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A doutrina da desconsideração da personalidade jurídica e alguns de seus reflexos no ordenamento jurídico brasileiro:

Lei nº 8.078/90, Lei nº 8.884/94, Lei nº 9.605/98 e Lei nº 10.406/02

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15/03/2005 às 00:00
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Essa é a base da teoria da desconsideração: a busca de um ponto de equilíbrio que assegure a autonomia patrimonial e a própria existência da pessoa jurídica e proteja a sociedade contra o uso indevido deste instituto.

Resumo

A necessidade faz com que certos instrumentos sejam criados pelo ordenamento jurídico com a finalidade de auxiliar nas relações sociais. Em reação a essa adequação, novos problemas podem surgir, alguns decorrentes do uso indevido dos próprios instrumentos criados. Com isso, novamente surgirá uma busca por equilíbrio, seguida de outro desequilíbrio, e assim sucessivamente num ciclo dialético. Assim ocorreu com os problemas gerados pela instituição da pessoa jurídica, que ensejaram o nascimento da doutrina de sua desconsideração. Essa doutrina se reflete, embora de formas diferentes, em alguns pontos do ordenamento jurídico brasileiro.

Palavras-chave: pessoa jurídica; desconsideração da personalidade jurídica; responsabilidade; imputação.

SUMÁRIO: Abreviaturas - Introdução – 1. Da pessoa jurídica: 1.1 Das pessoas e sua classificação legal; 1.2 Principais teorias sobre a pessoa jurídica: 1.2.1 teoria da ficção legal; 1.2.2 teoria da realidade objetiva; 1.2.3 teoria da realidade técnica1; 1.2.4 teoria institucionalista; 1.2.5 a posição de hans kelsen; 1.2.6 síntese das teorias; 1.3 fundamentos zetéticos da pessoa jurídica; 1.4 breve nota sobre a limitação da responsabilidade do empresário individual - 2 a desconsideração da personalidade jurídica: 2.1 noções gerais; 2.2 alcance dos efeitos da desconsideração; 2.3 histórico; 2.4 direito comparado norte-americano; 2.5 o ordenamento jurídico brasileiro e a desconsideração - 3 desconsideração no código de defesa do consumidor - 4 desconsideração na lei n.º 8884/9441 - 5 desconsideração na lei n.º 9605/9843: 5.1 pessoa jurídica criminosa? - 6 a desconsideração no código civil: 6.1 princípios fundamentais do código civil; 6.2 definição das hipóteses: 6.2.1 abuso; 6.2.2 fraude; 6.2.3 desvio de finalidade; 6.2.4 confusão patrimonial - 7 algumas figuras paralelas de imputação: 7.1 a solidariedade dentro do grupo econômico no direito do trabalho; 7.2 a responsabilidade de terceiros no direito tributário; 7.3 participação recíproca na lei das sociedades por ações; 7.4 a teoria ultra vires e a teoria da aparência no código civil; 7.5 síntese do confronto com as figuras paralelas - 8 breves comentários sobre a desconsideração no processo – Conclusão - Bibliografia


ABREVIATURAS

CC Código Civil

CLT Consolidação das Leis do Trabalho

CPC Código de Processo Civil

CR Constituição da República Federativa do Brasil

CTN Código Tributário Nacional


INTRODUÇÃO

O direito sedimenta um acordo entre os homens sobre a conduta devida para determinados casos. Conforme vão surgindo os entraves sociais, sejam eles conflitos ou apenas impasses, busca-se, por meio da lei, regular a situação.

Quanto aos impasses, a pessoa jurídica representa importante avanço no campo dos instrumentos utilizados nas relações jurídicas. Basta imaginar quantas reuniões e assinaturas seriam necessárias para um simples negócio jurídico praticado por uma grande multinacional. Sem a pessoa jurídica, cada membro do grupo precisaria outorgar uma procuração.

Quanto aos conflitos, uma das formas de se manter o funcionamento pacífico da sociedade é garantir o equilíbrio das relações.

Um instituto utilizado para tanto é a responsabilização, que, em cada caso, atribui a determinado indivíduo ou grupo um dever de restabelecimento ou compensação.

