Educação ambiental com vistas à construção de uma nova racionalidade

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Diante da grave crise ambiental resultante de um modelo econômico utilitarista e predatório, é necessário buscar alternativas para equilibrar o processo de produção e consumo, bem como a demanda crescente por recursos naturais, em especial a água.

RESUMO: Diante da grave crise ambiental resultante de um modelo econômico utilitarista e predatório, é preciso buscar alternativas para equilibrar o processo de produção e consumo, bem como  a demanda crescente por recursos naturais, em especial a água. O presente artigo traz como objeto de discussão a análise da importância da Educação Ambiental, numa abordagem interdisciplinar, como possibilidade de formação de uma outra racionalidade, na forma de conceber e se relacionar com o planeta.  Inicialmente, o debate será pautado na implementação da Educação Ambiental como política pública e sua prática nas escolas e, a seguir, será apresentada a importância da relação entre Educação Ambiental e interdisciplinaridade na formação de atores sociais, comprometidos com a justiça social e ambiental no planeta.

PALAVRAS-CHAVE: Crise planetária; Recursos hídricos; Educação ambiental; Interdisciplinaridade.


Introdução

Não se pode negar que a civilização alcançou, nas últimas décadas, altos índices de desenvolvimento científico-tecnológico, permitindo ao homem alçar voos impensados tempos atrás. Se, por um lado, tal evolução trouxe mais conforto e qualidade de vida, principalmente para uma parcela da população, por outro, protagonizou uma crise ambiental sem precedentes, capaz de ameaçar a permanência e a vida dos seres vivos na Terra.

Resultante de séculos de exploração indiscriminada de recursos naturais, pautada na economia capitalista e na visão utilitarista e irracional, a crise ambiental vem mostrando sinais visíveis de que o equilíbrio nos sistemas do planeta está comprometido com as mudanças climáticas decorrentes do aumento na temperatura média do planeta. Segundo Artaxo (2015), físico especialista em clima, “esse aumento já está causando alterações no padrão de chuvas, no padrão de ventos na atmosfera, no padrão de seca e eventos climáticos extremos.” (ARTAXO, 2015, p. 25).

Logo, a compreensão dos problemas ambientais presentes no cotidiano passa pelo entendimento de que “nossas ações afetam locais distantes de onde acontecem, muitos casos implicando todo o planeta ou até mesmo a biosfera” (SACHS,2002, p. 50).  Portanto, os problemas locais são também problemas globais que precisam de resoluções compartilhadas entre as nações, povos e culturas, assim como mudança de hábitos .

Considerada por Leff (2007) como uma crise da racionalidade da era moderna, a crise ambiental exige releituras do contexto e ressignificações da concepção de natureza e de ser humano, de produção e consumo, assim como do papel dos atores sociais nessas relações. É preciso resgatar urgentemente o “humano do humano” na busca de soluções para equilibrar o desenvolvimento e a demanda crescente de recursos naturais, em especial a água, cada vez mais escassa e mais degradada.

Nessa direção, Velázquez (2011) aponta que

Y todos los sintomas de degradación nos revelan que se requiere urgentemente deldesarollo de um estilo  más evolucionado, utilizando acertadamente las tecnologias de punta de manera segura, bajando lospadrones  de consumo y com ellolos índices de contaminación(VELÁZQUEZ,2011, p.3).

Uma vez que os problemas ambientais ultrapassam fronteiras territoriais, refletindo-se globalmente, há de se formar sujeitos que pensem em soluções contemplando os vários aspectos que envolvem o desequilíbrio: sociais, econômicos, políticos, culturais e planetários. Desta forma, a formaçãoda “cidadania terrena”(MORIN, 2000) que concebe a humanidade como uma só comunidade, portantoresponsável pela Terra-Pátria, deve ser a meta da Educação Ambiental ao longo do processo educacional.

A interdisciplinaridade apresenta-se como um caminho possível nas escolas para a integração de saberes e formação de atitudes responsáveis quanto ao uso de recursos e ao respeito a todas as formas de vida.


A crise hídrica em questão

      Hoje, nenhuma questão é mais fundamental do que a da água. Dela depende a vida de todos os seres vivos e o equilíbrio dos ciclos do planeta.

