Têmis dos Pampas: a atuação do Judiciário gaúcho no combate à discriminação de cunho regional

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O presente trabalho tem como tema a (in)aplicabilidade da Lei n° 7.716/89 contra a discriminação, no Estado do Rio Grande do Sul, a partir da tutela normativa e análise das decisões do Tribunal de Justiça: linha tênue entre o bairrismo e o preconceito.

Este artigo, oriundo do projeto de pesquisa para a monografia de graduação, surgiu a partir do interesse em analisar as decisões do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul que envolvem a Lei n° 7.716/89, nas searas cíveis e criminais, a partir da compreensão das consequências da formação ideológica e cultural do povo gaúcho em tais julgamentos ou se não há qualquer interferência deste fenômeno social e discursivo nos mesmos. A referida lei foi sancionada em 05 de janeiro de 1989, data na qual entrou em vigor, e teve por escopo definir os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor, vedando a prática dos mesmos e prevendo a punição cabível a quem praticar atos de discriminação de qualquer espécie e nos mais variados ambientes, conforme suas disposições.

O dispositivo legal em análise trouxe inovação em seu artigo 1º, a partir da redação determinada pela Lei nº 9.459/97, ao prever que “serão punidos os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”. Há disposição, inclusive, contra a prática de tais delitos dentro do ambiente de trabalho, nas relações de emprego no setor público – Administração Direta e Indireta (arts. 3º e 16), bem como nas empresas privadas (art. 4º); em estabelecimentos comerciais (art. 5º); em instituições de ensino públicas ou privadas (art. 6º); em locais de hospedagem (art. 7º), de lazer ou desporto (arts. 8º, 9º e 10); nas entradas, elevadores ou escadas de edifícios públicos ou residenciais (art. 11); nos meios de transporte públicos (art. 12), na prestação de serviço às Forças Armadas (art. 13) e no casamento ou convivência familiar (art. 14).

O Estado do Rio Grande do Sul tem sua cultura arraigada no tradicionalismo da agropecuária, fundamentalmente latifundiária, com grande influência dos povos colonizadores, dos “vizinhos” latino-americanos e dos imigrantes que vieram para a região. Uma característica forte da identidade gaúcha é o chamado bairrismo, cuja definição poderia ser os sentimentos de identificação, orgulho e pertencimento à localidade de origem, seja ela a Nação, o Estado ou Cidade-natal.

O interesse na pesquisa do referido tema, em especial a aplicabilidade (ampla ou restritiva) da Lei n° 7.716/89 nos julgamentos do TJ/RS, surgiu a partir da necessidade de compreender e estabelecer, nas relações sociais do cotidiano, entre os indivíduos que residem no Estado, naturais ou não, o que define os sentimentos que caracterizam o bairrismo gaúcho, bem como o limite dos mesmos, evitando a prática das mais variadas formas de preconceito dispostas na supramencionada lei.

A afirmação de que o Brasil é extremamente plural e miscigenado não é novidade, tendo em vista que sua população tem múltiplas ascendências étnicas, raciais e culturais, em virtude do processo histórico de colonização, exploração e povoamento do território nacional. Em diversos aspectos, também é considerado um país amplamente democrático, por exemplo, com instituições públicas e privadas estáveis, um sistema educacional de garantias e direitos em operação e liberdade de expressão e imprensa em alguma medida.

Ainda que se perceba a existência desta multiplicidade cultural e democrática, não há como não enxergar que o Brasil é um país flagrantemente dividido. Uma nação com imensa fronteira territorial, com muitas marcas, conflitos e separações entre as diversas realidades sociais, econômicas, políticas e, especialmente, para o interesse do presente trabalho, regionais. Desta maneira, a partir da constatação da divisão regional do país, esta pesquisa busca compreender e problematizar a segregação de cunho regional e suas repercussões no que se refere ao preconceito sofrido por imigrantes, oriundos dos mais diversos estados e países, dentro Rio Grande do Sul, a partir da compreensão da formação ideológico-cultural do povo gaúcho.