Quando se verificou que este restabelecimento do equilíbrio não estava sendo possível em certos casos, em razão da utilização indevida da pessoa jurídica, buscou-se corrigir este problema.

Essa nova necessidade ensejou diversas soluções: ora o sistema jurídico utilizou a responsabilização solidária da pessoa jurídica com seus membros; ora, serviu-se da subsidiariedade.

Entretanto, estas duas formas de corrigir o mau uso da pessoa jurídica podiam levar ao prejuízo indevido de inocentes, entre os quais poderiam estar alguns membros, e até a própria pessoa jurídica.

Em razão disso, surge a doutrina da desconsideração da pessoa jurídica, que possibilita a responsabilização do verdadeiro causador do ilícito.

O presente trabalho analisa alguns reflexos dessa doutrina no ordenamento jurídico brasileiro.


1 DA PESSOA JURÍDICA

1.1 DAS PESSOAS E SUA CLASSIFICAÇÃO LEGAL

THOMAS HOBBES (2003:123) liga a idéia de pessoa ao personagem que os homens representam na sociedade:

"A palavra ‘pessoa’ é de origem latina. Para lhe dar significado os gregos tinham prósopon, que significa ‘rosto’, tal como em latim persona significa o disfarce ou a aparência exterior de um homem, imitada no palco. Por vezes, mais particularmente aquela parte dela que disfarça o rosto, como máscara ou viseira. Do palco a palavra foi transferida para qualquer representante da palavra ou da ação, tanto nos tribunais como nos teatros. Uma pessoa é o mesmo que um ator, tanto no palco como na conversação corrente. Personificar é representar, seja a si mesmo ou a outro."

Conclusão semelhante foi obtida por MARCOS BERNARDES DE MELLO (2003:141), quanto à origem etimológica da palavra:

"a própria palavra pessoa, quer se a considere advinda de per sonare, querendo referir-se à voz que saia através da máscara, segundo afirmado desde Aulo-Gélio, ou do grego prósopon, como sugerido por Keller, quer se a admita, como se mostra mais correto, vinda do verbo latino perso, personare, originário do etrusco ρersu, que quer dizer máscara de teatro, gente com máscara, expressa um modo de ser do homem, o homem como personagem no ambiente social, o homem em suas relações intersubjetivas, portanto, não apenas o próprio homem em sua natureza. Pessoa é a veste social do homem, na feliz expressão de Miguel Reale."

A teoria tradicional identifica pessoa com sujeito de direito. Essa teoria é adotada, por exemplo, por PONTES DE MIRANDA, conforme lembra FABIO KONDER COMPARATO (1976:272).

Para PONTES DE MIRANDA (1954:153), os sujeitos de direito são pessoas titulares de "direito" (abrangendo aqui direitos e obrigações). As pessoas, por outro lado, são entes aos quais a lei atribui a possibilidade de se tornar sujeitos de direito, ou seja, figurar em uma relação ou situação jurídica, ou ainda, nas palavras do imortal jurista (1954:155):

"Pessoa é o titular do direito, o sujeito de direito. Personalidade é a capacidade de ser titular de direitos, pretensões, ações e exceções e também ser sujeito (passivo) de deveres, obrigações, ações e exceções. Capacidade de direito e personalidade são o mesmo."

Ainda segundo ele, tendo a pessoa direitos inatos, a possibilidade de direitos inerente aos sujeitos de direito diz respeito aos direitos não inatos (1954:155).

Atualmente, é inegável que aquele conceito de pessoa deve ser revisto, uma vez que, conquanto "pessoa" seja sempre "sujeito de direito", a recíproca não é verdadeira.

Essa confusão, aliás, é mencionada por MARCOS BERNARDES DE MELLO (2003:126), que ressalta a existência de sujeitos de direito que não são pessoas, como, por exemplo: a sociedade não-personificada, a sociedade irregular, o espólio, a massa falida, o condomínio, a herança jacente, a herança vacante, o nascituro e o nondum conceptus.

