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Validade da indexação de contratos a moeda estrangeira

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02/02/1997 às 00:00
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ADMISSIBILIDADE DA INDEXAÇÃO A MOEDA ESTRANGEIRA

Uma solução bastante prática para o problema da inflação seria atrelar o valor das obrigações dentro do país ao valor de uma moeda estrangeira forte, o que garantiria a preservação do valor aquisitivo da moeda de um modo razoável, mas sendo o pagamento efetivo realizado em moeda nacional, pelo câmbio oficial. Mas, com tantas restrições ao contrato em moeda estrangeira, ainda seria juridicamente permitido fazê-lo?

Esta é a grave questão jurídica que tentaremos resolver neste estudo:

Em face das restrições ao contrato em moeda estrangeira, permanece a validade das obrigações com cláusulas de correção em moeda estrangeira, mas com o efetivo pagamento realizado em moeda nacional?

VALIDADE LEGAL

O vigente Decreto-Lei 857/69, como vimos, traz no art. 1º uma regra geral (proibição de obrigações com pagamento em ouro, moeda estrangeira etc.); e no art. 2º uma série de exceções, relativas a obrigações internacionais.

Mas seria possível encontrar, no art. 1º, uma permissão ao uso da moeda estrangeira como simples índice de correção, mas não como modo de pagamento? Analisemo-lo melhor, para encontrar o seu real significado:

“São nulos de pleno direito os contratos, títulos e quaisquer documentos, bem como as obrigações que, exeqüíveis no Brasil, estipulem pagamento em ouro, em moeda estrangeira, ou, por alguma forma, restrinjam ou recusem, nos seus efeitos, o curso legal do cruzeiro.”

Dividem-se aqui as opiniões: uma, que entende ser válida a cláusula de correção em questão. Outra, que prega a sua nulidade. Analisemos cada uma delas:

a) Nulidade da cláusula de correção:

Uma significativa parte da jurisprudência mantém o espírito nominalista. Para estes, persiste vedada qualquer espécie de estipulação em moeda estrangeira, mesmo se o pagamento efetivo é feito em moeda nacional. Ou seja, tanto a utilização da moeda estrangeira como moeda de pagamento, como também seu uso como mera “moeda de conta” (índice). Esta é a opinião de Maria Elisa Mendes Gualani e Alberto Xavier.

Justificam que as cláusulas de indexação, por inviabilizar o uso da moeda nacional em toda a sua plenitude, se incluem entre as cláusulas que, “por alguma forma, restringem ou recusam, nos seus efeitos, o curso legal do cruzeiro”.

A cláusula de escala móvel seria ainda um atentado à ordem pública monetária, por violar um “princípio de interesse público que trata do curso forçado da moeda nacional e os limites em que se admitem cláusulas de reajuste automático nas obrigações pecuniárias” (Julgados TARGS, 78:256).

Neste sentido, jurisprudência recente da 4ª Turma do STJ: “É taxativamente vedada a estipulação, em contratos exeqüíveis no Brasil, de pagamento em moeda estrangeira, a tanto equivalendo calcular a dívida com indexação ao dólar norte-americano” (Repertório IOB, 8723:310. Acórdão unânime de 22.06.93. Rel. Min. Athos Carneiro. Apud Orlando Gomes, Obrigações, atualizado por Humberto Teodoro Jr., p. 47).

O art. 1º seria, assim, de alcance geral e irrestrito. Só seria válida a indexação a moeda estrangeira se o bem objeto da transação for proveniente de obrigação internacional, ou seja: encaixando-o nas exceções enumeradas no art. 2º. Assim, por exemplo, no contrato de leasing, seria necessário que o móvel objeto do contrato tenha sido importado para a locação, ou “tenha sido adquirido pela arrendadora com recursos oriundos do exterior, provenientes que sejam de empréstimo em moeda alienígena” (Julgados TARGS, 78:256. 1ª Câmara Cível, 14.05.91, Rel. Osvaldo Stefanello ).

b) Validade da cláusula de correção:

Para esta corrente interpretativa, a finalidade do artigo 1º é bem mais restrita. A intentio seria de vedar cláusulas em que, concretamente, a moeda estrangeira substituísse a nacional, como a cláusula ouro e a cláusula moeda estrangeira, em que os pagamentos são efetivamente feitos em ouro ou em moeda estrangeira — as obrigações de valuta, ou obrigações valutárias (Antunes Varela, Das obrigações em geral, v. 1., p. 832).