O entendimento trazido a partir das pesquisas históricas, normativas, doutrinárias, jurisprudenciais e do estudo aprofundado sobre o tema fornecerá o substrato necessário para que se compreenda, com perspectiva crítica, o papel do Direito no combate à discriminação regional e seus limites na condição de instrumento da vida em sociedade, nos âmbitos nacional, regional e local, a partir do interesse na atuação do Judiciário gaúcho.

Em contrapartida ao que subscreve o senso comum social, a sociedade brasileira é divida – porque não dizer, intensamente segregada – contrariando o pensamento tradicional, disseminado por Gilberto Freyre[1], sobre a formação do país e de seu povo, pelo conceito da “democracia racial”. É um mito pensar que, no Brasil, os cidadãos vivem em uma harmonia social e cultural, tratando uns aos outros sem discriminação, haja vista que a história do país é marcada pelas desigualdades.

Ao escrever a respeito da força do mito da “democracia racial” no Brasil, Acunha utiliza-se dos ensinamentos de Racussen, em um trecho de um trabalho que tratava da discriminação racial praticada em virtude da cor da pele das vítimas, exterioriza uma visão corrente que se aplica à noção que se tem, no país, a respeito da inexistência de discriminação na sociedade brasileira, que seria conexa a uma incapacidade que o brasileiro teria de segregar quem quer que seja em virtude de sua personalidade social hospitaleira e pacífica. Assim descreve sua crença:

De acordo com a ideologia da nação brasileira, os brasileiros formam uma singular raça de pessoas de diferentes cores formada por uma miscelânea de culturas e pessoas da Europa, da África e indígenas. De acordo com esta concepção, os membros desta nação que lhes confere vínculos especiais são incapazes de discriminarem-se uns aos outros. As elites brasileiras há muito buscam elevar o status internacional do Brasil sob o argumento de que o caminho brasileiro para o desenvolvimento, descrito como menos drástico e competitivo que o capitalismo norte-americano, oferece um modelo alternativo e harmonioso para desenvolver-se. Portanto, as elites apresentam a discriminação racial como algo externo, estrangeiro, particularmente as práticas segregacionistas norte-americanas.[2] (itálico no original) (tradução livre)

Essa compreensão da realidade social brasileira, contudo, é míope e fantasiosa, uma vez que a história do país é marcada pelas desigualdades de cor, de gênero, de regiões, de condições econômicas, enfim, desigualdades e divisões que, ao longo do passado – e, particularmente, no século XX –, construíram uma teia complexa de relações sociais que têm, na hierarquização dos cidadãos, uma de suas marcas mais visíveis. Graduação esta que, prejudicando a igualdade, opõe-se justamente à harmonia tão afirmada como base da auto-imagem que o brasileiro tem a respeito de si.

A desconstrução desse mito da democracia racial é relevante porque ele traz em si, de forma oculta, o incentivo à perpetuação das práticas de discriminação. Um preconceito, qualquer que seja, se “invisível” ou “oculto” e não tematizado, não pode ser combatido. Reconhecer as divisões e trazer à luz a existência e a recorrência da discriminação, ao menos em uma de suas múltiplas variantes (a regional), é o escopo do presente projeto.

A nação brasileira é dividida. Por que e de que maneira isso se dá? E o que se extrai disso? Analisa-se então: os cidadãos são separados por fronteiras visíveis (e outras nem tanto assim) no cotidiano. São brancos, negros, pardos, homens, mulheres, nordestinos, sulistas, candangos, paulistas, católicos, protestantes, ateus, espíritas, heterossexuais, homossexuais e assim por diante. São muitos, com muitos rostos, características e expressões, catalogados a partir de diversas definições. E estabelecem relações com base nessas e em muitas outras clivagens que orientam as interações cotidianas.

