ADMISSIBILIDADE DA INDEXAÇÃO A MOEDA ESTRANGEIRA
Uma solução bastante prática para o problema da inflação seria atrelar o valor das obrigações dentro do país ao valor de uma moeda estrangeira forte, o que garantiria a preservação do valor aquisitivo da moeda de um modo razoável, mas sendo o pagamento efetivo realizado em moeda nacional, pelo câmbio oficial. Mas, com tantas restrições ao contrato em moeda estrangeira, ainda seria juridicamente permitido fazê-lo?
Esta é a grave questão jurídica que tentaremos resolver neste estudo:
Em face das restrições ao contrato em moeda estrangeira, permanece a validade das obrigações com cláusulas de correção em moeda estrangeira, mas com o efetivo pagamento realizado em moeda nacional?
VALIDADE LEGAL
O vigente Decreto-Lei 857/69, como vimos, traz no art. 1º uma regra geral (proibição de obrigações com pagamento em ouro, moeda estrangeira etc.); e no art. 2º uma série de exceções, relativas a obrigações internacionais.
Mas seria possível encontrar, no art. 1º, uma permissão ao uso da moeda estrangeira como simples índice de correção, mas não como modo de pagamento? Analisemo-lo melhor, para encontrar o seu real significado:
“São nulos de pleno direito os contratos, títulos e quaisquer documentos, bem como as obrigações que, exeqüíveis no Brasil, estipulem pagamento em ouro, em moeda estrangeira, ou, por alguma forma, restrinjam ou recusem, nos seus efeitos, o curso legal do cruzeiro.”
Dividem-se aqui as opiniões: uma, que entende ser válida a cláusula de correção em questão. Outra, que prega a sua nulidade. Analisemos cada uma delas:
a) Nulidade da cláusula de correção:
Uma significativa parte da jurisprudência mantém o espírito nominalista. Para estes, persiste vedada qualquer espécie de estipulação em moeda estrangeira, mesmo se o pagamento efetivo é feito em moeda nacional. Ou seja, tanto a utilização da moeda estrangeira como moeda de pagamento, como também seu uso como mera “moeda de conta” (índice). Esta é a opinião de Maria Elisa Mendes Gualani e Alberto Xavier.
Justificam que as cláusulas de indexação, por inviabilizar o uso da moeda nacional em toda a sua plenitude, se incluem entre as cláusulas que, “por alguma forma, restringem ou recusam, nos seus efeitos, o curso legal do cruzeiro”.
A cláusula de escala móvel seria ainda um atentado à ordem pública monetária, por violar um “princípio de interesse público que trata do curso forçado da moeda nacional e os limites em que se admitem cláusulas de reajuste automático nas obrigações pecuniárias” (Julgados TARGS, 78:256).
Neste sentido, jurisprudência recente da 4ª Turma do STJ: “É taxativamente vedada a estipulação, em contratos exeqüíveis no Brasil, de pagamento em moeda estrangeira, a tanto equivalendo calcular a dívida com indexação ao dólar norte-americano” (Repertório IOB, 8723:310. Acórdão unânime de 22.06.93. Rel. Min. Athos Carneiro. Apud Orlando Gomes, Obrigações, atualizado por Humberto Teodoro Jr., p. 47).
O art. 1º seria, assim, de alcance geral e irrestrito. Só seria válida a indexação a moeda estrangeira se o bem objeto da transação for proveniente de obrigação internacional, ou seja: encaixando-o nas exceções enumeradas no art. 2º. Assim, por exemplo, no contrato de leasing, seria necessário que o móvel objeto do contrato tenha sido importado para a locação, ou “tenha sido adquirido pela arrendadora com recursos oriundos do exterior, provenientes que sejam de empréstimo em moeda alienígena” (Julgados TARGS, 78:256. 1ª Câmara Cível, 14.05.91, Rel. Osvaldo Stefanello ).
b) Validade da cláusula de correção:
Para esta corrente interpretativa, a finalidade do artigo 1º é bem mais restrita. A intentio seria de vedar cláusulas em que, concretamente, a moeda estrangeira substituísse a nacional, como a cláusula ouro e a cláusula moeda estrangeira, em que os pagamentos são efetivamente feitos em ouro ou em moeda estrangeira — as obrigações de valuta, ou obrigações valutárias (Antunes Varela, Das obrigações em geral, v. 1., p. 832).
Diferente é o intuito das cláusulas de preservação do valor real da moeda. Nestas, o valor é apenas designado em moeda estrangeira, mas não há cláusula de efetivo pagamento nesta moeda. O débito deve ser pago em moeda nacional, pelo valor da cotação cambial. Não há substituição da moeda nacional, mas a fixação de sua relação de equivalência a uma moeda estrangeira.
A cláusula de indexação a moeda estrangeira constitui uma modalidade das cláusulas de escala móvel. Não há aqui repulsa ao curso legal da moeda. A moeda estrangeira atua apenas como qualquer outra cláusula de escala móvel, um mero mecanismo para preservar o valor de troca da moeda nacional, que é severamente prejudicado pela inflação. Pelo contrário, estimula o curso monetário, pois evita a estagnação da economia diante da incerteza da economia.