Diferente é o intuito das cláusulas de preservação do valor real da moeda. Nestas, o valor é apenas designado em moeda estrangeira, mas não há cláusula de efetivo pagamento nesta moeda. O débito deve ser pago em moeda nacional, pelo valor da cotação cambial. Não há substituição da moeda nacional, mas a fixação de sua relação de equivalência a uma moeda estrangeira.

A cláusula de indexação a moeda estrangeira constitui uma modalidade das cláusulas de escala móvel. Não há aqui repulsa ao curso legal da moeda. A moeda estrangeira atua apenas como qualquer outra cláusula de escala móvel, um mero mecanismo para preservar o valor de troca da moeda nacional, que é severamente prejudicado pela inflação. Pelo contrário, estimula o curso monetário, pois evita a estagnação da economia diante da incerteza da economia.

O art. 1º claramente só veda a estipulação de “pagamento ... em moeda estrangeira”. Da simples interpretação literal, deduz-se que é vedada apenas a estipulação do efetivo pagamento em moeda estrangeira, mas não se proíbe a simples menção de pagamento nessa moeda, desde que o pagamento efetivo se realize em moeda nacional.

A jurisprudência, após vacilações, começa a aceitar com mais firmeza a validade destas cláusulas de indexação.

Jurisprudência recente, da 3ª Turma do STJ, mostra uma tendência de aceitação da cláusula de escala móvel por este tribunal, que até pouco tempo não a admitia:

“Legítimo é o pacto celebrado em moeda estrangeira, desde que o pagamento se efetive pela conversão na moeda nacional ... O legislador visou a evitar não a celebração de pactos ou obrigações em moedas estrangeiras, mas, sim, aqueles que estipulassem o seu pagamento em outro valor que não o cruzeiro — moeda nacional — recusando seus efeitos ou restringindo seu curso legal”

REsp. 36.120-6-SP, acórdão unânime de 21.09.93, Rel. Min. Waldemar Zveiter. Citado em Julgados TARGS, 91:160.

O STF assim já se pronunciou sobre o tema:

“É válida a estipulação de que o pagamento seja efetuado em moeda corrente do país, correspondente a dólares americanos, ao câmbio oficial na data da liquidação”

(R.E. 94.331-5, STF, Rel. Min. Alfredo Buzaid. Jurisprudência Brasileira, 70:144. Apud Sérgio da Silva Couto, in: COAD/ADV, 7/94. Citado em Julgados TARGS, 91:161).

Um julgado de 1994 do Tribunal de Alçada do Rio Grande do Sul trata com precisão este tema:

“Copiosa jurisprudência entende ser nula a cláusula que prevê reajustamento do débito consoante as variações de moeda estrangeira e, mais precisamente, segundo o dólar americano ... Todas essas conclusões, pode-se dizer, até recentemente dominantes, têm sido substancialmente alteradas pelos tribunais pátrios que, em razão da adoção da moeda norte-americana, generalizadamente, em virtude da instabilidade econômica e pela insegurança das constantes alterações dos indexadores da economia, têm admitido como válidos e eficazes os contratos celebrados em dólar, quando previsto o pagamento em moeda nacional, segundo a cotação daquele na época do pagamento.”

(Julgados TARGS, 91:156-60, 20.04.94. Rel. Aldo Ayres Torres).