Não há brasileiro (aliás, a existência das diversas nacionalidades já demonstra a realidade inegável das fronteiras entre os seres humanos) que não se enquadre nessas e em muitas outras categorias. Cada pessoa é linguisticamente referida a partir de um amontoado de definições e, ao mesmo tempo, cumpre uma série de distintos papéis sociais. É inegável que homens e mulheres, brancos e negros, para fixar apenas algumas cisões, inserem-se de forma completamente diferente na sociedade. Assim também se dá quando se pensa, para começar a tratar especificamente do tema que será neste projeto explorado, nos habitantes das diversas regiões do país, aos quais são atribuídos certos comportamentos e hábitos, imagens e retratos, certas falas, espaços e modos de vida.

Essas diferenças e, de forma muito mais relevante, seus significados sociais, são fronteiras naturalizadas, marcações e características que, por diversas vezes, são postas como inerentes a cada indivíduo, as quais conduzem a um olhar diferenciador. E, o que é pior, fazem com que seja encarada essa diferenciação como algo estático, como o pano de fundo não-modificável, a partir do qual se dá a vida em sociedade. É a “fronteirização”, a separação dos indivíduos em identidades cada vez mais fortes, arraigadas e separadas, algo contra o que, segundo entende este trabalho, é fundamental que se pense, a fim de evitar as mais variadas formas de discriminação e preconceito oriundas daí.

Este trabalhp pretende compreender essa discussão e inserir o Direito, suas potencialidades e seus limites, nesse “jogo” de realidades construídas e/ou falseadas, de fronteiras artificiais que separam os indivíduos, como se as diferenças e a interpretação que a elas se dá, sempre tivessem existido e se impusessem como dados que podem ser “descobertos” por análise histórica, normativa e jurisprudencial. Como se as fronteiras existentes e os locais de inserção social que elas assinalam fossem intransponíveis e, uma vez constatada determinada “realidade”, não coubesse nada além da aceitação passiva, o que se pretende “desmascarar” ao longe desta pesquisa analítica.

É certo que há diferenças que separam os seres humanos, porém a equalização excessiva que ignora os traços distintivos presentes em cada contexto social e cultural é tão (ou mais) nociva que a diferenciação que segrega sem limites. Não se busca, aqui, equiparar a todos os indivíduos, independentemente de considerações quanto à cultura, aos processos históricos, à educação, à economia, às artes e à política. Não é isso que se almeja. O desafio que se inicia, ao invés disso, quer, como seu primeiro passo, explorar o nascimento de um espaço e de uma identidade a ele associada, que dão base a uma marcante diferenciação discriminatória com nuances cada vez mais expressivas no Brasil do século XXI. Quer-se, enfim, mostrar como, a partir de discursos produzidos por distintos atores regionais e nacionais, nasceram um Estado e seus habitantes: o Rio Grande do Sul e os gaúchos.

Mas esse é apenas o passo inicial. Para além de tematizar a formação e o emergir do Estado, a construção da identidade de seu povo e a formação de uma ideologia do gaúcho, quer-se discutir o aparecimento de um determinado tipo de preconceito (o regional), sua expressão exterior e a sua inegável presença na atualidade. Ou seja, pretende-se debater o lado pernicioso que a diferenciação artificial produzida a partir da criação da dicotomia Norte/Sul, bem como a existência de discriminação aos imigrantes, nacionais e estrangeiros, as quais acarretam no preconceito que, uma vez nutrido e velado, dá origem aos odiosos e recorrentes atos de irracionalidade discriminatória a que se tem notícia no cotidiano.

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Nesse sentido, é importante mostrar como o preconceito e a discriminação são gerados a partir do supramencionado olhar diferenciador. O primeiro passo, nesse processo, é o de enxergar o outro (receptor) como diferente, nominá-lo, categorizá-lo a partir dos instrumentos daquele que fala (emissor), e imputar-lhe, por generalização, homogeneização, “caricaturização”, “estereotipização”, a partir de determinados traços e condições que, por via discursiva, passam a ser definidores de um indivíduo, de uma identidade ou de um lugar.