O art. 1º claramente só veda a estipulação de “pagamento ... em moeda estrangeira”. Da simples interpretação literal, deduz-se que é vedada apenas a estipulação do efetivo pagamento em moeda estrangeira, mas não se proíbe a simples menção de pagamento nessa moeda, desde que o pagamento efetivo se realize em moeda nacional.
A jurisprudência, após vacilações, começa a aceitar com mais firmeza a validade destas cláusulas de indexação.
Jurisprudência recente, da 3ª Turma do STJ, mostra uma tendência de aceitação da cláusula de escala móvel por este tribunal, que até pouco tempo não a admitia:
“Legítimo é o pacto celebrado em moeda estrangeira, desde que o pagamento se efetive pela conversão na moeda nacional ... O legislador visou a evitar não a celebração de pactos ou obrigações em moedas estrangeiras, mas, sim, aqueles que estipulassem o seu pagamento em outro valor que não o cruzeiro — moeda nacional — recusando seus efeitos ou restringindo seu curso legal”
REsp. 36.120-6-SP, acórdão unânime de 21.09.93, Rel. Min. Waldemar Zveiter. Citado em Julgados TARGS, 91:160.
O STF assim já se pronunciou sobre o tema:
“É válida a estipulação de que o pagamento seja efetuado em moeda corrente do país, correspondente a dólares americanos, ao câmbio oficial na data da liquidação”
(R.E. 94.331-5, STF, Rel. Min. Alfredo Buzaid. Jurisprudência Brasileira, 70:144. Apud Sérgio da Silva Couto, in: COAD/ADV, 7/94. Citado em Julgados TARGS, 91:161).
Um julgado de 1994 do Tribunal de Alçada do Rio Grande do Sul trata com precisão este tema:
“Copiosa jurisprudência entende ser nula a cláusula que prevê reajustamento do débito consoante as variações de moeda estrangeira e, mais precisamente, segundo o dólar americano ... Todas essas conclusões, pode-se dizer, até recentemente dominantes, têm sido substancialmente alteradas pelos tribunais pátrios que, em razão da adoção da moeda norte-americana, generalizadamente, em virtude da instabilidade econômica e pela insegurança das constantes alterações dos indexadores da economia, têm admitido como válidos e eficazes os contratos celebrados em dólar, quando previsto o pagamento em moeda nacional, segundo a cotação daquele na época do pagamento.”
(Julgados TARGS, 91:156-60, 20.04.94. Rel. Aldo Ayres Torres).
Sérgio da Silva Couto, em precioso trabalho à luz de atualizada análise dos tribunais, diz ter encontrado “uníssona manifestação” permitindo a indexação a moeda estrangeira, como meio de defesa do patrimônio própria dos países de economia combalida” (Sérgio da Silva Couto, op. cit. Citado em Julgados TARGS, 91:160-2). Cita, dentre outros, um julgado que justifica a cláusula da escala móvel à luz da desindexação promovida pelo governo para a implantação do Plano Real:
“Todos os índices adotados pelo governo se mostram ineficientes ao combate da inflação e foram sucessivamente desprezados e abolidos até os dias atuais, quando, pelo menos na teoria, a economia foi desindexada, sem que, não obstante, ficasse eliminada a inflação”
(TACívRJ, acórdão 653/9, 4ª CC, Rel. Juiz Marden Gomes. Apud Sérgio da Silva Couto, op. cit. Citado em Julgados TARGS, 91:161).
Contudo, é cedo para dizer que a matéria pacificou jurisprudencialmente, como assinala Humberto Teodoro Júnior, pois vem encontrando na jurisprudência marés de prós e contras, conforme as leis e as necessidades dos fatos (Orlando Gomes, Obrigações, atualizado por Humberto Teodoro Jr., p. 47).
INDEXAÇÃO E PRINCÍPIOS DO DIREITO
Arnoldo Wald a cláusula de escala móvel em termos quase poéticos, parafraseando um adágio romano e uma célebre frase de Keynes. Para ele, a indexação serve “para garantir a cada um o que é seu hoje e o que será seu amanhã, para dar ao índice o papel que a moeda já não mais pode exercer de ponte entre o presente e o futuro” (Arnoldo Wald, op. cit., p. 169). Ou seja, faz a justiça do caso concreto (suum cuique tribuendi), suprindo o caráter referencial perdido pela moeda.
Para Caio Mário, a indexação é estratégia “tecnicamente válida e moralmente recomendável”. É vantajoso para ambas as partes, constituindo um meio de defesa antecipada. Ampara o credor, pois impede que o devedor se aproveite da perda do valor da moeda devido à inflação, o que constituiria um locupletamento ilícito. E ampara o devedor, por ser mais seguro que a pura e simples especulação do credor (Apud Carlos Alberto Bittar, A indexação, p. 23-4).
