Teoria da cegueira deliberada

30/01/2018 às 13:22
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A teoria da cegueira deliberada, que tem origem na Suprema Corte dos Estados Unidos, refere-se às situações em que um agente finge não enxergar a ilicitude da procedência de bens, direitos e valores com o intuito de auferir vantagens.

A Teoria da Cegueira Deliberada é uma doutrina criada pela Suprema Corte dos Estados Unidos e também é conhecida no meio jurídico com muitos nomes, tais como “Willful Blindness Doctrine” (Doutrina da cegueira intencional), “Ostrich Instructions” (instruções de avestruz), “Conscious Avoidance Doctrine” (doutrina do ato de ignorância consciente), “Teoria das Instruções da Avestruz”, entre outros.

Essa doutrina foi criada para as situações em que um agente finge não enxergar a ilicitude da procedência de bens, direitos e valores com o intuito de auferir vantagens. Dessa forma, o agente comporta-se como uma avestruz, que enterra sua cabeça na terra, para não tomar conhecimento da natureza ou extensão do seu ilícito praticado. Sendo assim, para a aplicação da Teoria da Cegueira Deliberada, é necessário que o agente tenha conhecimento da elevada possibilidade de que os bens, direitos ou valores sejam provenientes de crimes e que tenha agido de modo indiferente a esse conhecimento.

Em síntese, pode-se afirmar que a Teoria da Cegueira Deliberada busca punir o agente que se coloca, intencionalmente, em estado de desconhecimento ou ignorância, para não conhecer detalhadamente as circunstâncias fáticas de uma situação suspeita.

ABRAMOWITZ & BOHRER apontam que a doutrina da conscious avoidance, também conhecida como willful blindness ou ignorância deliberada (deliberate ignorance) permite que haja uma condenação criminal nos casos em que o Estado falha na produção de provas acerca do real conhecimento do réu sobre uma situação fática suspeita. Tal doutrina afirma que apesar do acusado não ter conhecimento dos fatos, essa falta de conhecimento deve-se a prática de atos afirmativos de sua parte para evitar a descoberta de uma situação suspeita. Em outras palavras, a doutrina da cegueira deliberada permite que se presuma o conhecimento do acusado nos casos em que não há prova concreta do seu real envolvimento com a situação suspeita. Dessa forma, o réu pode ser condenado, apesar de não ter o real conhecimento da atividade criminosa. Por fim, os autores alertam que “a doutrina da conscious avoidance cria o risco de que o júri condene o réu simplesmente porque acredita que o acusado não tenha se esforçado suficientemente para saber a verdade sobre os fatos”.

No que tange à aplicação da Teoria da Cegueira Deliberada, NASCIMENTO (2010) sustenta que:

Para a teoria da cegueira deliberada o dolo aceito é o eventual. Como o agente procura evitar o conhecimento da origem ilícita dos valores que estão envolvidos na transação comercial, estaria ele incorrendo no dolo eventual, onde prevê o resultado lesivo de sua conduta, mas não se importa com este resultado. Não existe a possibilidade de se aplicar a teoria da cegueira deliberada nos delitos ditos culposos, pois a teoria tem como escopo o dolo eventual, onde o agente finge não enxergar a origem ilícita dos bens, direitos e valores com a intenção de levar vantagem. Tanto o é que, para ser supostamente aplicada a referida teoria aos delitos de lavagem de dinheiro“exige-se a prova de que o agente tenha conhecimento da elevada probabilidade de que os valores eram objeto de crime e que isso lhe seja indiferente”.

Passa-se agora à análise dos principais julgamentos existentes no Brasil sobre a aplicação da Teoria das Instruções da Avestruz.

No que tange à utilização da Teoria da Cegueira Deliberada, nos crimes eleitorais, é importante citar alguns julgados do TRE/RO:

“Corrupção eleitoral. Eleições 2004. Materialidade e autoria comprovadas. Prova testemunhal abundante. Dolo configurado. Teoria da cegueira deliberada. Crime formal. Condenação mantida. Recurso desprovido. I - Corrupção eleitoral comprovada: entrega a eleitor de senha, tipo vale-brinde (telefone celular), para obtenção de voto. II - Materialidade constituída pela apreensão da senha, de par à prova oral. III - Autoria apoiada na confissão extrajudicial da acusada e nos depoimentos colhidos em juízo, sob o crivo do contraditório. IV - Retração parcial em juízo, em si, é inservível a espargir qualquer efeito, exatamente por contrastar uma declaração precedente. Não basta alegar. Faz-se mister comprovar. Eficácia da confissão policial, em sua integralidade, dêsque não demonstrado, no crivo do contraditório, o seu caráter ilegítimo. V - Ausência de resquícios de propalada "armação" contra a acusada, supostamente urdida pela oposição a então candidato.VI - "Dolus directus" presente. Imputação viável, no mínimo, a título "dolus eventualis" (CP, art. 18, I, 2ª parte): mesmo seriamente considerando a possibilidade de realização do tipo legal, o agente não se deteve, conformando-se ao resultado. Teoria da "cegueira deliberada" ("willful blindness" ou "conscious avoidance doctrine"). VII - A corrupção eleitoral, em qualquer de suas modalidades, inclui-se no rol dos crimes formais. Para configurá-la, "basta o dano potencial ou o perigo de dano ao interesse jurídico protegido, cuja segurança fica, destarte, pelo menos, ameaçada", segundo Nélson Hungria. VIII - Condenação mantida. Recurso conhecido e desprovido. (872351148 RO, Relator: ÉLCIO ARRUDA, Data de Julgamento: 30/11/2010, Data de Publicação: DJE/TRE-RO - Diário Eletrônico da Justiça Eleitoral, Data 06/12/2010)

Corrupção Eleitoral. Eleições 2006. Fornecimento contínuo de sopa, cestas-básicas e patrocínio de cursos. Propósito de voto em candidato à reeleição a Deputado Estadual. Período eleitoral. Filantropia. Desvirtuamento. Oportunismo eleitoreiro. Materialidade e autoria comprovadas. Fatos conhecidos e provados reveladores do ilícito. Articulação à prova oral. Inteligência do Código de Processo Penal, art. 239. Dolo configurado. Teoria da cegueira deliberada. Crime formal. Acolhimento da pretensão punitiva estatal. Condenação. Continuidade delitiva. Regime aberto. Penas substitutivas de prestação de serviços à comunidade e prestação pecuniária. Multa. I - Corrupção eleitoral comprovada: distribuição contínua de sopa, cestas básicas e patrocínio de cursos, durante o período eleitoral, a troco de voto. II - Materialidade e autoria extraídas do acervo probatório, documentos e testemunhas. Corroboração por fatos conhecidos e provados. Inteligência do art. 239 do Estatuto Processual Penal, subsidiariamente aplicável. III - "Dolus directus" presente. Imputação viável, no mínimo, a título "dolus eventualis" (CP, art. 18, I, 2ª parte): mesmo seriamente considerando a possibilidade de realização do tipo legal, a agente não se deteve, conformando-se ao resultado. Teoria da "cegueira deliberada" ("willful blindness" ou "conscious avoidance doctrine"). VI - A corrupção eleitoral, em qualquer de suas modalidades, inclui-se no rol dos crimes formais. Para configurá-la, "basta o dano potencial ou o perigo de dano ao interesse jurídico protegido, cuja segurança fica, dessarte, pelo menos, ameaçada", segundo Nélson Hungria. VII - A censura penal não decorre da prática de filantropia, de atos de benemerência, de beneficência. É consectário, sim, de desvirtuamento, consistente em oportunismo eleitoreiro: o propósito de obter voto à custa da miséria alheia, sob o fornecimento de "sopão", cestas-básicas, cursos e congêneres. VII - Pretensão punitiva acolhida. Condenação da ré. Continuidade delitiva. Regime aberto. Penas substitutivas de prestação de serviços à comunidade e prestação pecuniária. Multa. VIII - Recurso ministerial provido, à unanimidade. (89 RO, Relator: ÉLCIO ARRUDA, Data de Julgamento: 23/11/2010, Data de Publicação: DJE/TRE-RO - Diário Eletrônico da Justiça Eleitoral, Data 30/11/2010)

“Corrupção Eleitoral. Eleições 2004. Vereador. Realização e Promessa de Cirurgias de laqueadura, a troco de voto. Materialidade e autoria comprovadas. Crime formal. Adequada dosimetria penal. Recurso desprovido. I - O aumento mínimo decorrente da continuidade delitiva e os antecedentes turbulentos do agente obstam a concessão de sursis processual. II - A realização e a promessa de realização de cirurgias de laqueadura, a troco de voto, configura o crime de corrupção eleitoral. III - Acervo probatório suficientemente seguro ao evidenciar a conduta típica, implementada diretamente pelo réu (médico) e por interpostas pessoas ("formiguinhas"), em curso a campanha eleitoral.IV - "Dolus directus" presente. Imputação viável, no mínimo, a título "dolus eventualis" (CP, art. 18, I, 2ª parte): mesmo seriamente considerando a possibilidade de realização do tipo legal, o agente não se deteve, conformando-se ao resultado. Teoria da "cegueira deliberada" ("willful blindness" ou "conscious avoidance doctrine").CP18, IV - A corrupção eleitoral, em qualquer de suas modalidades, inclui-se no rol dos crimes formais. Para configurá-la, "basta o dano potencial ou o perigo de dano ao interesse jurídico protegido, cuja segurança fica, dessarte, pelo menos, ameaçada" , segundo Nélson Hungria. VI - Se o juízo monocrático bem operou a dosimetria da pena, nenhum reparo há de se fazer. VII - Recurso desprovido.(88 RO , Relator: ÉLCIO ARRUDA, Data de Julgamento: 17/04/2008, Data de Publicação: DJ - Diário de justiça, Volume 76, Data 25/4/2007, Página 30)