O Estado do Rio Grande do Sul (doravante RS) tem sua cultura arraigada no tradicionalismo da agropecuária, fundamentalmente latifundiária, com grande influência dos povos colonizadores, dos “vizinhos” latino-americanos e dos imigrantes que vieram para a região. Uma característica forte da ideologia e cultura gaúcha é o chamado bairrismo, cuja definição poderia ser os sentimentos de identificação, orgulho e pertencimento à localidade de origem, seja ela a Nação, o Estado ou Cidade-natal.

Daí destaca-se, por exemplo, o contexto histórico de início da formação do tradicionalismo gaúcho, conforme se pode depreender na rica obra de Tau Golin:

Desde o século XIX, principalmente a partir do Paternon Literário, traçam-se as idéias e expressões culturais que compõem o universo tradicionalista. Até a década de trinta, do século XX, uma base econômica o justifica, pois o capital rio-grandense era eminentemente pastoril. Nos longos anos de seu reinado, fortaleceu-se uma cultura “popular” – produzida hegemonicamente pela elite - voltada para o seu espaço geográfico e social. É evidente que a sua ideologia constituía-se fundamentalmente latifundiária. As idéias dos estancieiros eram as idéias dominantes. A concepção de mundo da oligarquia rural imperava. A sociedade – a nível da arte, da história, etc. – passava por sua ótica. Os intelectuais e artistas criavam suas visões sociais – cada qual em seu campo – levando em conta o palco rural, ou seja, o universo latifundiário.[3]

Quanto à conceituação do que é a ideologia do tradicionalismo, enquanto fenômeno cultural rio-grandense, pode-se dizer que, no RS, a fração da classe dominante, representada pelos latifundiários e sua correspondente parcela de classe dominada, constituída pelos camponeses e trabalhadores rurais, informa uma cultura marcada pela ontologia ideológica tradicionalista. O tradicionalismo seria um elemento da superestrutura, ou seja, o conjunto das instituições, das ideias, da cultura de uma sociedade – diferentemente da infraestrutura, que é a base material, econômica da sociedade – sendo aquela, portanto, o emaranhado de construções que se sobrepõem a outras.

No entanto, o tradicionalismo gaúcho está relacionado profundamente com os outros “organismos” de sustentação da classe dominante, sendo que, no decorrer da história, mantiveram-se sua tradição e seus expoentes. O que impressiona, segundo o supracitado autor, fazendo análise deste fenômeno social e discursivo na contemporaneidade:

[...] agora nos centros urbanos mobilizou-se uma massa considerável de “intelectuais e artistas” que a ampliam e a diversificam. Uma arte denominada pela ideologia do conteúdo latifundiário nasce com uma reprodução duplamente dominante: a dominação do camponês no ‘palco rural’ apeia na cidade com uma explicação lógica e coerente, de um mundo hipoteticamente ‘maravilhoso’; e no centro urbano não possibilita o desenvolvimento de uma arte que seja o ‘reflexo crítico do real’, remetendo a massa para a campanha, donde a verdade histórica já veio falseada.[4]

Ainda sobre o interesse em estudar sobre o tema proposto, este surgiu a partir da experiência vivida no cenário regional e local, mas, sobretudo, na necessidade de compreensão da cultura e das tradições do povo gaúcho, em especial no que diz respeito às festividades, comemorações, vestimentas e tradições. Neste sentido, destaca-se, dentre outros fatos:

Nos meses de setembro, o Acampamento Farroupilha ocupa a Estância da Harmonia, um parque próximo ao centro de Porto Alegre. Nele se encontram equipamentos sociais vinculados à tradição gaúcha, churrasqueiras, galpão crioulo, área para rodeios. A montagem do Acampamento se inicia na primeira semana, sendo o período oficial de duração 7 a 20 de setembro – data que registra a entrada dos farrapos em Porto Alegre. No dia 20 ocorre um desfile que costuma ser assistido por milhares de pessoas. O primeiro Acampamento foi em 1987, reunindo diversos Centro de Tradições Gaúchas (CTG’s) e piquetes. Além destes hoje fazem parte da atividade Departamentos de Tradição Gaúcha (DTG’s), famílias, associações profissionais (PORTO ALEGRE, 2008). Para aqueles de nós que vivemos em Porto Alegre, o Acampamento é um evento rotineiro. No entanto, isto não impede que convivamos com ele com alguns estranhamentos, o que fica evidente nos momentos em que levamos amigos de outros estados para visitá-lo e realizamos difíceis exercícios de elaboração para explicar um fenômeno tão peculiar. Ainda que tenhamos claro, no nível da razão, que o que presenciamos é um processo de idealização de certos traços da cultura gaúcha, quando por ali circulamos com a cuia de mate nas tardes de domingo vivenciamos uma sensação muito boa de pertencimento e identificação.[5]

