hoje, a justiça é um Totem, o Estado é um Totem (Cassirer, 2003) e o direito não passa de ficção.
É assim que se pune sem provas: o crime é conexo à pessoa: o ser-político no Estado de Exceção (Martinez, 2010). Pois só ele tem o domínio do fato. A isto se liga o direito aplicado ao inimigo por um ato administrativo indefinido. O que é lógico, visto que o sujeito-político (inimigo) logo será um sujeito inexistente.
O Direito penal do inimigo se dá na base da relação amigo-inimigo. Não há novidade até aqui. A primeira citação de Jahobs Günter (2005) é de Hobbes (1983). Faremos uma adaptação: "Homem lobo-inimigo do homem". O lobo selvagem. A fera social a ser banida.
No antigo direito germânico era chamado de "homem-lobo" (Arruda, 2009). O devorador das almas do “cidadão de bem”. A besta-fera que deve ser penalizada em potência expandida.
Este inimigo de César (1999) – que serve de justificativa ao Cesarismo regressivo e repressivo (Gramsci, 2000) – era um homem incomum, um tipo de Homo Sacer: um homem sacralizado, nem homem de verdade, nem escravo, que podia ser imolado publicamente (Agamben, 2002).
Não há contradição, ao menos num sentido, se pensarmos que o sagrado e o profano têm condições diversas. No fim, o Homo Sacer estava fora do alcance da lei e podia ser derrubado como uma árvore seca. A Polis virava Pelourinho.
Por isso no nazismo o Estado era devedor da nação: comunidade do povo. O Nomos da terra cria e salva. Expulsa o lobo. O Nomos do direito deve banir. Elimina o sujeito. Do que decorre Carl Shcmitt (1992) e outra vez vem a relação “amigo – inimigo”. Inimigos são sempre hostis (como no latim) e não inimicus: a concorrência é inimiga, o rival na conquista do amor é inimicus. O bandido é hostil: hostis, inimigo mortal.
Neste quadro, deve insurgir-se um direito penal redentor, salvacionista. Contra todos os hostis. Não é à toa que muitos dirigentes da lava jato são pastores radicais: olho por olho. É a pós-modernidade jurídica brasileira: o Antigo Testamento no mundo moderno.
Isto ainda lembra a Idade Média: a confissão só tinha validade (legalidade) com a tortura – que lhe emprestava legitimidade. Para expurgar o mal. Só assim se "expia a pena". Também não assustaria se alguém citasse o mito de Adão e Eva.
Para os maus, hostis, faça-se uso do Tripalium. Sem dor não há guerra. Sem guerra não há cruzada. Sem cruzadas não há conquistas: o gladiador romano invocava “Força e Honra”. O castigo precede a redenção. Enfim, "vita mea, mors tua".
No entanto, como não podem matar fisicamente – a Constituição não permite a pena de morte e nem o desterro de nacionais – então, desconstroem a Pessoa Política. Retira-se o direito de conviver, como os germânicos, expulsando da Polis.
Joguem aos lobos, condenem às galés: Javert perseguiria o próprio Victor Hugo se pudesse (em Os Miseráveis, a personagem só não é mais miserável do que seu algoz). E não seria de estranhar, porque a vingança derradeira de Javert viria no Ultimo Dia de um Condenado (Hugo, 2002).
A personagem de Javert era um misto, um tipo ideal, entre promotor e carrasco de um pecador que, arrependido, fizera mais bem do que seu perseguidor. Isto, entretanto, de nada adianta.
Não pode haver licença, perdão, porque é um "inimigo-combatente": a personagem-Javert ressuscitaria no Afeganistão, Iraque, Líbia, Síria. Estaria atuante nos julgamentos sumários em tempos excepcionais de guerra santa. Sem condenação aos soldados por crimes de guerra; assim decretado pelo Pentágono no decreto conhecido como Ordem 17 (Schill, 2008).
Tudo é santo. Devemos separar o joio do trigo: por isso há tanta seletividade. E a relação com as tiranias, ditaduras também não é incomum. O lobo selvagem, como se sabe, é o animal político. Pois, é o único que não se conforma. Então, ou o inimigo-combatente (animal político) é eliminado ou se extingue a Polis.