Uma diferença entre os sujeitos de direito personalizados e os não-personalizados é apontada por FÁBIO ULHOA COELHO (2002:10), para quem, enquanto aqueles possuem autorização genérica para a prática de atos jurídicos, exceto os que a lei expressamente proibir, estes somente podem realizar "os atos essenciais para o seu funcionamento e aqueles expressamente definidos".

Deve-se ressaltar, todavia, que as pessoas de direito público apenas podem praticar o que a lei expressamente autorizar, conforme assinala CARLOS ARI SUNDFELD (1996:152):

"Esse princípio – em verdade um subprincípio do direito público, decorrência que é da submissão do Estado à ordem jurídica – determina que ato algum do Estado surgirá senão como comando complementar da lei."

Quanto às demais pessoas jurídicas, também sua atuação é limitada pelos fins previstos em seus atos constitutivos.

As pessoas, nos termos do Livro I do Código Civil, são as naturais e as jurídicas. Entre aquelas, está o ser humano nascido com vida, nos termos do art. 2.º.

Por sua vez, as pessoas jurídicas podem ser: a) de direito público interno (CC, art.41) - União, Estados, Distrito Federal, Territórios, Municípios, Autarquias, demais entidades de caráter público criadas por lei; b) de direito público externo (CC, art. 42): os Estados estrangeiros e todas as pessoas que forem regidas pelo direito internacional público; e c) de direito privado (CC, art. 44): associações, sociedades, fundações, organizações religiosas e partidos políticos.

Embora MARCOS BERNARDES DE MELLO (2003:154) mencione que "pessoas jurídicas são entidades criadas pelo homem às quais o ordenamento jurídico atribui personalidade jurídica", merece destaque o fato de que certas pessoas jurídicas são criadas por outras pessoas jurídicas. O que não se nega é que sempre haverá intervenção humana, ainda que indiretamente.

Para FÁBIO KONDER COMPARATO (1976:272) a pessoa não tem direitos ou deveres, mas é um conjunto direitos e deveres, assim como "a árvore não tem tronco, ramos, folhas e flores, mas é o conjunto desses elementos".

Diante dessa exposição, pode-se concluir ser a pessoa um sujeito de direito resultante da eficácia legal atribuída a certos fatos jurídicos (MELLO,2003:140).

1.2 PRINCIPAIS TEORIAS SOBRE A PESSOA JURÍDICA

A pessoa jurídica é produto da vida em sociedade. Assim como a sociedade, ela resulta das deficiências da natureza humana (RODRIGUES,1995:64).

As principais teorias que procuraram explicar este instituto, segundo SILVIO RODRIGUES (1995:65), foram: a) ficção legal; b) realidade objetiva; c) realidade técnica; d) institucionalista.

1.2.1 TEORIA DA FICÇÃO LEGAL

Esta teoria teve como principal defensor Savigny (Traité de droit romain, trad. Guéneoux, Paris, 1845, § 85 apud RODRIGUES, 1995: 65).

Segundo ela, ao contrário da pessoa natural que existe por criação da natureza, a pessoa jurídica só existe em razão de determinação legal, que a considera, ficticiamente, um ser existente.

Conforme assinala MIGUEL REALE (1988:230), "preferiu Savigny ver no conceito de pessoa jurídica mais um exemplo de fictio juris, existente apenas como artifício técnico imposto pelas necessidades da vida em comum".

SÍLVIO DE SALVO VENOSA (2003:255) menciona que essa teoria sofreu críticas em razão de não explicar adequadamente quem teria atribuído personalidade ao Estado, uma vez que este é quem atribui personalidade aos entes, mesmo aos seres humanos.

Além disso, MIGUEL REALE (1988:230) menciona diversas dificuldades enfrentadas pelo judiciário para conciliar a pessoa jurídica como simples ficção ao mesmo tempo que não se podia responsabilizar associados pelas dívidas de uma sociedade civil, ou estender os efeitos da falência aos sócios da Sociedade Anônima.

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1.2.2 TEORIA DA REALIDADE OBJETIVA

Também chamada de realidade orgânica (VENOSA, 2003:256), nasceu na Alemanha com Gierke e Zitelmann em reação à teoria da ficção legal (RODRIGUES, 1995: 66).