Será examinado, no curso do presente trabalho, como esse olhar diferenciador supramencionado operou e opera relação entre os naturais do Rio Grande do Sul e os imigrantes, nacionais ou estrangeiros. Para isso, em uma primeira escala, iniciar-se-á o transcurso pela discussão global e abrangente do que pode ser caracterizado como identidade, ideologia e cultura de um povo, a partir de definições de estudiosos sobre os temas; após, pela identificação dos conceitos atribuídos à região Sul, em especial, o Estado do RS, examinando os discursos internos e externos atribuídos a eles, que contribuíram para a invenção de um espaço segregado no território nacional, dotado de história, identidade, cultura, posição econômica e social diferenciada; em seguida, pela existência (ou não) do preconceito e discriminação em face dos “não-naturais” do território regional e, por fim, como o Judiciário gaúcho tem atuado em relação a isso, com base na análise das decisões do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (doravante TJ/RS).

Para a conceituação de ideologia, a partir de uma concepção marxista do termo, será adotada a teoria de Marilena Chaui, a qual a descreve, enquanto definição de “falsa consciência”, não apenas um conjunto sistemático e encadeado de idéias, mas é sim um ideário histórico, social e político que oculta a realidade, sendo esse ocultamento uma forma de assegurar e manter a exploração econômica, a desigualdade social, a dominação política e, porque não dizer, conforme interesse crucial do trabalho, meio de discriminação e preconceito:

Dissemos que a ideologia é resultado da luta de classes e que tem por função esconder a existência dessa luta. Podemos acrescentar que o poder ou a eficácia da ideologia aumenta quanto maior for sua capacidade para ocultar a origem da divisão social em classes e a luta de classes. [...] resulta da prática social, nasce da atividade social dos homens no momento em que estes representam para si mesmos essa atividade, [...]. O que ocorre, porém, é o seguinte processo: as diferentes classes sociais representam para si mesmas o seu modo de existência tal como é vivido diretamente por elas, de sorte que as representações ou idéias (todas elas invertidas) diferem segundo as classes e segundo as experiências que cada uma delas tem de sua existência nas relações de produção. No entanto, as idéias dominantes em uma sociedade numa época determinada não são todas as idéias existentes nessa sociedade, mas serão apenas as idéias da classe dominante dessa sociedade nessa época. Ou seja, a maneira pela qual a classe dominante representa a si mesma (sua idéia a respeito de si mesma), representa sua relação com a Natureza, com os demais homens, com a sobrenatureza (deuses), com o Estado, etc., tornar-se-á a maneira pela qual todos os membros dessa sociedade irão pensar. A ideologia é o processo pelo qual as idéias da classe dominante se tornam idéias de todas as classes sociais, se tornam idéias dominantes.[6] (grifo nosso) (itálico no original)

Ainda sobre a conceituação de ideologia, pode-se entendê-la como uma concepção ou uma visão de mundo relacionada a uma classe dominante em relação à parcela dominada, que traduz a realidade objetiva e formula conceitos sobre aquela, a partir de seus interesses. Sempre se leva em consideração um contexto histórico determinado e a escala de valores que a fração dominante quer apresentar à dominada como expressão da realidade, tendo como elemento de ligação entre a ordem dirigente (com a sua ideologia) e o restante das classes subalternas o aspecto intelectual.