Embora em grande proporção no planeta, cerca de 70%, no total, a maior parteda água está nos oceanos e mares, sendo portanto salgada. A água doce utilizada no consumo humano se encontra restrita a apenas 0,3% presente na superfície, em rios e lagos e esse total ainda não está distribuído uniformemente pelo globo. Dada a poluição e a degradação dos cursos d´água no mundo, esse percentual se torna ainda mais reduzido para o consumo (MMA, ANO).

Segundo dados do recente relatório da ONU (2015), a estimativa é que o planeta enfrentará um déficit de água de 40% em 2030, se não houver melhor planejamento na sua gestão, dado o aumento populacional e a crescente demanda por alimentos e bens manufaturados, o que resulta em forte impacto sobre os recursos hídricos.

Em relação ao cenário mundial, o Brasil apresenta uma situação privilegiada, com reservas em torno de 13,7% de toda água doce do planeta, sendo que 73% desse quantitativo se encontra na Amazônia, região com baixo índice populacional (MMA, ANO).  Além da desigualdade na distribuição do recurso, o país registra também um índice elevado de desperdício de água tratada na distribuição e nos hábitos de consumo da população. Segundo Rebouças (2002), um dos maiores especialistas em água do mundo, o país desperdiça cerca de 37% da água que trata, o que daria para abastecer toda a França,  a Bélgica, a Suíça e norte da Itália (REBOUÇAS, 2002).  Diante desse quadro, o pesquisador da USP alerta que com a crescente escassez do recurso é mais importante hoje em dia um país saber usar a água de que dispõe do que ostentar a sua abundância (Ibid, 2002).

      Recentemente o país enfrentou uma das maiores crises no abastecimento de água da história. A estiagem em períodos de chuva, devido às alterações climáticas, deixaram secos os reservatórios, atingindo fortemente a região Sudeste, com alta concentração populacional e de setores econômicos.  Com apenas 6% da concentração de recursos hídricos, medidas extremas foram tomadas nos estados-parte ea população, acostumada ao uso abundante, sofreu com o racionamento de água em pleno verão e precisou se adaptar a nova situação diminuindo drasticamente o consumo, mudando hábitos com o reuso de água e poupando ao extremo.Ressalta-se que o cuidado com o uso deste recurso, finito e fundamental para a manutenção da vida,precisa se tornar um hábito incorporado à prática diária do brasileiro, e não só nos momentos de crise.

Em face de tal realidade, é imprescindível conscientizar as autoridades  e também a população  de que a cultura do desperdício não cabe mais diante da crescente demanda na distribuição de água e do alto custo que implica  o tratamento do recurso degradado, com despejo de lixo ou esgoto. Portanto, faz-se urgente um investimento maior em infraestrutura, mas também em Educação Ambiental para combater os vazamentos de água e para coletar e tratar o esgoto, responsável por grande parte da poluição nos cursos d’água e das internações por doenças infectocontagiosas.

Dizer que a água no planeta nunca vai acabar implica em discutir a qualidade da água, pois a natureza já não consegue reverter o nível de degradação em que se encontram tantos rios, córregos e lagos por ações inconsequentes do homem. Assim, cada vez mais as reservas, ainda disponíveis, ficam restritas para o consumo, encarecendo o tratamento e a distribuição e atingindo diretamente às camadas mais desfavorecidas da população, que não contam com saneamento básico, fundamental para a qualidade de vida e preservação dos cursos d’água.

Dados do Relatório da ONU sobre recursos hídricos (2015) revelam que 748 milhões de pessoas em todo o mundo não têm acesso à água tratada e 2,5 bilhões de pessoas não têm saneamento básico, o que indica que uma imensa massa está exposta ao risco de contrair doenças pelo consumo de água imprópria, sendoas crianças as vítimas mais vulneráveis, elevando os índices de mortalidade infantil.

O alerta sobre a água e a vida no planeta também foi expresso na recente Carta Encíclica Laudato SI- Sobre o Cuidado da Casa Comum divulgada pelo Vaticano em maio último. No documento, o Papa Francisco aponta que “o acesso à água potável e segura é um direito humano essencial, fundamental e universal, porque determina a sobrevivência das pessoas e, portanto, é condição para o exercício dos outros direitos humanos” (PAPA FRANCISCO, 2015, p.10).