A linha desta corrente considera a possibilidade de a vontade pública ou privada ser capaz de dar vida a um organismo autônomo em relação a seus componentes, uma realidade sociológica que pode participar das relações e situações jurídicas (RODRIGUES, 1995:66).

Leciona, sobre ela, MIGUEL REALE (1988:230-231):

"Segundo a teoria organicista, quando os homens se reúnem para realizar qualquer objetivo, de natureza política, comercial, civil, estética ou religiosa, forma-se efetivamente uma entidade nova. Constitui-se um grupo que possui existência inconfundível com a de seus membros, tendo sido, mesmo, observado, por adeptos dessa teoria, que também nas combinações químicas o corpo composto apresenta qualidades que nem sempre são as dos elementos que o formam."

Destaca SÍLVIO DE SALVO VENOSA (2003:256) que esse posicionamento foi adotado no Brasil por CLÓVIS BEVILÁQUA.

1.2.3 TEORIA DA REALIDADE TÉCNICA

A pessoa jurídica seria uma realidade e não uma ficção, mas uma realidade técnica e não sociológica, um instrumento para satisfação de certos interesses humanos (RODRIGUES, 1995: 66).

Segundo MARCOS BERNARDES DE MELLO (2003:144), essa teoria foi difundida por Gény.

É um mero expediente para resolver certos impasses surgidos das necessidades humanas. Assim como o direito reconhece a personalidade ao ser humano isoladamente, a personalidade deve ser atribuída de maneira autônoma aos agrupamentos humanos cujos interesses transcendem a esfera individual (VENOSA, 2003:257).

1.2.4 TEORIA INSTITUCIONALISTA

Para MIGUEL REALE (1988:231), esta seria a teoria que tentou se situar entre os pólos realidade e ficção.

Formulada por Maurice Hauriou, prega que "a instituição preexiste ao momento em que a pessoa jurídica nasce" (RODRIGUES, 1995:66).

Cuida-se de uma organização com fins comuns aos membros que a compõem. É o grau de concentração e de organização que converte automaticamente a instituição em pessoa jurídica (RODRIGUES, 1995:67).

Independentemente de a lei reconhecer a personalidade das instituições, é fato que elas participam da vida social com personalidade moral (VENOSA, 2003:258).

Esclarece MIGUEL REALE (1988:231) que essa teoria parte da tradição tomista que distingue dois tipos de unidade, a física e a finalística. Naquela, há um todo homogêneo, cujas partes não apresentam entre si diferenças fundamentais ou relevantes. Esta, ao contrário, estabelece-se mediante a complementação de partes diferençadas.

Assim, "a pessoa jurídica é uma existência, mas uma existência teleológica, ou seja, finalística" (REALE,1988:232).

1.2.5 A POSIÇÃO DE HANS KELSEN

O entendimento de HANS KELSEN merece destaque especial devido à sua peculiaridade. Anota FÁBIO KONDER COMPARATO (1976:276-277), a propósito:

"Se as idéias de Kelsen não foram aceitas integralmente por ninguém, é preciso, no entanto, reconhecer que elas exerceram, e continuam a exercer, a importante função de uma espécie de detergente do pensamento jurídico, ajudando-o, de fato, a purificar-se de um certo número de ilusões. Não se pode deixar de reconhecer que, a partir de Kelsen, a teoria da pessoa jurídica jamais voltará a ser o que era antes. A sua influência, aliás, transparece de forma nítida no pensamento de alguns importantes juristas coevos."

Como se viu, para a teoria da ficção legal, a pessoa jurídica é uma criação do direito. Sendo assim, não parece correto o entendimento de SILVIO DE SALVO VENOSA (2003:255) de que HANS KELSEN seria um ficcionista.

Com efeito, leciona HANS KELSEN (1994:211-212):

"O resultado da análise precedente da pessoa jurídica é que esta, tal como a pessoa física, é uma construção da ciência jurídica. Como tal, ela é tampouco uma realidade social como o é – conforme, apesar de tudo, por vezes se admite – qualquer criação do Direito. [...] Porém, esta personificação e o seu resultado, o conceito auxiliar de pessoa jurídica, são um produto da ciência que descreve o Direito, e não um produto do Direito." (destacou-se)

FÁBIO KONDER COMPARATO (1976:276) assinala que a posição de KELSEN quanto à pessoa não está ligada à idéia medieval de corpo espiritual, bem como não se confunde com a ficção de SAVIGNY. Na realidade, considera ser uma criação do intelecto, mas não do legislador, e sim dos juristas, que interpretam, "canhestramente, esse centro de imputação normativa como sujeito de direitos."