No cenário do RS da República Velha, começou a emergir o modo capitalista de produção, com a propriedade da terra e do gado, meios de produção fundamentais, apresentando-se extremamente concentrada. O latifúndio pecuarista dominada o panorama sulino e a agropecuária apresentava-se como o setor da atividade dominante do Estado. Houve avanço das forças produtivas, as quais correspondiam a relações de produção pouco definidas, levando-se em consideração, por exemplo, as figuras do estancieiro e do peão.

Desta maneira, para análise dos planos infra e supra-estrutural segundo a autora Sandra Jahaty Pesavento, em rica coletânea de textos gaúchos sobre a cultura e ideologia rio-grandenses, por esta entende-se:

É o conjunto de idéias acerca do mundo e da sociedade, que correspondem a interesses, aspirações ou ideais de uma classe num contexto social dado, que guia e justifica o comportamento dos homens de acordo com estes interesses, aspirações ou ideias.[7]

Desta maneira, quando se examina a literatura relativa à noção de ideologia e à explicação do fenômeno ideológico, é difícil escapar ao sentimento de que ela seja dominada por uma grande confusão dentre tantos teóricos que se dedicaram à sua definição. As conceituações do termo são variáveis de um autor para outro, e as explicações deste fenômeno utilizam-se de princípios. Tem-se a impressão de que a mesma palavra serve para a descrição de uma variedade de fenômenos e não de um único.

Em passagem de muita racionalidade, o sociólogo Boudon caracteriza as ideologias, enquanto variantes dos sistemas de crenças positivistas e normativas, da seguinte forma:

Em resumo, as ideologias se distinguem de outros tipos de sistemas de crenças pela posição que ocupam em relação a oito critérios. Caracterizam-se por: o caráter explícito de sua formação, sua vontade de reunir em torno de uma crença positiva e normativa particular, sua vontade de distinção em relação a sistemas de crenças passados ou contemporâneos, seu fechamento à inovação, o caráter intolerante de suas prescrições, o caráter passional de sua promulgação, sua exigência de adesão e, finalmente, sua associação com instituições encarregadas de reforçar e de realizar as crenças em questão.[8]

Sendo assim, é interessante perceber que os fundamentalismos regionalistas e nacionalistas, ou melhor, a exacerbada valorização de identidades regionais e nacionais bastante arraigadas, constituem um fenômeno muito presente no período contemporâneo, e são propícios ao acirramento de identidades conflituosas e à perpetuação de práticas de exclusão do “outro” – aquele com o qual não há identificação.

Assim, em linha de consonância com esse aumento dos regionalismos, buscar-se-á demonstrar como a criação artificial (e, portanto, ideológica, não natural) da região e de seu habitante, por circunstâncias históricas bem definidas, deu origem ao conceito de tradicionalismo ou bairrismo gaúcho, os quais podem ser interpretados, em certa medida, como os sentimentos de orgulho, identificação e pertencimento a determinada região ou Estado, contudo, também este fenômeno social e discursivo pode acarretar em discriminação a quem não compartilhe da mesma naturalidade, e que esse preconceito gera atitudes discriminatórias recorrentes na atualidade, por exemplo, nos discursos de ódio proferidos nas redes sociais.

Busca-se identificar, ainda que brevemente, quais são essas atitudes, suas formas de manifestação e de repetição, verbalizadas ou veladas, sendo a preocupação central deste trabalho verificar como o Judiciário gaúcho, mais especificamente, o TJ/RS, tem atendido, se existem, demandas individuais e/ou sociais sobre esta temática, em casos envolvendo a aplicação da Lei n° 7.716/89, a partir de análises jurisprudenciais da referida Corte de Justiça.

Para isso, voltar-se-á o olhar à aplicação dos instrumentos jurídico-normativos de combate ao preconceito de cunho regional, que vem sendo praticada pelo TJ/RS, em casos que envolvam atos discriminatórios que tenham, na componente territorial gaúcha, um traço decisivo. Isso se dará por meio de pesquisas realizadas no sítio do Tribunal supra (com posterior confecção de quadros comparativos), utilizando-se de palavras-chave dispostas na Lei n° 7.716/89 e termos que tenham relevância com a temática trabalhada; com consequente análise das manifestações judiciais do colegiado, bem como da apreciação dos casos concretos, se levam (ou não) em consideração a formação cultural e ideológica do povo rio-grandense nas decisões dos últimos cinco anos.