Sérgio da Silva Couto, em precioso trabalho à luz de atualizada análise dos tribunais, diz ter encontrado “uníssona manifestação” permitindo a indexação a moeda estrangeira, como meio de defesa do patrimônio própria dos países de economia combalida” (Sérgio da Silva Couto, op. cit. Citado em Julgados TARGS, 91:160-2). Cita, dentre outros, um julgado que justifica a cláusula da escala móvel à luz da desindexação promovida pelo governo para a implantação do Plano Real:

“Todos os índices adotados pelo governo se mostram ineficientes ao combate da inflação e foram sucessivamente desprezados e abolidos até os dias atuais, quando, pelo menos na teoria, a economia foi desindexada, sem que, não obstante, ficasse eliminada a inflação”

(TACívRJ, acórdão 653/9, 4ª CC, Rel. Juiz Marden Gomes. Apud Sérgio da Silva Couto, op. cit. Citado em Julgados TARGS, 91:161).

Contudo, é cedo para dizer que a matéria pacificou jurisprudencialmente, como assinala Humberto Teodoro Júnior, pois vem encontrando na jurisprudência marés de prós e contras, conforme as leis e as necessidades dos fatos (Orlando Gomes, Obrigações, atualizado por Humberto Teodoro Jr., p. 47).


INDEXAÇÃO E PRINCÍPIOS DO DIREITO

Arnoldo Wald a cláusula de escala móvel em termos quase poéticos, parafraseando um adágio romano e uma célebre frase de Keynes. Para ele, a indexação serve “para garantir a cada um o que é seu hoje e o que será seu amanhã, para dar ao índice o papel que a moeda já não mais pode exercer de ponte entre o presente e o futuro” (Arnoldo Wald, op. cit., p. 169). Ou seja, faz a justiça do caso concreto (suum cuique tribuendi), suprindo o caráter referencial perdido pela moeda.

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Para Caio Mário, a indexação é estratégia “tecnicamente válida e moralmente recomendável”. É vantajoso para ambas as partes, constituindo um meio de defesa antecipada. Ampara o credor, pois impede que o devedor se aproveite da perda do valor da moeda devido à inflação, o que constituiria um locupletamento ilícito. E ampara o devedor, por ser mais seguro que a pura e simples especulação do credor (Apud  Carlos Alberto Bittar, A indexação, p. 23-4).

Tal idéia condiz com o princípio da autonomia da vontade, que prevê a auto-regulação dos interesses privados dentro dos limites das normas de ordem pública. Logo, “se a parte adere livremente à cláusula contratual, não pode ela posteriormente invocar a sua ilegalidade para se desonerar, sob a pena de se beneficiar da própria torpeza e de enriquecer sem causa” (Sérgio da Silva Couto, in: COAD/ADV, 7/94, citado em Julgados TARGS 91:161).

Baseado neste critério, o TJ-DF já decidiu:

“Se a estipulação em moeda estrangeira serviu apenas como parâmetro, tem-se que o contrato é válido, máxime se resultado do consentimento recíproco e livre das partes”

(TJ-DF, acórdão unânime da 2ª Turma, al. 3.766, Rel. Des. João Mariosa. Apud Sérgio da Silva Couto, op. cit., citado em Julgados TARGS 91:161).

Pelo contrário, se o credor pudesse recusar a moeda nacional no momento do pagamento, ou se o devedor pudesse recuar, pedindo a anulação da obrigação, aí sim se configuraria séria ameaça ao curso da moeda.. Seria, além de um fator de grave instabilidade ao negócio jurídico, um atentado contra o princípio da boa-fé.


CONVENIÊNCIA ECONÔMICA

Partamos do pressuposto de que a cláusula de indexação é juridicamente lícita. Mas seria economicamente conveniente à moeda nacional?