Apesar de não se considerar KELSEN como adepto da corrente da ficção legal, é evidente que a pessoa jurídica não é mero produto da ciência do direito. É, de fato, uma parte do objeto desta, ou seja, uma pequena parte do ordenamento.

Para KELSEN, segundo sustenta MIGUEL REALE (1988:234), as pessoas jurídica seriam apenas "conjuntos normativos", "centros de imputação".

A posição de KELSEN é adotada por FÁBIO KONDER COMPARATO (1976:272) em seu "Poder de controle da sociedade anônima", que define a pessoa como "complexo de deveres".

1.2.6 SÍNTESE DAS TEORIAS

Para tratar da pessoa jurídica, mister que se separe o mundo dos fatos do mundo jurídico.

No primeiro, nossa percepção apenas constata que existe um certo tratamento dado pela sociedade (pelos homens) aos entes personalizados, e mesmo aos despersonalizados, como se fossem um "ser existente", em certos aspectos.

Nessa linha, diz-se que o prédio é da "empresa tal", ou que o indivíduo X é empregado "daquela firma", ou que é funcionário público da "Prefeitura de tal cidade".

Talvez os sócios vejam de uma forma um pouco diferente sua relação com os bens da sociedade que compõe, podendo até chamá-los de "seus". Mas, de qualquer forma, sabem que não podem usá-los privativamente e para fins pessoais, uma vez que constituem um "condomínio".

Mas toda essa aparente falta de clareza, essa profunda abstrrdação, torna-se consistente se examinada no âmbito próprio, qual seja, no mundo jurídico.

A pessoa jurídica é um instituto, assim como o é a enfiteuse, o fideicomisso, a propriedade, a responsabilidade etc.

Assim, se se considera como real apenas o que é tangível, estarão corretos os ficcionistas.

Por outro lado, se considerada a realidade algo mais que o simples mundo perceptível, a pessoa jurídica será considerada existente.

Mas essa existência, enquanto está no plano teleológico para os institucionalistas (REALE,1988:232), para os realistas, ela se situa no plano físico (REALE, 1988:231).

Em remate, note-se os esclarecimentos de CHÄIM PERELMAN (1998:86):

"A ficção jurídica, diferentemente da presunção irrefragável, é uma qualificação dos fatos sempre contrária à realidade jurídica. Se esta realidade é determinada pelo legislador, sua decisão, qualquer que seja, jamais constitui uma ficção jurídica, mesmo que se afaste da realidade de sentido comum. Assim é que, ao atribuir personalidade jurídica a associações, o legislador não institui uma ficção jurídica, mesmo que a assimilação dos grupos a pessoas físicas se afaste da realidade psicológica e moral.

Mas, se o juiz confere a um grupo que não tem personalidade jurídica o direito de interpor uma ação judicial, quando tal direito é reservado pela lei apenas às pessoas jurídicas, ele recorre à ficção."

1.3 FUNDAMENTOS ZETÉTICOS DA PESSOA JURÍDICA

Do ponto de vista dogmático, o questionamento acerca dos fundamentos da pessoa jurídica circunscrevem-se à sua validade, e se esgota na própria norma, de modo que o estudo fica adstrito ao ordenamento.

A propósito, leciona TERCIO SAMPAIO FERRAZ JUNIOR (2003, p.48):

"Já falamos dessa característica da dogmática. Ela explica que os juristas, em termos de estudo estrito do direito, procurem sempre compreendê-lo e torná-lo aplicável dentro dos marcos da ordem vigente. Essa ordem que lhes aparece como um dado, que eles aceitam e não negam, é o ponto de partida inelutável de qualquer investigação. Ela constitui uma espécie de limitação, dentro da qual eles podem explorar as diferentes combinações para a determinação operacional de comportamentos juridicamente possíveis."