Embargos Infringentes. Corrupção eleitoral. Eleições 2004. Oferecimento de alimentação, doação de bonés, camisetas e canetas, a troco de voto em candidatos a Prefeito e Vereador. Materialidade e autoria comprovadas. Confissão. Delação. Prova direta conjugada à indireta. Manobras sub-reptícias e "mise-en-scène”:"reunião”. Princípio do livre convencimento motivado. Dolo configurado. Teoria da cegueira deliberada. Crime formal. Embargos desprovidos. I - Corrupção eleitoral comprovada: fornecimento de alimentação, camisetas, bonés e canetas, para obtenção de voto. II - Materialidade extraída de "convite”, de certidão lavrada por meirinho e da prova oral (confissão e testemunhas). III - Autoria: confissão e delação emanada duma das acusadas. Circunstâncias e prova testemunhal corroborantes. IV - Delira do razoável exigir, sempre e sempre, prova direta - testemunhos, registro audiovisual, e.g. - acerca do cometimento de corrupção eleitoral (CE, art. 299). Neste terreno, os agentes, por si ou interpostas pessoas, atuam de modo sub-reptício, dissimuladamente, sem deixar vestígios cabais. E, mais ainda, de ordinário, embaralha-se a prática vedada a outras atividades de campanha isoladamente permitidas. Do" mise-en-scène ", da encenação, o julgador há de extrair as nuanças permissivas ao descortino do verdadeiro escopo do agente. V - " Dolus directus "presente. Imputação viável, no mínimo, a título" dolus eventualis "(CP, art. 18, I, 2ª parte): mesmo seriamente considerando a possibilidade de realização do tipo legal, os agentes não se detiveram, conformando-se ao resultado. Teoria da" cegueira deliberada "(" willful blindness "ou" conscious avoidance doctrine "). CP18, I, VI - A corrupção eleitoral, em qualquer de suas modalidades, inclui-se no rol dos crimes formais. Para configurá-la," basta o dano potencial ou o perigo de dano ao interesse jurídico protegido, cuja segurança fica, dessarte, pelo menos, ameaçada ", segundo Nélson Hungria. (65 RO, Relator: ÉLCIO ARRUDA, Data de Julgamento: 13/12/2007, Data de Publicação: DJ - Diário de justiça, Volume 003, Data 7/1/2008, Página 37)

No que se refere à aplicação da Teoria da Cegueira Deliberada nos casos que envolvem o crime de lavagem de dinheiro, cumpre destacar o julgamento do famoso furto do Banco Central ocorrido em Fortaleza/CE. Na Apelação Criminal 5.520-CE, o Tribunal Regional Federal da 5ª Região firmou o seguinte posicionamento:

PENAL E PROCESSUAL PENAL. FURTO QUALIFICADO À CAIXA-FORTE DO BANCO CENTRAL EM FORTALEZA. IMPUTAÇÃO DE CRIMES CONEXOS DE FORMAÇÃO DE QUADRILHA, FALSA IDENTIDADE, USO DE DOCUMENTO FALSO, LAVAGEM DE DINHEIRO E DE POSSE DE ARMA DE USO PROIBIDO OU RESTRITO (...) - No caso dos autos, o grupo que executou os fatos configura uma verdadeira organização criminosa, tendo empreendido esforços, recursos financeiros de monta, inteligências, habilidades e organização de qualidade superior, em uma empreitada criminosa altamente ousada e arriscada. O grupo dispunha de uma bem definida hierarquização com nítida separação de funções, apurado senso de organização, sofisticação nos procedimentos operacionais e nos instrumentos utilizados, acesso a fontes privilegiadas de informações com ligações atuais ou pretéritas ao aparelho do Estado (pelo menos a empregados ou ex-empregados terceirizados) e um bem definido esquema para posterior branqueamento dos capitais obtidos com a empreitada criminosa antecedente. Reunião de todas as qualificações necessárias à configuração de uma organização criminosa, ainda que incipiente. 2.4 - Imputação do crime de lavagem em face da venda, por loja estabelecida em Fortaleza, de 11 veículos, mediante o pagamento em espécie: a transposição da doutrina americana da cegueira deliberada (willful blindness), nos moldes da sentença recorrida, beira, efetivamente, a responsabilidade penal objetiva; não há elementos concretos na sentença recorrida que demonstrem que esses acusados tinham ciência de que os valores por ele recebidos eram de origem ilícita, vinculada ou não a um dos delitos descritos na Lei n.º 9.613/98. O inciso IIdo PARÁGRAFO 2.º do art. 1.º dessa lei exige a ciência expressa e não, apenas, o dolo eventual. Ausência de indicação ou sequer referência a qualquer atividade enquadrável no inciso IIdo PARÁGRAFO 2º. - Não há elementos suficientes, em face do tipo de negociação usualmente realizada com veículos usados, a indicar que houvesse dolo eventual quanto à conduta do art. 1.º, PARÁGRAFO 1º, inciso II, da mesma lei; na verdade, talvez, pudesse ser atribuída aos empresários a falta de maior diligência na negociação (culpa grave), mas não, dolo, pois usualmente os negócios nessa área são realizados de modo informal e com base em confiança construída nos contatos entre as partes.