Por um lado, a indexação é um empecilho ao reequilíbrio dos preços, gerando um círculo vicioso e dificultando o combate à inflação, o que pode levar a que nos acostumemos com a inflação, ao invés de combatê-la de frente. Por outro aspecto, coíbe a inflação, pois elimina o proveito que se poderia tirar dela, refreando a especulação. Sem esta cláusula, o credor recorreria a altas taxas de juros e encarecimento das prestações como garantia contra a inflação.

Para Orlando Gomes, “a realidade pode mais do que a lógica jurídica” (Orlando Gomes, Transformações gerais do Direito das Obrigações, p. 152). Admitir a nulidade da cláusula de indexação seria refrear, senão paralisar, os negócios.

Seria a moeda estrangeira um índice adequado? A questão é pertinente. A referência do dólar é o valor cambial externo da moeda nacional, e não o seu valor aquisitivo interno. Por isso, sua variação não acompanha necessariamente a perda do poder de compra da moeda brasileira, possibilitando distorções. Na prática, porém, objeta-se que, devido às constantes alterações, substituições e extinções dos outros índices existentes,  talvez o dólar seja o índice mais confiável.


DIA DA CONVERSÃO EM MOEDA NACIONAL

Passaremos a analisar alguns aspectos da cláusula de indexação a moeda estrangeira, segundo a corrente que a admite. A maioria da doutrina entende que a conversão cambial deve ser feita ao câmbio oficial da data do dia do efetivo pagamento da prestação, e não pelo dia do vencimento da obrigação (neste sentido: Bittar, A indexação, p. 31; Elisa Maria, op. cit., p. 138-9, Orlando Gomes, Obrigações, p. 45; e RT 637:115). O STF também já entendeu assim, em julgado supracitado.

Porém, grande parte da jurisprudência defende a conversão pelo valor da data do vencimento, escorando-se na redação do revogado art. 947, § 2º, in fine, do Código Civil, que fala no “câmbio do dia do vencimento”.

Em face do Decreto-Lei 6.423/77, que instituiu a correção monetária, alguns entenderam que a conversão deve ser feita “ao câmbio do dia do contrato [ou seja, do vencimento], e, daí por diante, corrigida até o efetivo cumprimento da obrigação [ou seja, o efetivo pagamento]” (Rev. Jurispr. TJ-SP, 115:27. Apud Sérgio da Silva Couto, op. cit. Citado em Julgados TARGS 91:161). Contudo, é vedada a “dupla correção [simultânea] do valor (monetária mais cambial), mas sempre e só uma por primeiro, a cambial; depois, a indexada pelas ORTNs, depois pelas OTNs” (Julgados TARGS, 67:367).

As obrigações enumeradas no art. 2º (as exceções explícitas) reger-se-iam por regra idêntica: “as obrigações contraídas em moeda estrangeira, sejam de que natureza forem, conservam a correção cambial até a data da baixa do repasse junto ao Banco Central do Brasil, passando, a partir daí, a incidir a correção monetária interna” (Julgados TARGS, 78:196).

Alberto Xavier critica esta tese com objetividade. Diz que a cláusula de escala móvel se rege pela correção cambial (valor externo da moeda), logo é incompatível com a correção monetária (que se refere ao valor aquisitivo interno da moeda). Mesmo que as correções cambial e monetária não sejam aplicadas ao mesmo tempo, fica claro que a ratio legis de uma é incompatível com a da outra. De fato: se vai acabar sendo corrigido pela correção interna após o vencimento, de que serviu a estipulação de correção externa?

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Sobre o autor
Paulo Gustavo Sampaio Andrade

Pós-graduado em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Piauí (UFPI). Editor de conteúdo do Jus.com.br

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ANDRADE, Paulo Gustavo Sampaio. Validade da indexação de contratos a moeda estrangeira. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 2, n. -2341, 2 fev. 1997. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/645. Acesso em: 23 dez. 2024.

Mais informações

Este texto foi elaborado no curso de graduação na Universidade Federal do Piauí, como trabalho da disciplina Direito das Obrigações, sob orientação do professor Éfren Paulo P. de Sá Lima.

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