Do ponto de vista zetético, porém, vai-se além, para perquirir a razão da existência e os valores utilizados na lei ao criar o instituto, com o que se inferirá um mecanismo eficaz de interpretação, orientando a aplicação do direito.

FÁBIO KONDER COMPARATO (1976:271), baseado em KELSEN (1994), sustenta que inicialmente tanto o conceito de pessoa como o de direito subjetivo foram uma proposta do jusnaturalismo para defender a ordem capitalista e a instituição da propriedade privada contra a ação estatal.

Conclui, enfim, ser a personalização "uma técnica jurídica utilizada para se atingirem determinados objetivos práticos – autonomia patrimonial, limitação ou supressão de responsabilidades individuais – não recobrindo toda a esfera da subjetividade, em direito" (COMPARATO, 1976:290).

Na mesma linha, ressalta FÁBIO ULHOA COELHO (1989:13) que, dentre os principais efeitos da criação da pessoa jurídica, destaca-se sua autonomia, inclusive patrimonial, em relação à pessoa de seus membros ou sócios.

Sendo certo que, nos termos do art. 391 do CC, o patrimônio do devedor responde por seus débitos, os sócios ou membros da pessoa jurídica não são atingidos pelas dívidas desta.

Na lição de FÁBIO ULHOA COELHO (2002:13-14), em relação às sociedades empresárias:

"na medida em que a lei estabelece a separação entre a pessoa jurídica e os membros que a compõem, consagrando o princípio da autonomia patrimonial, os sócios não podem ser considerados os titulares dos direitos ou os devedores das prestações relacionados ao exercício da atividade econômica, explorada em conjunto. Será a própria pessoa jurídica da sociedade a titular de tais direitos e devedora dessas obrigações."

O objetivo do legislador com esse princípio é promover o desenvolvimento econômico, consoante salienta FÁBIO KONDER COMPARATO (1976:359): "Não se pode esquecer que a responsabilidade limitada é fator de progresso econômico, pois, permitindo um maior afluxo de capitais para as atividades produtivas, contribui para uma redução relativa de custos e preços".

Nesse sentir, a pessoa jurídica pode ser vista como uma sanção premial (JUSTEN FILHO,1987:46-51), ou seja, considerando a intenção do Estado em promover o investimento e conseqüente desenvolvimento da nação, utiliza-se de instrumentos como a pessoa jurídica como atrativo para tanto.

Com isso, presente o suporte fático consistente no grupamento de pessoas ou bens com a finalidade de atingir certos fins queridos pelo Estado, atribui-se-lhes o efeito da personalização.

Diante do atual ordenamento jurídico brasileiro, para FÁBIO ULHOA COELHO (2002:15-16), parece ser esta a principal utilidade da pessoa jurídica na visão de seus sócios, qual seja, proteger o patrimônio destes, estimulando o investimento, e o desenvolvimento econômico:

"A partir da afirmação do postulado jurídico de que o patrimônio dos sócios não responde por dívidas da sociedade, motivam-se investidores e empreendedores a aplicar dinheiro em atividades econômicas de maior envergadura e risco."

Merece ser salientado, contudo, que apenas certas pessoas jurídicas, e desde que constituídas atendendo aos termos legais, podem ter a responsabilidade dos sócios efetivamente limitada.

Mas não se restringe ao âmbito econômico a influência desse princípio. No tocante à Administração Pública, caso os administradores respondessem pessoalmente, independentemente de dolo ou culpa, por eventuais prejuízos causados no mero exercício de suas competências funcionais, dificilmente alguém se proporia a tal mister.

O mesmo em relação a Associações e Fundações, inclusive aquelas com fins humanitários.

Cabe ainda neste tópico serem tecidas algumas considerações especificamente acerca da autonomia patrimonial.

De acordo com a lição de FÁBIO ULHOA COELHO (2002:20-22), nota-se que, em relação às sociedades empresárias, foi levada em consideração a natureza das obrigações para se estabelecer a autonomia da pessoa jurídica.