Tal idéia condiz com o princípio da autonomia da vontade, que prevê a auto-regulação dos interesses privados dentro dos limites das normas de ordem pública. Logo, “se a parte adere livremente à cláusula contratual, não pode ela posteriormente invocar a sua ilegalidade para se desonerar, sob a pena de se beneficiar da própria torpeza e de enriquecer sem causa” (Sérgio da Silva Couto, in: COAD/ADV, 7/94, citado em Julgados TARGS 91:161).
Baseado neste critério, o TJ-DF já decidiu:
“Se a estipulação em moeda estrangeira serviu apenas como parâmetro, tem-se que o contrato é válido, máxime se resultado do consentimento recíproco e livre das partes”
(TJ-DF, acórdão unânime da 2ª Turma, al. 3.766, Rel. Des. João Mariosa. Apud Sérgio da Silva Couto, op. cit., citado em Julgados TARGS 91:161).
Pelo contrário, se o credor pudesse recusar a moeda nacional no momento do pagamento, ou se o devedor pudesse recuar, pedindo a anulação da obrigação, aí sim se configuraria séria ameaça ao curso da moeda.. Seria, além de um fator de grave instabilidade ao negócio jurídico, um atentado contra o princípio da boa-fé.
CONVENIÊNCIA ECONÔMICA
Partamos do pressuposto de que a cláusula de indexação é juridicamente lícita. Mas seria economicamente conveniente à moeda nacional?
Por um lado, a indexação é um empecilho ao reequilíbrio dos preços, gerando um círculo vicioso e dificultando o combate à inflação, o que pode levar a que nos acostumemos com a inflação, ao invés de combatê-la de frente. Por outro aspecto, coíbe a inflação, pois elimina o proveito que se poderia tirar dela, refreando a especulação. Sem esta cláusula, o credor recorreria a altas taxas de juros e encarecimento das prestações como garantia contra a inflação.
Para Orlando Gomes, “a realidade pode mais do que a lógica jurídica” (Orlando Gomes, Transformações gerais do Direito das Obrigações, p. 152). Admitir a nulidade da cláusula de indexação seria refrear, senão paralisar, os negócios.
Seria a moeda estrangeira um índice adequado? A questão é pertinente. A referência do dólar é o valor cambial externo da moeda nacional, e não o seu valor aquisitivo interno. Por isso, sua variação não acompanha necessariamente a perda do poder de compra da moeda brasileira, possibilitando distorções. Na prática, porém, objeta-se que, devido às constantes alterações, substituições e extinções dos outros índices existentes, talvez o dólar seja o índice mais confiável.
DIA DA CONVERSÃO EM MOEDA NACIONAL
Passaremos a analisar alguns aspectos da cláusula de indexação a moeda estrangeira, segundo a corrente que a admite. A maioria da doutrina entende que a conversão cambial deve ser feita ao câmbio oficial da data do dia do efetivo pagamento da prestação, e não pelo dia do vencimento da obrigação (neste sentido: Bittar, A indexação, p. 31; Elisa Maria, op. cit., p. 138-9, Orlando Gomes, Obrigações, p. 45; e RT 637:115). O STF também já entendeu assim, em julgado supracitado.
Porém, grande parte da jurisprudência defende a conversão pelo valor da data do vencimento, escorando-se na redação do revogado art. 947, § 2º, in fine, do Código Civil, que fala no “câmbio do dia do vencimento”.
Em face do Decreto-Lei 6.423/77, que instituiu a correção monetária, alguns entenderam que a conversão deve ser feita “ao câmbio do dia do contrato [ou seja, do vencimento], e, daí por diante, corrigida até o efetivo cumprimento da obrigação [ou seja, o efetivo pagamento]” (Rev. Jurispr. TJ-SP, 115:27. Apud Sérgio da Silva Couto, op. cit. Citado em Julgados TARGS 91:161). Contudo, é vedada a “dupla correção [simultânea] do valor (monetária mais cambial), mas sempre e só uma por primeiro, a cambial; depois, a indexada pelas ORTNs, depois pelas OTNs” (Julgados TARGS, 67:367).
As obrigações enumeradas no art. 2º (as exceções explícitas) reger-se-iam por regra idêntica: “as obrigações contraídas em moeda estrangeira, sejam de que natureza forem, conservam a correção cambial até a data da baixa do repasse junto ao Banco Central do Brasil, passando, a partir daí, a incidir a correção monetária interna” (Julgados TARGS, 78:196).
Alberto Xavier critica esta tese com objetividade. Diz que a cláusula de escala móvel se rege pela correção cambial (valor externo da moeda), logo é incompatível com a correção monetária (que se refere ao valor aquisitivo interno da moeda). Mesmo que as correções cambial e monetária não sejam aplicadas ao mesmo tempo, fica claro que a ratio legis de uma é incompatível com a da outra. De fato: se vai acabar sendo corrigido pela correção interna após o vencimento, de que serviu a estipulação de correção externa?