Oportuno finalizar com a definição de identidade rio-grandense do digníssimo historiador e escritor gaúcho Tau Golin, em obra recente, o qual diz:

A primeira característica dominante de uma identidade “tradicional”-folclórica em uma sociedade moderna é a diluição da noção de tempo histórico. Cria-se o “tempo vago”, ao qual se remete a origem de seus elementos. Ao se instituir como movimento cultural organizado, essa gauchidade se apresenta como se estivesse credenciada a reproduzir valores pretensamente imutáveis, forjados pelos antepassados. Melhor dizendo, há uma reelaboração do passado como lugar de uma sociedade tradicional. Entretanto, historicamente, a sociedade de tipo tradicional nunca existiu no Rio Grande do Sul. Desde a sua origem ocupacional, organizada pelo Estado Colonial Absolutista, no século XVIII, na região sulina, foi implantada uma sociedade de classes de tipo escravista alicerçada na propriedade privada. Desse modo, jamais se configurou uma sociedade historicamente tradicional. Esta é uma suposição criativa intelectual de legitimação da sociedade oligárquica, em um primeiro momento, e do capitalismo gauchesco de corte latifundiário, em sua forma mais acabada. A sociedade rio-grandense (e sua representação cultural) é conservadora e não tradicional.[9]

Dessa forma, mostra-se necessário estudar o preconceito e a discriminação não apenas quanto à lesão a direitos subjetivos, ou seja, em termos de tolerância social, mas também em seu aspecto de prejuízo ao respeito mútuo entre os membros da comunidade, de depreciação da solidariedade que fere a estima social destinada a determinadas formas de vida, a partir do desprezo ao diferente, da desvalorização de certas opções éticas ou características de membros da comunidade, da leitura de que algumas vidas, culturas e lugares seriam menos relevantes, importantes ou menos dignos de valor do que outros.

Esse é um passo importante que a continuação deste artigo pretende dar. Com base na compreensão do processo histórico e ideológico de formação da identidade do povo rio-grandense, pretende-se dar destaque à necessidade de valorização da diversidade cultural existente no território nacional – a nível de Brasil, de região Sul e de Estado do RS – e a exigência de se respeitá-la, social e juridicamente.

Almeja-se também perceber a constituição dessas características multiformes que foram arbitrariamente sintetizadas na imagem diferenciada do gaúcho, em uma relação de “superioridade” aos demais brasileiros, enquanto “falsa consciência”, o que não pode ser alcançado apenas pela via jurídica, demandando a produção de um discurso social que questione essa relação “hierárquica”, que permita pôr contra a parede a naturalização de uma história criada.

Dessa forma, convida-se os leitores à análise da atuação do Judiciário gaúcho melhor explorada na monografia[10], em especial o TJ/RS, levando-se em consideração, evidentemente, que o Direito, enquanto ciência social e humana, tem um importante e decisivo papel nas questões que foram (e serão) indagas, já que lhe cumpre garantir o estágio básico da tolerância, respeito e estima social.

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Sobre a autora
Larissa Oliveira Sudário Diniz

Bacharela em Ciências Sociais e Jurídicas, graduada em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria (2012-2016), aprovada no XIX Exame da OAB. Especialista em Direito Militar e pós-graduanda em Direito Administrativo pela Faculdade Venda Nova do Imigrante - FAVENI. Iniciou sua formação superior, em 2011, na Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG), transferindo-se para a UFSM no ano seguinte. Foi pesquisadora bolsista do Centro de Ciências Sociais e Humanas da UFSM, no projeto de pesquisa "Acompanhamento do egresso cotista: uma avaliação no âmbito do curso de Direito". Foi estagiária bolsista no Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul, na 3ª Promotoria de Justiça Cível e na 8ª Promotoria de Justiça Criminal e no Núcleo de Assistência Judiciária Gratuita da UFSM.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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