Assim, enquanto no campo das obrigações negociáveis, existentes grosso modo no direito privado, prestigia-se a autonomia, com o objetivo salientado supra; no âmbito das obrigações não negociáveis, mormente situadas no direito público, especialmente os tributos, verifica-se que o ordenamento restringiu a separação entre a pessoa jurídica e seus sócios ou membros (COELHO,2002:21).

A fundamentação dessa diferenciação está em que, enquanto nas relações empresariais os empresários podem calcular seus riscos e embutir em seus preços o valor destes, o mesmo não é possível, por exemplo, nas relações entre empregado e empregador, ou entre contribuinte e fisco.

Nessa esteira, quanto a estas últimas, existem previsões legais responsabilizando entes não integrantes da relação jurídica, como, por exemplo, no art. 2.º, §2.º, da CLT, que protege o empregado, e nos artigos 134 e 135 do CTN, que resguardam o fisco.

Porém, mesmo nas relações negociáveis, passou-se a flexibilizar a autonomia da pessoa jurídica em busca de novos limites, a fim de se chegar a um ponto de equilíbrio na aplicação do direito, conforme mencionado no início deste trabalho.

Isso se deu quando se verificou o desvirtuamento do instituto da pessoa jurídica, mesmo no âmbito das relações privadas, e as mazelas que gerariam na sociedade (COELHO,2002:20).

Foi eminentemente essa situação que ensejou o nascimento da doutrina da desconsideração da personalidade jurídica.

1.4 BREVE NOTA SOBRE A LIMITAÇÃO DA RESPONSABILIDADE DO EMPRESÁRIO INDIVIDUAL

Consoante tópico 1.3 supra, a constatação de que certas atividades demandariam um maior número de pessoas e recursos para serem realizadas levou à personalização das sociedades empresárias, com a limitação da responsabilidade patrimonial (COMPARATO,1976:359; COELHO,2002:15-16;59-60).

Com isso, o legislador quis estimular o investimento, pois assegurava aos investidores ou empreendedores que, caso o negócio não vingasse, só perderiam sua contribuição para o capital da sociedade.

Vale ressaltar que a limitação de responsabilidade não tem ligação direta com a personalização (COELHO,2002:7), mesmo porque existem sociedades em que os sócios respondem ilimitadamente (OLIVEIRA,1979: 261).

Nada obstante, ao que parece, a visão que levou a essa normatização, atualmente pelo menos, não parece estar correta.

É cediço que muitos indivíduos, sozinhos, têm recursos suficientes para desenvolver atividades de grande porte.

Porém, caso queiram, logicamente irão preferir a garantia da separação patrimonial e limitação de responsabilidade, que são mais efetivas nas sociedades por ações. Mas normalmente são escolhidas as sociedades limitadas por questões de ordem prática.

Nota-se, assim, que esses sujeitos acabam sendo forçados a instituírem sociedade quando, na verdade, não necessitariam de ninguém para tanto.

Como conseqüência dessa distorção entre a realidade e a visão legal, muitas vezes são presenciadas sociedades onde um dos sócios chega a possuir 99% das ações.

Questiona-se, então: por que a limitação da responsabilidade continua condicionada à criação de uma sociedade?

De outro lado, se o empresário individual responde ilimitadamente pelas dívidas da atividade, não se vê razão para a exigência de indicação do capital. Seria, então, mais coerente exigir que apresentasse sua declaração de bens e rendimentos.

Assim, talvez fosse o momento de o legislador brasileiro garantir ao empresário individual a limitação de sua responsabilidade ante a ausência de conexão razoável entre esta e a formação de sociedade. Já existe, a propósito, exemplo no direito comparado, conforme aponta JOSÉ LAMARTINE CORRÊA DE OLIVEIRA (1979:261).

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Sobre o autor
Leandro Sarai

Doutor e Mestre em Direito Político e Econômico e Especialista em Direito Empresarial pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Advogado Público.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SARAI, Leandro. A doutrina da desconsideração da personalidade jurídica e alguns de seus reflexos no ordenamento jurídico brasileiro:: Lei nº 8.078/90, Lei nº 8.884/94, Lei nº 9.605/98 e Lei nº 10.406/02. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 615, 15 mar. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6440. Acesso em: 19 mar. 2024.

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