No primeiro caso, vale o direito penal do inimigo: direito redentor para quem destina a lei aos amigos íntimos ou do rei. É o Direito da Seletividade que surge na prescrição de alguns crimes e, em outros, faz furar a fila para acelerar os julgados. No segundo caso, o outsider condena a Política, porque se intitula "a-político".
(Não adianta dizer que isto não existe, uma vez que esta teoria da pena, insuflada do poder da cura, desconhece a ciência.)
De todo modo, a Polis é atacada: o outsider “a-politico” logo se transforma em antipolítico. Contra a Política. Isso é necessário porque o animal político é combatente, militante do "fazer-política". E gera conhecimento político que impede o surgimento do verdadeiro homem-lobo, ou seja, o outsider.
Como vimos, a vocação política do direito penal do inimigo é, exatamente, criminalizar a Política. Judicializar a Política é o oposto de criminalizar políticos profissionais desonestos. Trata-se de judicializar, para esvaziar, o espaço público – e não remover os piores da Política.
(No caso nacional, uma aliança entre plutocracia e cleptocracia…)
A natureza jurídica desse direito de cura, em consonância, exige conter, reprimir. É preciso “policiar a Política”.
Cabe aqui o uso/extensivo do policiamento regular, de milicianos e de mercenários. Historicamente, com Júlio César ou no 18 Brumário (Marx, 1978) - ou com a máfia italiana posta contra os esquerdistas -, usou-se tudo combinado.
As referências ao nazifascismo não foram retóricas: a corrupção da República é fato gravíssimo, mas a corrupção da Política é insofismável.
Por isso, politicamente, é urgente nos aplicarmos ao antidireito penal – ao contrário do antidireito ideológico posto em andamento (Lyra Filho, 2002) –, agora como antidireito que descriminalize os amigos da Política e que não puna, preferencialmente, pobres e negros (Baratta, 2002).
Entretanto, o que os gendarmes não sabem é que a polícia (politia) e a Política (politikós) tem uma raiz comum: Polis.
Parecem desconhecer que a Política pode ser policiada, até subordinada, mas jamais será subornada. Se o ser “deixa” de ser animal político (sic), é porque não mais pertence à Humanidade. Não há ser social que sobreviva com inteligência artificial, e a inteligência natural decorre da Política.
Ainda é preciso endossar que, na antipolítica, todos são baratas (Kafka, 1997).
É uma pena pensar diferente.
Mas, esse é um dos sabores da vingança política que se come(rá) fria.
Bibliografia
AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte : Editora UFMG, 2002.
ARRUDA, Élcio. Primeiras Linhas de Direito Penal – parte geral: Fundamentos e Teoria da Lei Penal. São Paulo : BH Editora, 2009.
BARATTA, Alessandro. 3ª ed. Criminologia crítica e crítica do direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2002
HOBBES, Thomas. Leviatã. Col. Os Pensadores. 3ª ed. São Paulo : Abril Cultural, 1983.
CASSIRER, Ernst. O mito do Estado. São Paulo: Códex, 2003.
CÉSAR, Caio Júlio. Bellvm Civile: a guerra civil. São Paulo : Estação Liberdade, 1999.
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. (Org. Carlos Nelson Coutinho). Volume III. Nicolau Maquiavel II. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 2000.
HUGO, Victor. O último dia de um condenado. São Paulo: Estação Liberdade, 2002.
JAHOBS, Günther& MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo: noções e críticas. Porto Alegre : Livraria do Advogado, 2005.
KAFKA, Franz. A metamorfose. 18ª reimp. São Paulo : Companhia das Letras, 1997.
LYRA FILHO, R. O que é direito. 17. ed. São Paulo: Brasiliense, 2002.
MARTINEZ, Vinício Carrilho. Estado de Exceção e Modernidade Tardia: da dominação racional à legitimidade (anti) democrática. Tese de Doutorado em Ciências Sociais. UNESP/Marília, SP: [s.n.], 2010.
MARX, Karl. O 18 Brumário e cartas a Kugelmann. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
SCHILL, Jeremy. Blackwater: a ascensão do exército mais poderoso do mundo. São Paulo : Companhia das Letras, 2008.
SCHMITT, Carl. O conceito do Político. Petrópolis-RJ : Vozes, 1992.