O Pontífice conclama a união de “toda a família humana a dialogar na busca de um desenvolvimento sustentável e integral porque o desafio ambiental, que vivemos, e as suas raízes humanas dizem respeito e têm impacto sobre todos nós.” ( Ibid, 2015, p. 5) Nessa direção, a Educação, em suas diversas formas, se constitui uma importante política na formação de valores e competênciasnas gerações atuais e futuras, pois

a educação é essencial para o desenvolvimento, pelo seu valor intrínseco, na medida em que contribui para o despertar cultural, a conscientização, a compreensão dos direitos humanos aumentando a adaptabilidade e o sentido de autonomia, bem como a autoconfiança e a auto estima.” (SACHS, 2008, p. 39)

A responsabilidade pela manutenção dos recursos naturais e a preservação da vida no planeta envolve a participação de todos os setores sociais em ações sustentáveis integradas: governos, empresas, escolas, igrejas, cidadãos; enfim a articulação da sociedade planetária em prol do equilíbrio da “Casa Comum” (PAPA FRANCISCO, 2015).


 Educação Ambiental nas escolas

Nas últimas décadas, a temática ambiental tornou-se campo fértil de estudo no Brasil e no mundo a partir do agravamento da crise e do direcionamento das políticas pró-desenvolvimento sustentável. Desde então, inúmeros estudos foram produzidos em diversas áreas do conhecimento sobre os variados temas e aspectos que englobam a questão.

Dentre os materiais publicados, encontram-se uma gama considerável de pesquisas voltadas para o campo educacional, mais precisamente para a prática pedagógica da Educação Ambiental (EA) e seus reflexos na sociedade.

Instituída como política pública pela Lei nº 9795/99, a EA tornou-se componente obrigatório nos currículos escolares em todas as modalidades e níveis de ensino, sendo definida como: 

os processos por meio dos quais o indivíduo e a coletividade constroem valores sociais, conhecimentos, habilidades, atitudes e competências voltadas para a conservação do meio ambiente, bem de uso comum do povo, essencial à sadia qualidade de vida e sua sustentabilidade (BRASIL,PNEA,Art.1º,1999). 

A escola, sendo um espaço de educação formal, apresenta-se como uma possibilidade concreta da transformação social que se almeja ao oportunizar ao aluno a busca pelo conhecimento, a reflexão sobre os desafios reais postos no plano local e global, e suas possíveis soluções, ampliando assim sua visão de mundo, seu senso crítico e sua atitude participativa.

Conforme dados da pesquisa“ O que fazem as escolas que dizem que fazem Educação Ambiental?”, divulgados pelo INEP (2006), 94,95% das escolas do país realizavam algum tipo de trabalho em Educação Ambiental, sendo que desse total, 66% das escolas públicas declararam desenvolver projetos ambientais, com iniciativa dos professores (BRASIL, 2006).

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Não obstante, verifica-se que embora a EA esteja quase universalizada no país, com a temática ambiental contemplada nos livros didáticos e nos programas disciplinares, há mais de uma década, percebe-se que a mudança de atitude quanto ao cuidado com os recursos naturais e ocupação dos espaços permanece “insustentável”, haja vista a poluição nos locais públicos, o desperdício de água, o descarte inconsequente de resíduos no solo e nos cursos d’água, o consumo desenfreado etc.

Tal fato leva à constatação de que o conhecimento escolar e a obrigação legal somente não bastam para que as mudanças de atitudes sejam incorporadas, de fato, como uma nova cultura pela população. Essa discussão remete a questões maiores e mais complexas que envolvem políticas conjuntas, mudanças no currículo escolar e nas práticas  pedagógicas, no apelo midiático ao consumo, nos meios de produção etc.

Acreditar que a Educação Ambiental pode desenvolver competências como o pensamento crítico, a reflexão sobre cenários e a autonomia para a busca de soluções em prol da justiça social e ambiental, implica em debater as concepções de desenvolvimento sustentável, levando-se em consideração, o modelo capitalista de produção e consumo, as consequências do aquecimento global, a perda da biodiversidade, os avanços tecnológicos, o mundo do trabalho, mas também a violação de liberdades (SEN, 2010) e sua relação intrínseca com a miséria humana e os impactos ambientais. 