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É oportuno, também, mencionar a decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos sobre a Conscious Avoidance Doctrine. Trata-se do caso “In re Aimster Copyright Litigation”. No caso em análise, a Corte Suprema firmou o entendimento de que, na hipótese de violação de direitos autorais, o acusado não poderia alegar em sua defesa que não tinha conhecimento ou condições de saber que os arquivos que tinha disponibilizado apresentavam violação de direitos autorais. Dessa maneira, a Suprema Corte afastou a alegação de ignorância do acusado em relação aos fatos, por entender que o acusado, de forma deliberada, manteve uma indiferença e um desconhecimento intencional da situação ocorrida e por isso responderia por contributory infringement (conduta de contribuir com a violação de direitos autorais).

Por todo o exposto, sem ter a menor pretensão de esgotar o presente tema, observa-se que a Suprema Corte dos Estados Unidos, ao aplicar a doutrina da willful blindness no caso “In re Aimster Copyright Litigation”, firmou o entendimento de que os acusados não podem escapar dos crimes estabelecidos em lei (exemplos: lavagem de dinheiro, tráfico de drogas, violação de direitos autorais) quando deliberadamente criam um escudo de proteção, ou seja, quando as circunstâncias do caso mostram claras evidências de que o acusado poderia ter conhecimento da situação suspeita, mas, mesmo assim, ele age deliberadamente para se manter em estado de desconhecimento.

Por fim, entende-se que, no Brasil, a aplicação da teoria da cegueira deliberada é ainda incipiente, não havendo manifestações conclusivas do STF e do STJ sobre o assunto. Todavia, entende-se que a aplicação da teoria da cegueira deliberada no Brasil encontrará sérias dificuldades, tendo em vista que sugere uma espécie de responsabilidade penal objetiva, cuja aplicação é excepcionalmente aceita no ordenamento jurídico pátrio e sistematicamente afastada pelos Tribunais. Ademais, critica-se a teoria da cegueira deliberada, que pune a negligência do agente a título de dolo eventual.

- Conceito analítico de crime (finalista):

Bipartido: Fato típico + antijurídico

Tripartido: fato típico + antijurídico + culpável

- Art. 18, CP.

Crime doloso (direto ou eventual).

Art. 18, II, CP:

Crime culposo

- Culpabilidade vazia se verifica na concepção finalista, tendo em vista que dolo e culpa se deslocaram da culpabilidade e foram para o fato típico.

- A denominação lavagem de dinheiro surge nos EUA, tendo em vista que, ao receber dinheiro de origem ilícita, o agente adquiriu várias lavanderias para dar uma roupagem lícita ao dinheiro.

- A lei 9.613 (lavagem de dinheiro), em seu artigo 1º sofreu alteração para incluir o termo “infração penal” para ampliar o leque de tipificação e não somente o crime.

O inciso I deixa claro que o dolo (eventual) tem que ser direto. Abre-se mão, assim, da teoria da cegueira deliberada.

- Parte da doutrina critica a teoria tendo em vista que ela defende o dolo eventual (de forma objetiva), e eles entendem que por isso não seria possível sua aplicação.

- O art. 180, § 1º, CP (receptação qualificada) é uma das tipificações penais em que a doutrina aceita que a teoria da cegueira deliberada pode ser aplicada.

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Sobre a autora
Lury Mayra Amorim de Miranda

Graduada em Direito pelo Centro Acadêmico Leão Sampaio - UNILEÃO

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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