A mudança almejada de hábitos, valores e modos de vida parte inicialmente da sensibilização para a temática ambiental, aprofunda-se com o conhecimento integrado e incorpora-se com a ação coletiva em prol do bem comum.  Talvez a forma como a EA vem sendo abordada nas escolas não favoreça os resultados esperados na sociedade, porque a estrutura disciplinar e fragmentada, que ainda predomina nos currículos e os métodos pouco participativos, não motivam à transformação, pelo contrário, conduzem à alienação ou à cegueira do conhecimento (MORIN, 2000).

Ser capaz de interferir no mundo globalizado e plural requer entendê-lo sob múltiplos olhares, o que só é possível com a conexão entre os saberes, transpondo fronteiras para apreender a complexidade das relações que se estabelecem e se retroalimentam. Portanto, a escola precisa acompanhar as mudanças na forma de pensamento que vem se estruturando em vários setores da sociedade contemporânea e promovera prática interdisciplinar na abordagem das temáticas humanas, pois estas ultrapassam em muito ao conhecimento particular da especialização.

Resgatando a Política Nacional de Educação Ambiental (1999), em seu Artigo 10, vale dizer que  a lei  aponta o desenvolvimento da EA em todos os níveis e modalidades do ensino formal ”como uma prática educativa integrada, contínua e permanente” (BRASIL, 1999, Art. 10), portanto já considera a interdisciplinaridade como forma de diálogo entre  os saberes, rompendo com a fragmentação disciplinar.

Tendo em vista que o processo educacional se dá de forma contínua e seu resultado é fruto de construções, reconstruções e interações, salienta—se então que as mudanças de concepções e atitudes almejadas requerem não só certo tempo de investimento em conteúdo, mas também uma metodologia participativa que proporcione ao aluno, ao longo do processo, uma aprendizagem de fato significativa em sua vida.

Nesse sentido a pedagogia de projetos revela- se como uma metodologia bastante utilizada pelos professores na abordagem da EA em vários níveis de ensino, pois se caracteriza por despertar o interesse do aluno pelo conhecimento, possibilitar a vivência da cooperação e da solidariedade do grupo, bem como da tomada de decisões coletivas, exercitando os princípios cidadãos.   

Destaca-se porém que o trabalho com projetos requer do professora visão ampla das possibilidades de desenvolvimento dos alunos no campo do conhecimento, da autonomia e da convivência social, o que requer mais planejamento e estudo diversificado. Logo, é preciso abrir mão dos conteúdos rígidos e previsíveis das disciplinas em prol de um caminho em construção, onde os múltiplos saberes interagem e se complementam e formam novas conexões. Enfim, um desafio ao corpo docente enclausurado ainda em suas especializações.

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Sobre os autores
Reis Friede

Desembargador Federal, Presidente do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (biênio 2019/21), Mestre e Doutor em Direito e Professor Adjunto da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Graduação em Engenharia pela Universidade Santa Úrsula (1991), graduação em Ciências Econômicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1985), graduação em Administração - Faculdades Integradas Cândido Mendes - Ipanema (1991), graduação em Direito pela Faculdade de Direito Cândido Mendes - Ipanema (1982), graduação em Arquitetura pela Universidade Santa Úrsula (1982), mestrado em Direito Político pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1988), mestrado em Direito pela Universidade Gama Filho (1989) e doutorado em Direito Político pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1991). Atualmente é professor permanente do Programa de Mestrado em Desenvolvimento Local - MDL do Centro Universitário Augusto Motta - UNISUAM, professor conferencista da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, professor emérito da Escola de Comando e Estado Maior do Exército. Diretor do Centro Cultural da Justiça Federal (CCJF). Desembargador Federal do Tribunal Regional Federal da 2ª Região -, atuando principalmente nos seguintes temas: estado, soberania, defesa, CT&I, processo e meio ambiente.

Márcia Schumack Militão Barbosa

Licenciatura em Letras, Especialização em Educação Ambiental, professora do Colégio Pedro II/RJ, mestranda em Desenvolvimento Local na UNISUAM/RJ, Brasil.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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